A história
Ainda nem despachámos as entradas e Pavel Kiselev já está pronto para apresentações em língua portuguesa. Há oito anos em Portugal, comunica de forma imaculada, atributo imprescindível para quem começou a estudar a língua antes mesmo de deixar a Rússia rumo aos Açores. Inicialmente, viajou de férias com a então mulher para fazer mergulho, apaixonou-se pela ilha, e decidiu abrir um restaurante, apesar de não ser ligado a esta área. “Foram duas aventuras, mudar de país e de área, eu trabalhava num escritório.”
Liderou um restaurante moderno no Pico, a Casa Âncora; em 2017, na Horta, abriu o Gastrobar Príncipe. No ano seguinte, vendeu ambos os projetos (que se mantêm abertos) e seguiu para o continente. “No Pico, a radio ajudava-me muito a aprender enquanto conduzia. Em Moscovo cheguei ao nível dois. Desde o começo que quis aprender a língua, sabia que era importantíssimo. Poder chegar a um talho ou uma peixaria e explicar o que quero. Falo muito, adoro falar com as pessoas. ”
Com 37 anos, chegou há quatro à capital, onde começou por abrir no Príncipe Real o bar Oyster & Margarita. Foi já em Lisboa que conheceu o compatriota Vladimir Perelman, restaurateur experimentado e fundador da empresa Perelman People, com 18 projetos de restauração, além de organizar festivais de música e gastronomia. Decidiram trabalhar juntos e, ao fim de um ano em busca do espaço perfeito, partiram para a definição do conceito. “Queríamos usar as técnicas fortes do nosso chef, em Moscovo, só faltava descobrir o produto certo para ele poder brilhar melhor. Escolhemos o marisco.”, explica Pavel.
Com ambos colabora assim de perto o brand chef Dmitry Parikov, consultor, cozinheiro, professor de cozinha e responsável por alguns dos restaurantes mais famosos do grupo Perelman People; e ainda Elene Lebedeva, responsável pela área de vinhos e bebidas espirituosas. A Vladimir coube a definição do conceito gastronómico, enquanto Pavel ficou encarregado dos clientes, da operação diária.
O espaço
O Bisque esteve para abrir portas a um passo da Avenida da Liberdade, mas acabou por instalar-se na efervescência da renovada Rua da Boavista, no número 20 do largo Conde Barão, onde se multiplicam aberturas e onde numa simples quarta-feira se começa a formar fila para jantares que se tornaram cada vez mais precoces — se há coisa que as hordas de turistas e novos nómadas importaram para Lisboa foi a antecipação do repasto para as 18h00/19h00. “A localização é ótima. Lisboa é muito cosmopolita, com várias nações e religiões. Moscovo é muito mais fechado. Aqui adoro a possibilidade de conhecer várias culturas, isso enriquece muito a minha experiência. Também gosto da facilidade logística na deslocação. E lá não temos o privilégio de trabalhar com produtos tão frescos como o peixe.” — nem é preciso mencionar o sombrio detalhe extra da guerra para perturbar ainda mais o contexto.
Cerca de cinco anos depois de abrir o bar de ostras e cocktails, Pavel e o sócio desceram ao Cais do Sodré e deixaram a direção criativa nas mãos da Centá, porque se esta é uma experiência gastronómica pretende ser igualmente estética, com o devido dramatismo de um teatro gastronómico. O trabalho dos também compatriotas Lera e Viktor Komskii, revela-se nos mais diversos pormenores. Visto de fora, o Bisque parece um clássico bistrô parisiense, das cortinas barrocas na montra às cadeiras da esplanada. Lá dentro, a exuberância kitsh do estúdio de flores é saliente nos generosos arranjos, nas solitárias rosas vermelhas em cada mesa, nos candelabros e velas acesas, nos espelhos maxi ou na cutelaria de prata, que pontuam as escolhas mais minimalistas. Um pequeno teatro com talheres encontrados em feiras vintage de destinos como França, Itália e Alemanha. Do design ao mood, sem esquecer os uniformes da equipa e outras peças têxteis, a Centá fica a cargo da imagem final.
