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E se a doença do sono chegar à Europa? Esta cientista estuda o parasita para o combater melhor — enquanto há tempo

Na Faculdade de Medicina da Universidade Católica Portuguesa, Sara Silva Pereira tenta compreender melhor o parasita que provoca a doença do sono nos animais — antes de este chegar à Europa.

Sara Silva Pereira licenciou-se em Ciência Biomédicas no King 's College, em Londres, doutorou-se em Parasitologia Veterinária na Universidade de Liverpool e já fez investigação no Quénia e no Brasil
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Sara Silva Pereira licenciou-se em Ciência Biomédicas no King 's College, em Londres, doutorou-se em Parasitologia Veterinária na Universidade de Liverpool e já fez investigação no Quénia e no Brasil

Goncalo Villaverde

Sara Silva Pereira licenciou-se em Ciência Biomédicas no King 's College, em Londres, doutorou-se em Parasitologia Veterinária na Universidade de Liverpool e já fez investigação no Quénia e no Brasil

Goncalo Villaverde

A primeira pergunta — óbvia, mas necessária — era, na verdade, um pedido: “Apresente-nos o tripanosoma africano”. Sara Silva Pereira pede um bocadinho, levanta-se e vai buscar um. Não verdadeiro, claro, mas um modelo. Ao vermos o peluche arroxeado é possível perceber duas coisas: tem um corpo em formato de tubo, longo e delgado, e uma espécie de cauda. “O tripanosoma é um parasita extracelular, ou seja, que não entra nas células, e tem esta espécie de cauda que se chama flagelo, que lhe permite movimentar-se”, explica a cientista enquanto faz deslizar o boneco de um lado para o outro. “Há muitos organismos que têm um flagelo, incluindo algumas bactérias, mas no tripanosoma há uma diferença: em vez de andar com esta espécie de cauda para trás, anda para a frente.”

Há vários tipos de tripanosomas. No laboratório Interações Parasita-Vasculatura, no Centro de Investigação Biomédica da Faculdade de Medicina da Universidade Católica Portuguesa, a investigadora estuda um tipo em particular: o tripanosoma africano, transmitido pela famosa mosca tsé-tsé, que causa tripanossomíase africana humana e tripanossomíase africana animal — mas habitualmente conhecemo-la como doença do sono.

Há vários tipos de tripanosomas. No Centro de Investigação Biomédica da Faculdade de Medicina da Universidade Católica, Sara Silva Pereira estuda o tripanosoma africano, transmitido pela mosca tsé-tsé

Goncalo Villaverde

Nos seres humanos, explica a investigadora, a doença está relativamente controlada. “É obrigatório reportar os casos e, no ano passado, foram registados menos de mil. Sabemos que é subreportada, mas ainda assim, podemos dizer que não é um grande problema, sobretudo porque há cinco anos foi aprovado um medicamento oral bastante eficaz.”  Já a nível animal, o caso é diferente. “No ano 2000 estimava-se que as perdas económicas associadas à doença, em África apenas, seriam na ordem dos quatro mil milhões de euros anuais, tanto em custos diretos, com a morte de animais, como em custos indiretos, com a perda de produção.”

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Estas perdas económicas estão relacionadas com os sintomas incapacitantes, também de perda, que a doença causa nos animais. “Por isso, em África, também lhe chamam ‘nagana’, uma palavra zulu que significa ‘inútil’. A doença é caracterizada por causar perda de tudo: perda de peso, de músculos e de força nos animais de trabalho, perda de carne e leite em animais produtores. Os animais vão definhando.” E, com isso, a alimentação e o sustento económico de muitas populações fica comprometido.

Se nos seres humanos a doença está restrita a África, nos animais espalhou-se. A mosca tsé-tsé, que transmite a doença, não existe fora do continente, mas algumas espécies destes tripanosomas conseguem ser transmitidas através de outras moscas que se alimentam de sangue.

“O tripanosoma foi introduzido em regiões onde não existia, nomeadamente na América do Sul.” Os resultados têm sido catastróficos porque os animais não têm qualquer resistência ao parasita. “Há muitas epidemias e a mortalidade por vezes ultrapassa os 70%. No Brasil, onde há cerca de 270 milhões de cabeças de gado e a economia é extremamente dependente da exportação de carne, isso é um problema.”

