O mais recente imbróglio jurídico da Operação Marquês teve mais um episódio — mas ainda não ficou resolvido. A juíza Sofia Marinho Pires, sucessora de Ivo Rosa como a Juiz 2 do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC), notificou o seu antecessor, agora juiz desembargador, para refazer a decisão instrutória tomada em 2021. Mas Ivo Rosa respondeu esta quinta-feira rejeitando qualquer espécie de regresso aos autos da Operação Marquês, avançou a SIC.
“O signatário deixou de ter jurisdição quanto à tramitação de todos os processos, incluindo os presentes autos, que, até então, lhe estavam distribuídos como juiz 2 do TCIC. Deste modo, uma vez cessada a jurisdição, qualquer ato processual que o signatário possa praticar em processos distribuídos ao juiz 2 do TCIC serão considerados como inexistentes”, lê-se no despacho citado por aquela estação de televisão.
Os autos irão agora descer para a primeira instância, de forma a que a juíza Sofia Marinho Pires faça uma de duas coisas: ou aceita refazer a decisão instrutória ou recusa e gera automaticamente um conflito de competências que terá ser resolvido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) ou o Supremo Tribunal de Justiça.
Recorde-se que o TRL decidiu anular a decisão instrutória proferida por Ivo Rosa em abril de 2021 por manifesta ilegalidade e ordenou a emissão de uma nova decisão apenas sobre uma pequena parte dos crimes que fazem parte da acusação original dos autos da Operação Marquês.
Como é que chegamos aqui e o atual estado dos autos da Operação Marquês
Os autos da Operação Marquês dividiram-se em dois grandes blocos com a famosa decisão instrutória assinada pelo juiz Ivo Rosa no dia 4 de abril de 2021, após dois anos e sete meses de fase de instrução criminal. Os dois blocos são os seguintes:
- O Bloco A — A pronúncia para julgamento propriamente dita decidida por Ivo Rosa. Neste Bloco A foram pronunciados para julgamento em quatro processos autónomos José Sócrates e Carlos Santos Silva, Ricardo Salgado, Armando Vara e João Perna.
- E o Bloco B — O despacho de não pronúncia, que corresponde a um arquivamento da esmagadora maioria dos 189 crimes que o Ministério Público imputou na acusação aos arguidos da Operação Marquês.
O que está agora em causa nesta parte do processo tem apenas a ver com o Bloco A. Por duas razões:
- Porque o despacho de não pronúncia de Ivo Rosa, o Bloco B, foi revogado pela Relação de Lisboa após recurso do Ministério Público. As desembargadoras Raquel Lima, Micaela Rodrigues e Madalena Parreiral Caldeira entenderam pronunciar José Sócrates para julgamento pela prática de 22 crimes (entre os quais três de corrupção passiva) e de mais 17 arguidos individuais [os pormenores da decisão estão aqui]. Estes autos ainda não baixaram para a primeira instância mas o julgamento poderá começar ainda este ano porque os recursos para o Constitucional são meramente devolutivos — isto é, não param a marcha do processo.
- E porque os autos relativos à pronúncia de Ivo Rosa decretada nula em março, o chamado Bloco A, baixaram logo para a primeira instância em abril. A ordem da Relação de Lisboa, que anulou apenas a parte da pronúncia relativa a José Sócrates e a Carlos Santos Silva (pronunciados em regime de co-autoria), foi clara: o Tribunal Central de Instrução Criminal tinha de emitir uma nova pronúncia que não faça nenhuma alteração substancial dos factos (como Ivo Rosa fez, infringindo a lei processual penal) e analise apenas os factos respeitantes aos seis crimes que Rosa tinha considerado como fundamentados.
Ora, o que aconteceu a partir daí foi um autêntico ziguezague da nova titular do Juiz 2 do Ticão. A juíza Sofia Marinho Pires começou por declarar-se incompetente em maio por entender que a lei impõe que a nova decisão instrutória ordenada pela Relação de Lisboa tem de ser feita pelo “juiz que presidiu ao debate instrutório e assistiu à argumentação dos sujeitos processuais sobre as questões, de facto e de direito, pertinentes para a decisão instrutória, a proferir tal decisão”, como escreveu no seu despacho de 14 de maio revelado pelo Observador.
Logo, segundo a juíza, o “Exmo. sr. juiz que proferiu a decisão [Ivo Rosa] é o juiz natural” do processo e deve ser ele a tomar a “nova decisão”.
Contudo, e após ter sido devidamente informada pelo Conselho Superior da Magistratura de dois factos públicos e notórios — Ivo Rosa foi promovido a juiz desembargador mas encontrava-se de baixa médica —, a juíza Sofia Marinho Pires mudou a sua decisão em junho e optou por tomar em mãos os autos, avisando as partes de que iria em breve marcar o debate instrutório.
Ainda em junho, e logo a seguir a uma junta médica realizada a Ivo Rosa cujo resultado não era do conhecimento nem da Relação de Lisboa nem do Conselho Superior da Magistratura, o advogado Pedro Delille informou os autos do resultado desse acto confidencial e alvo de proteção de dados: a junta médica tinha dado alta a Ivo Rosa e o juiz regressaria brevemente ao serviço. Assim, solicitava Delille, os autos deveriam ser enviados para Rosa, de forma a que este tomasse em mãos a nova decisão instrutória.
A juíza Sofia Marinho Pires concordou e notificou Ivo Rosa poucos dias antes do início das férias judicial para tomar a decisão.
Ivo Rosa respondeu esta quinta-feira alegando que não tem qualquer legitimidade para tomar tal decisão. Isto porque “não resulta da lei e nem do teor do acórdão proferido pelo TRL que a nova decisão instrutória tenha de ser prolatada pelo mesmo juiz que proferiu a decisão de 9-4-2021”.
O agora juiz desembargador acrescenta ainda que o “debate instrutório mostra-se realizado, não foi objecto de anulação, sendo que toda a prova produzida em sede de instrução, assim como o teor do debate, mostra-se documentado através do sistema de gravação pelo que nada obsta, em termos legais, que a decisão a proferir não esteja no âmbito de jurisdição do juiz 2 do TCIC. (…) por falta de jurisdição, o signatário está impedido de tramitar os presentes autos e de proferir o ato processual em causa”, lê-se no despacho.
Veremos quem vai resolver agora este novo imbróglio jurídico. A juíza Sofia Marinho Pires poderá decidir já o mesmo, aceitando refazer a decisão instrutória e seguindo as ordens emitidas pelo TRL em março último. Ou, em alternativa, poderá recusar, gerando assim um conflito de competências.
Tal conflito de competências poderá ser resolvido pelo TRL porque Ivo Rosa intervém nestes autos como juiz de primeira instância. Mas como Rosa foi promovido a juiz desembargador (e colocado na mesma Relação de Lisboa) pode acontecer que o Supremo Tribunal de Justiça seja chamado a decidir sobre quem é o juiz que vai assinar a nova decisão instrutória.
Texto alterado às 16h40