O preconceito 

Mark Twain disse que a verdade consegue ser mais estranha do que a ficção, mas apenas porque a ficção está obrigada a cingir-se às possibilidades; a verdade não. Citar Mark Twain é, em si, um exercício entre verdade e ficção, considerando que a nenhum outro autor é atribuída tanta citação que, em boa verdade, não é sua. Esta, garante-se, não é ficcionada: é retirada de Following the Equator — um relato de viagem que aconteceu de verdade, mas tresanda a ficção. Temo que seja também o caso desta minha experiência.

Matuto isto enquanto conto gambas numa açorda. Faz 45 minutos que me estreei no ÀCosta, a mais recente casa lisboeta de Olivier da Costa, e dou por mim a calcular quanto do que vejo vai soar a caricatura. Considerando a sua vocação para a exuberância e a minha tendência para a palermice, o melhor é moderar o traço.

Olivier apresenta-se como um chefpreneur, termo que deve ser pronunciado com aquela boquinha francesa que se usa para dizer cuisine e designa um híbrido entre chef e entrepeneur (poderíamos aportuguesar, numa bissetriz entre cozinheiro e empresário — mas isso dava cozinhário ou empresinheiro, o que não teria a mesma jactância). A verdade é que vai para 30 anos que o homem anda a abrir restaurantes e, pelas suas contas, nunca fechou um que fosse a perder dinheiro. Pelas minhas, esta açorda traz 15 meias gambas.

Temos portanto oito bichos escalados, um deles sem a sua cara-metade. São todos frescos e de bom porte e chegam envolvidos num pão fofo, sabor intenso a marisco, tudo num tachinho capaz de aconchegar duas pessoas, mesmo sem estar indicado para dividir (29€). Genericamente, toda a refeição será assim, gulosa e bem proporcionada, traços de uma cozinha mais dada à lambarice do que à délicatesse. A minha companhia, que é entendida nisto, suspeita que a açorda foi feita com o mesmo pão de forma que nos serviram de entrada. É capaz de ter razão. Recuemos à entrada.

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A entrada

Ligo, quase 20h00, a perguntar por mesa para dois. Começam por dizer que não, que talvez daí a duas horas, mas lá se enternecem com o meu desalento e propõem 15 minutos de espera por confirmação. Aceito. São 20h30 de uma quinta-feira, quando me conduzem a uma de seis mesas livres, quatro das quais assim hão-de ficar toda a noite. Pode não parecer, mas o que vos estou a dizer é que a casa está quase ao barrote: na sala cabem 90, na esplanada outros 30. E também vos digo que todo o serviço é atento, pontual e preciso, da receção à cozinha aberta, passando pelo exército que serve à mesa.

Arrancamos com o couvert (5€/pax), composto pelo tal pão, uma pasta de atum caseira, uma dose de manteiga dos Açores polvilhada com sal e outra de Robbie Williams salteado com afrobeat. Explicam-me que este pão de forma é feito especialmente para a casa. Chega tostado, amanteigado, levemente borrachoso, e a minha companhia é bem capaz de ter razão — passado na Bimby, isto dá uma açorda fofinha. A pasta de atum também é caseira, nota-se bem que a lata foi aberta na cozinha, e tudo isto resulta numa gulodice infantil, que me dá vontade de fazer sandes para levar para a praia.

O conceito

O edifício foi desenhado por Carrilho da Graça em cima do Tejo (o piso da cozinha está mesmo debaixo de água) e é a estrela do projecto Doca da Marinha, que inclui mais três quiosques e nasceu com a promessa de mudar a frente ribeirinha junto ao Campo das Cebolas. Nos primeiros seis meses funcionou aqui o Anfíbio, restaurante do chef Miguel Rocha Vieira, que não chegou propriamente a estar na berra e acabou por dar o berro. Depois veio Olivier e mudou tudo. Virou a cozinha para os produtos do mar, redecorou à grande e à francesa, plantou um dj no meio da sala, baixou a luz, levantou o som, e mandou chamar a fina flor do Instagram, que vende stories ao preço da gamba e paga as refeições em hashtags.

