Chico Buarque já não precisa de ser apresentado. Assim sendo, vamos ao livro. Em Bambino a Roma, temos o que não tínhamos até agora – uma narrativa que se alimenta da memória, tentando criar uma imagem panorâmica de pequenos detalhes, que vão desde as saudades do arroz com feijão brasileiro ao despertar das primeiras paixões.

O romance foca-se nos anos vividos em Roma, na década de 1950, sendo veiculado por um olhar nostálgico, embora bem resolvido. Por todo o lado, há leveza, com uma abordagem divertida e frequentemente surpreendente. Durante a leitura, não nos cruzamos com o erro de tratar a memória como facto, ou sequer a sua sugestão – nem isto é um texto jornalístico, nem Chico Buarque deixa de ser um ficcionista. Será, por isso, natural, que a ideia de verdade, já sujeita à ficção da acção da memória sobre o tempo, também leve as voltas que tenha de levar em prol da manipulação do leitor por parte do autor.

Ao longo da narrativa, Buarque vai mostrando uma sensibilidade apurada, sendo capaz de ir buscar os pontos fulcrais às coisas, sabendo escolher pontos de destaque entre a lassidão do quotidiano. Assim, o leitor tanto tem acesso a questões que são da vida comum — e por isso aproximam — como a episódios mais fortes, atípicos — e por isso acordam. Com isto, o autor tanto se foca em passeios de bicicleta como em Amadeo, o amigo de classe baixa com quem jogava à bola, partindo para partes de maior carga emocional como a primeira paixão e o impacto de um amor não correspondido, com o ridículo de amar para uma parede, ou numa dança com Alida Valli, estrela do cinema italiano da época, de quem queria lá saber por ter outras referências.


Título: “Bambino a Roma”
Autor: Chico Buarque
Editora: Companhia das Letras

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No enredo, tudo é tratado de forma horizontal, em pé de igualdade – tudo é memória, tudo é história. E a nostalgia transforma a vida em coisa plácida, até o que não só não é inocente, como é pérfido. A vida é vista ao longe, sem pender para o drama, e tudo é livro de peso, até o relato dos momentos em que o professor lhe metia as mãos entre os calções e o apalpava. Daí surge logo a questão de uma criança posta noutra cultura, com o narrador a ponderar denunciá-lo, e a desistir depois, perguntando-se quem levaria a sério um brasileiro. Buarque conta isto sem lhe meter a carga do horripilante, da violência: dá a matéria e o leitor que conclua. Para mais, aproveita para laivos de humor:

Essa minha história com ele eu não cogitava contar a ninguém, tinha pudor. Eu tinha medo de pegar fama de bicha, mas agora já me disponho a incluir o caso num eventual livro de memórias. Com passagens assim picantes, é possível que o livro seja publicado com sucesso, quem sabe até traduzido para o inglês. Sò acho uma lástima que, a essa altura, mister Welsh com certeza já terá morrido, perdendo a chance de ler seu nome no livro de um autor brasileiro em cuja bunda lisa de menino ele gostava de passar a mão. Mas talvez ele tenha deixado filhos, netos, bisnetos, numa prole respeitável que minha editora inglesa será capaz de localizar, para enviar uns exemplares como cortesia.” (p. 16/17)

Na segunda parte do livro, há o regresso a Roma – e Roma já não é a coisa estanque e cristalizada na memória. Em vez disso, há agora a vida real, imediata, sem a distância do tempo, sem a brandura da recordação. Sobretudo, quem lá está não encara a vida com a carga dramática da nostalgia. A ideia leda de encontrar um rapaz com a idade que o narrador tinha quando lá foi pela primeira vez culmina em medo de uma solicitação sexual; a procura da casa que foi lar mostra um prédio quase em ruínas e culmina na expulsão pela funcionária; o encontro com o amigo de infância resulta num não querer saber que até ao leitor surpreende.

As obsessões, o desejo e a verdade em cada mentira: este é o samba na literatura de Chico Buarque

Tudo isto traz subtileza à narrativa, porque implica a permanência de um olhar irónico: quando o leitor julga que vai encontrar um momento de drama sem atenuantes, leva com a guinada do humor. Isto existe até no que parecem pormenores, como o momento em que o narrador encontra uma mulher que passa o dia a ler e, pensando que são dois leitores, procura usar a semelhança como forma de aproximação.

Logo a seguir, a mudança de guinada: em vez de romances, a mulher em questão lê textos jurídicos. Da mesma forma, com pormenor literário delicioso, ao conseguir finalmente chegar ao apartamento em que viveu, a memória confirma-se com o que se vê. Pouco depois, seguindo o narrador avante, sente um puxão na gola, como o faria a mãe de uma criança (a mãe dela), impedindo-o de macular a memória de uma casa com o estado real e actual – e, ao mesmo tempo, ao usar o gesto entre mãe e filho ainda rapaz, há o teletransporte para o passado, aquele que passou ali. Também nesse pormenor revive o passado, e a sua memória, mantendo-se inalterada.

Claro, pode ler-se e julgar-se a verdade, tentando descortiná-la ou mesurá-la, mas esta parte deixa claro que a narrativa é o que o autor faz dela, e que também o que passa por auto-ficção é manipulação de quem lê. Findo a leitura, o que importa é a sensação de que a memória pode ser traída, e que a verdade não é uma imposição absoluta – preservar o que se viu, ou julgou ver, também é uma opção.

Tratando a vida com uma ligeireza que não se conhece em Portugal, Chico Buarque mostra mais um livro que o prova como multifacetado, denso, sem manias. A beleza literária nunca morre – a prosa é limpa, suave, a primeira pessoa é credível sem ser vulgar. Tudo é coeso e o eixo narrativo aguenta o leitor até ao final, e até aí o surpreende.

A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.