O novo filme do cineasta português Miguel Gomes, vencedor do Prémio de Melhor Realização no Festival de Cannes, podia ter como título alternativo Noivo em Fuga. Embora não haja qualquer relação, por mais remota que seja, com a comédia romântica Noiva em Fuga, de 1999, interpretada por Julia Roberts e Richard Gere. Com a exceção de terem ambos uma personagem principal que é subitamente tomada pelo terror de assumir um compromisso matrimonial e prefere dar aos calcanhares do que subir ao altar e trocar votos e alianças com quem escolheu para se casar.
É o que sucede, em Grand Tour, a Edward (Gonçalo Waddington), um funcionário público inglês colocado em Rangum, na antiga Birmânia, em 1917, pela administração do Império Britânico. Quando recebe um telegrama da noiva, Molly (Crista Alfaiate), que não vê há vários anos, anunciando que chega no dia seguinte para se casarem, Edward entra em pânico, dá corda aos sapatos e mete-se no primeiro comboio, para estar bem longe quando Molly desembarcar em Rangum. O comboio descarrila, mas Edward sai ileso do desastre e a comentar: “Que linda manhã!”. E vai prosseguir a sua fuga através de uma série de países asiáticos.
[Veja o trailer de “Grand Tour”:]
Molly, entretanto, em vez de ficar fula ou inconsolável, acha a situação divertida. E como está decidida a casar, segue-lhe no rasto. E enquanto os acompanha nos respetivos périplos, sempre num preto e branco reminiscente das produções cinematográficas dessa época, Miguel Gomes vai inserindo no filme imagens contemporâneas, feitas a cores nos vários países da Ásia que Edward e Molly vão atravessando. Estabelece-se assim um clima de contraste anacrónico, mas também de complementaridade, entre as duas secções que compõem Grand Tour: a ficcional e a documental, aquela construída em estúdio, esta captada in loco, separadas entre si por mais de um século e unidas pela imaginação do realizador, que também assina o argumento, com Maureen Fazendeiro e Telmo Churro.
[Veja uma sequência de “Grand Tour”:]
Aqueles que estão familiarizados com o cinema de Miguel Gomes, que desde as suas primeiras curtas-metragens se revelou formalmente inventivo, movediço e brincalhão, dotado de uma invulgar elasticidade narrativa, avesso a normas de fabrico e cor-de-burro quando foge em termos de géneros, muito cinéfilo e por vezes algo críptico, e que tanto mais se destaca por estarmos numa era de filmes “meta” e de personalidade miscigenada e híbrida, não estranharão a habilidade conceptual e as qualidades alusivas de Grand Tour. Plasmadas na forma como ele faz aqui coexistir o pastiche elaborado -—e levemente paródico — das fitas de ambiência colonial e exótica rodadas em estúdio das primeiras décadas do século XX, e os apontamentos documentais feitos na Ásia dos nossos dias.
Só que neste caso, o conceito é curto e precário demais para preencher um filme de duas horas de duração, e manter o espectador envolvido e satisfeito durante esse tempo — e nem o sentimento cinéfilo ajuda. Chega uma altura em que as rocambolescas andanças retro de Edward e Molly, mais bonecos sem miolo do que personagens consistentes, se tornam inverosímeis e desinteressantes, e os interlúdios documentais repetitivos e irrelevantes. E apesar de todo o evidente talento daqueles nele envolvidos, Grand Tour transforma-se num filme precioso e exibicionista do artifício em que assenta, muito satisfeito na sua auto-contemplação, que acaba a rodar no vazio. Grand Tour parece ter também algo a dizer, querer servir de ilustração, sobre o contar histórias e os modos de o fazer. Mas, por vezes, a melhor maneira de as fazer chegar aos destinatários é com simplicidade e em linha reta, sem contorcionismos formais nem excessos de labuta conceptual.