Enviado especial do Observador em Paris, França

Um atleta, num retrato geral, nunca deve ser definido por uma prova. Seja porque ganhou, seja porque não conseguiu vencer, é demasiado curto assumir que por um momento de glória ou queda se pode caracterizar toda uma carreira com milhares e milhares e horas de treinos, de viagens, de recuperações, de competições. Há exceções. Em contextos específicos, em determinados momentos de um trajeto, em dias que chegam para dar outro brilho a todas as centenas de outros dias que antes passaram. Agora, em menos de três minutos e meio, Fernando Pimenta tinha duas vias para chegar a um lugar que tantas reivindicou nas palavras que não eram sequer necessárias face ao currículo internacional que apresentava. Mais tarde do que é normal em termos de calendário olímpico, o canoísta estava numa final A diferente de todas as centenas que fez.

A própria passagem à corrida decisiva foi o melhor aperitivo possível logo de manhã. A correr com Balint Kopasz, o húngaro que se sagrou campeão olímpico em Tóquio, o português encheu o peito, mandou para fora todo aquela lufada de ansiedade e nervosismo que nunca deixa de existir apesar de mais de metade de uma vida de 34 anos dedicada à canoagem e seguiu rumo a uma qualificação tranquila. A saída até nem foi a melhor mas, tratando-se de uma prova de K1 1.000 onde a explosão inicial, conta pouco. Liderava aos 250 e 500 metros, depois viu o húngaro tomar a dianteira a par, houve até um ligar do botão “economizador de dados” para que a bateria reservada para este sábado não gastasse tanto antes de ser recarregada.

Não é algo comum, tendo em conta as lesões, os momentos ou as prioridades em contexto desportivo, mas a final A do K1 1.000 tinha agora mais de metade das mesmas caras com três anos a mais nas mãos, nos braços e nas pernas. Os três medalhados, Kopasz, Adám Varga (que ganhou a segunda meia-final também de uma forma tranquila) e Pimenta. O quinto classificado, o checo Josef Dostal, que na última parte da decisão de Tóquio ainda se manteve na luta pelo bronze. O oitavo posicionado, o argentino Agustín Vernice, que se apresentou a bom nível no apuramento. Faltavam apenas Jacob Schopf, que foi “substituído” na posição pelo compatriota Jakob Thorsden, o chinês Zhang Dong e o australiano Tom Green, que também parecia ter tudo controlado na meia-final mas quebrou na parte decisiva. Era o cenário perfeito para a “desforra”.

Em três edições, Fernando Pimenta foi sempre notícia em contexto nacional nos Jogos Olímpicos. A ganhar, a não ganhar. Em 2012, numa edição de Londres onde a canoagem acabou por ser uma bandeira que salvou a presença da Missão na prova, o atleta de Ponte de Lima ganhou a medalha de prata com Emanuel Silva no K2 1.000 depois de muita polémica com os pedidos que meteram ao barulho Câmara, governo e afins para poder fazer o K1 (sem sucesso). Em 2016, no Rio de Janeiro, falhou o pódio com as queixas em relação às algas na pista onde estava – e que, com a devida distância, se percebe que faz sentido tendo em conta as classificações quase invertidas entre os teóricos favoritos e os medalhados. Em 2020, em Tóquio, ainda sonhou com o ouro olímpico que era a única coisa que lhe faltava ganhar, andou na frente mas terminou com o bronze.

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Agora, com a capacidade impressionante de manter algo anormal no desporto que é o binómio regularidade-competitividade, apresentava-se mais uma vez como o principal expoente não só da Missão na modalidade mas da própria canoagem no geral. Se ganhasse aquela única medalha que lhe faltava num medalheiro que encontra sempre espaço para algo mais, tornava-se o primeiro campeão português fora do atletismo e ainda numa edição dos Jogos em solo europeu. Se fosse ao pódio, passava a ser o primeiro atleta nacional com três medalhas na competição, superando Carlos Lopes, Rosa Mota, Fernanda Ribeiro, Pedro Pablo Pichardo e Luís Mena e Silva. Voltamos ao início do texto: eram menos de três minutos e meio pela história.

Se na véspera o sol se tinha mostrado mesmo antes do arranque da final A do K2 500, que terminou com os campeões mundiais João Ribeiro e Messias Baptista na sexta posição, agora foi uma presença constante. Bem aberto, quente, a puxar ao bronze circunscrito pelas golas e mangas da camisa. À partida, antes de chegarem as nuances próprias de qualquer corrida decisiva, bronze era uma palavra que não entrava no dicionário de Fernando Pimenta. Aquelas veias salientes que ainda hoje impressionam nos braços do português, que desde miúdo foi descrito por companheiros de treino e de Seleção e adversários como um “super atleta”, tinham feito tudo ao longo de mais três anos de ciclo para que a estátua final (que não será bem final porque quando voltarem os Mundiais, os Europeus e as Taças do Mundo lá estará ele para acrescentar mais uns pódios ao currículo com mais de uma centena de medalhas internacionais) no imaginário do desporto nacional tivesse contornos do ouro que ganhara nove vezes em Mundiais e mais sete em Europeus.

O próprio ambiente puxava para que fosse feita história, com bancadas cheias que uns minutos antes tinham vibrado como se a final B valesse medalha. O espírito da canoagem é assim, final A, B ou C é para dar tudo e ficar na melhor classificação. Muitos adeptos portugueses, muitos húngaros, muitos alemães e checos com a esperança de haver uma surpresa perante o cenário teórico que estava apresentado no início da decisão. De Pimenta, sobrava essa confiança de alguém que enquanto se estava a colocar na posição correta do caiaque fez uma continência para a câmara televisiva para saudar também o apoio que chegava do lado esquerdo. Nada chegou. Naqueles 500 metros, nem o mundo inteiro a empurrar chegaria. Assim caiu um sonho.

Depois do início na liderança como gosta de fazer, Pimenta passou os primeiros 250 metros na frente apenas com Josef Dostal e Balint Kopasz a seu lado num cenário que estava ainda definido a meio da prova, no ponto de referência aos 500 metros. Aqui, nas bancadas, havia poucas dúvidas: a medalha já não deveria fugir. Mais: com a experiência adquirida ao longo de anos a fio em grandes decisões e com estes mesmos adversários, tudo apontava para que existisse uma reserva no tanque para a natural reação dos adversários na parte final, que já podia ter custado o bronze em Tóquio. Um exemplo: Adám Varga parecia ter saído da equação, tamanha era a diferença para os três da frente. Afinal, era uma ilusão ótica e de perceção.

Com o passar dos metros, todos andavam para a frente e Pimenta parecia ter um íman que o atraía para trás. Cada pagaiada já não era um ato de fé a pensar alto mas sim um movimento de desespero de quem estava a viver o seu momento mais baixo. Josef Dostal, que viria a ganhar de forma surpreendente a prova à frente de Kopasz, passou pelo português sem a mínima capacidade de reação. O húngaro também. Atrás, o próprio Varga ligara o motor vendo aquele que era o seu principal carro ficar sem gasolina quase encostado a uma berma de desespero por não conseguir mais. Pimenta nunca desiste, Pimenta desistiu. No final não era ele que estava a terminar aquela prova mas sim o fantasma daquilo que ele nunca foi mas hoje não evitou. A sexta posição, pior do que no Rio-2016, simboliza mais do que um falhar de medalhas. O português em algumas provas quebrou no final, é verdade, mas nunca sem esta incapacidade de reação a nada nem a ninguém, quase como se quisesse que o tempo tivesse parado nos 500 metros. Não parou. E não vai parar.