No centro da sala encontra-se a cozinha aberta, desenhada como uma ilha onde se centram as atenções dos clientes, como se fosse o palco de uma peça de teatro. Até porque é possível ver os cozinheiros em ação de todos os lugares da sala. Resumindo, instagramável já percebemos que é. Mas a comida é boa? A resposta é afirmativa (e, sim, os pratos também ficam bem na fotografia).
A comida
Vamos então ao bisque, a célebre sopa e molho francês à base de marisco, lagosta, camarões, cabeças, etc; uma receita clássica, rica no sabor do mar. “A nossa ideia era misturar uma cozinha com técnicas mais elaboradas, com o mais fresco que Portugal tem para oferecer, que é o produto do mar.”, define o nosso anfitrião, adiantando que vem quase tudo do mercado 31 de Janeiro, para se resolver numa ementa enxuta, arrumada entre entradas, principais e sobremesas.
Coube a Vladimir Perelman a definição e criação de um menu onde brilham peixes e mariscos portugueses, bem como legumes, ervas e queijos com selo nacional, trabalhados em receitas, sobretudo gaulesas. Fixado em Moscovo, veio duas vezes a Lisboa. Na primeira, em abril, fizeram uma prova ao longo de duas semanas numa dark kitchen em Alcântara. “Foi aos mercados e todos as noites nos dava até oito pratos para provarmos e discutirmos um pouco. foi um processo muito engraçado.” Quando já tinham o espaço aqui pronto para trabalhar, veio mais uma vez, “para ajustar os pormenores”. Ainda hoje, à distância, mete literalmente a colher no que se passa no bistro. “Temos um grupo de WhatsApp onde a cozinha partilha fotos dos pratos todos os dias. Pelo menos um de cada aparece no grupo e o chef faz os seus comentários. O mundo hoje é mais ligado, o que é bom.”
É à vista de todos, na tal cozinha aberta ao fundo da sala, que a magia acontece. “A elaboração dos pratos já estava na cabeça do meu sócio, aquela base dos molhos, o espaço é que ainda não.” Escusado será dizer que o famoso molho bisque está por quase todo o lado, em pratos como o topinambour com molho bisque e queijo comté ( 8.5 euros) ou bisque com lagosta, brioche e molho rouille (25 euros).
Mas comecemos pelo princípio, ou seja, as entradas. É possível escolher e partilhar crudo de dourada com molho ruibarbo (11 euros), anchovas da cantábria com pão crocante (8.5 euros), carabineiros com azeite e flor de sal (24 euros), polvo com azeitonas de tajas, tomate e cebola (13 euros), tártaro de vaca com batata Aligot (17.5 euros), patê de frango com figos assados (11 euros), carpaccio de figo com queijo de ovelha (7.5 euros), azeitonas com limão conservado (4.5 euros), a burrata com bottarga (12 euros) ou ainda a bruschetta com sardinhas confitadas e tomate (8.5 euros).
Os principais seguem com sete opções, entre elas robalo com broccolini, salsa de tomate e molho poulet, bourguignon de vaca com batatas e cenoura assada (17.5 euros), tarte de bacalhau com molho de natas de xerez (14 euros) ou polvo com batata assada, molho de pimento estufado e sementes de cânhamo (21 euros).
Bisque à parte, nas sobremesas conte com o cheesecake de chocolate com cardamomo e cogumelos mastigados (9 euros), o choux com creme de baunilha e framboesa (7.5 euros) ou os morangos com chantilly e sabayon de Calvados (7 euros).
Ao fim de semana, o bistrô está aberto para um brunch — também ele com o devido toque Centá. As propostas incluem panquecas de courgette com salmão e guacamole, brioche com caviar preto (esturjão) ou rillette de cavala, e pão torrado. E a apresentação está em linha com a dimensão cénica na casa.
Nos vinhos, metade da lista são rótulos nacionais. Há ainda champanhes e espumantes, e quatro sugestões de cocktails, o Sour Cherry (ginja, dubbonett, laranja, espumante; 9 euros), o Lavander Ginger (rum branco, lavanda, pastis, limão, gengibre; 11 euros), o Pearl Onin (gin, xerez, vermute seco, cebola; 11 euros), e o Bitter Truffle (Bourbon, Brandy, Vermute Tinto, Beneditine; 11,5 euros).
“Cuidado, está quente” é uma rubrica do Observador onde se dão a conhecer novos (e renovados) restaurantes e cartas.