Como é sabido, a formação de conceitos, questão milenar entre filósofos, deu um salto epistemológico em Lisboa, cidade onde eles se reproduzem como coelhos. E o conceito aqui é simples: um ambiente de festa iminente, uma carta onde manda o peixe e influencers a mandar posts de pescado. Parece resultar bem. Como resultaria o carpaccio de peixe do dia (19€), que é lírio e me parece fresquíssimo e cheio de sabor, não tivesse o bicho ficado esquecido no limão e cozinhado além da conta. O excesso de sementes de coentros também não ajudou.

A carta

A carta do ÀCosta está repleta de bicharada fresca vendida a peso — lulas a 80€, robalos a 120€, carabineiros a 195€ — mas há um caminho mais em conta, feito de pratos para dividir. Com o devido cuidado no vinho, calculo que me consiga safar com uns 60€ por cabeça. Opto por um Monte Cascas Colheita Branco, seguindo dois princípios gastronómicos fundamentais: primeiro, escolher um vinho fresco, mas com estrutura para aguentar a petiscaria; segundo, escolher o segundo mais barato da lista (29€).

Eis que chega o Ovo Àcosta, que é estrela da carta e do Instagram, e o empregado não se atreve a desmanchá-lo sem antes abrir espaço para a fotografia (bem visto, vai dar jeito para a ilustração). No prato, um tártaro de gambas em cama de palha, encimado por um ovo e uma colherzinha de caviar. Muito guloso. Mas no palato não sobra vestígio das ovas e até mesmo o camarão sucumbe à gordice do ovo e da batata frita. No fundo, temos um bom ovo roto, só que parece de pato bravo: 27€.

O ambiente

São agora 21h30 e janta-se a 122 batidas por minuto. Vejo gente que mastiga enquanto meneia a cabeça ao ritmo de um cardio hit e eu já não sei se devo comer a sobremesa ou fazer agachamentos. Entretenho-me com um doce da casa à medida de duas crianças lambonas: gelado de iogurte grego, bolacha maria e doce de ovos (9€). A história esgota-se na lista de ingredientes.

Em redor, a sala rejubila de pessoas bonitas, corpos bronzeados, rapazes que escancaram a camisa dois botões abaixo do padrão Iniciativa Liberal. Topo pelo menos uma atriz da moda e um jogador da bola, que não vou nomear porque ele gosta de se manter discreto, e mesmo quando marca golo põe uma máscara.

Numa das mesas ao centro, três jovens mulheres, radiosas e transbordantes, dispõem-se em meia lua, como quem jantasse a ver a bola. Revezam-se a esticar o braço para o clique e cadastram toda a refeição em selfies e stories. Noto que também pediram uma açorda, coisa que rima lindamente com #migasforever. Tudo naquela mesa anuncia uma felicidade de banco de imagem e eu já não via tanto colagénio junto desde que espiolhei o catálogo da Intimissimi.

Noutra mesa perto, uma rapariga só. Elegância de passerelle, cabelo louro apanhado, fato branco executivo estilo Kamala Harris, mas com decote menos presidencial, vai intercalando um scroll infinito de telemóvel com olhares vagos pela sala. Tudo nela me intriga e empurra para a ficção. Fala português? Espera alguém? Veio a trabalho? Será que lhe calha a segunda metade da minha oitava gamba?

Ao centro de tudo, Olivier da Costa. Num sentido figurado, certamente, pela assinatura que se pressente no ambiente; pela sua cara chapada na revista que repousa na antecâmara espelhada do WC; pela concentração atípica de Porches no estacionamento. Mas também porque a mesa no coração da sala é, de facto, ocupada pelo chefpreneur e três convivas. Seguisse eu o caminho da ficção e agora punha-me a imaginar que a nossa mesa estava colada às costas da sua e que daqui se escutavam todas as indiscrições de uma conversa mirabolante entre alfas bem sucedidos. Melhor seguir com Twain.

Hei-de voltar. Mas só quando tiver seguidores suficientes para isso.

Arnaldo Valente é homem de palavra e só não dá a cara porque precisa dela para fazer a barba. Tende pouco para as tendências, não é muito sensível às sensibilidades, é fascinado por coisas sem importância e insiste em brincar com coisas sérias. Só fala do que experimenta, embora não possa falar de tudo o que já experimentou.