Há três principais espécies do tripanossoma africano: Trypanosoma brucei, Trypanosoma congolense e Trypanosoma vivax. No laboratório na Universidade Católica, Sara estuda a T. congolense e a T. vivax, as que causam a maioria das doenças nos animais. Ao abrigo de uma bolsa de pós-doutoramento financiada pela Fundação “la Caixa”, pretende investigar a sequestração, o mecanismo através do qual os parasitas destas espécies se agarram às células endoteliais dos vasos sanguíneos do animal hospedeiro. O que a cientista quer saber é simples, apesar de o caminho até lá não o ser: como é que se agarram, porque é que se agarram e quando é que se agarram?

Por enquanto não há boas respostas a nenhuma dessas perguntas. “Talvez seja para se multiplicarem ou pode ser porque os ajuda a que não serem levados e destruídos. É possível que haja algum benefício metabólico em estarem agarrados à célula endotelial ou talvez ajude na transmissão, já que assim são mais facilmente ingeridos pela mosca quando ela pica.”

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Mas isto tudo, frisa a investigadora, são apenas possibilidades, teorias, hipóteses em aberto e até alguma especulação. “Em rigor, não sabemos. O que sabemos é que quando eles estão agarrados ficam mais ‘felizes’, proliferam mais e, muito importante, o local onde eles se agarram, impacta diretamente o tipo de doença e a sua gravidade.” Compreender a sequestração vascular é fundamental para desenvolver formas eficazes de redução da carga das doenças causadas por tripanossomas, nomeadamente, melhorando o atual tratamento que existe para os animais afetados.

Para perceber este mecanismo o laboratório que Sara coordena usa três métodos principais: 1. a avaliação de grandes conjuntos de dados (Big Data) que recolhem através de técnicas como a genómica (estudo de todos os genes) e transcriptómica (estudo de todo o ácido ribonucleico – RNA), o que permite ter uma visão completa de tudo o que está a acontecer na célula; 2. o estudo de modelos animais, neste caso ratinhos, que permitam observar os efeitos da doença; 3. os métodos de microfluídica, com os quais conseguem analisar os fluidos e o seu fluxo dentro de vasos sanguíneos artificiais, o que permite mimetizar o processo de sequestração.

A doença provoca perda de peso e de força nos animais — e de capacidade de trabalho, de carne e leite. A alimentação e o sustento das populações ficam comprometidos. A cientista quer combater isso

Goncalo Villaverde

Sara Silva Pereira estuda estes parasitas desde cedo no percurso académico.  A cientista de 31 anos nasceu no Porto, mas fez o seu percurso escolar em Famalicão, para onde os pais se mudaram quando ainda era criança. Quando terminou o 12º ano de escolaridade fez sozinha uma mudança maior: como já tinha o desejo de seguir uma carreira de investigação, optou por ir estudar para Inglaterra, por achar que aí teria mais oportunidades, e começou por fazer a licenciatura em Ciência Biomédicas no King ‘s College, em Londres.

Soube também desde cedo que gostaria de fazer investigação na área da Medicina Tropical, “talvez influenciada pelas leituras de adolescência: lia muitos romances históricos cujo cenário eram países africanos.” Certo é que o continente fazia parte do seu imaginário e o doutoramento em Parasitologia Veterinária, já na área dos tripanossomas africanos, na Universidade de Liverpool, deu-lhe a oportunidade de sair do laboratório e trabalhar no terreno, no Quénia e no Brasil. “Foi possível porque o meu orientador conseguiu financiamento do Reino Unido, o que é muito difícil.” Esta dificuldade em conseguir financiamento está relacionada com investigar na Europa parasitas e doenças que não afetam países europeus. A tendência habitual é que surja a pergunta: ‘Porque é que isso interessa?’” Mas ela tem uma resposta mais do que pensada…

“Com as mudanças climáticas, as temperaturas vão subir e, mais cedo ou mais tarde, vamos ter aqui a doença do sono nos animais. Além disso, a União Europeia injeta muito dinheiro em países menos desenvolvidos para que equilibrem a economia. Como são economias dependentes da agricultura, se conseguirmos promover uma agricultura sustentável, através do bem-estar animal, a longo prazo vamos ajudar a que haja menos dependência das economias ocidentais.”

Há uma pergunta que também não é invulgar que lhe façam: para que serve o tipo de investigação que faz, a investigação fundamental, que está focada em perceber os mecanismos dos fenómenos e não em resolver problemas concretos? A investigadora diz que compreende que “hoje há uma necessidade de mostrar resultados e os resultados são mais visíveis quando se faz investigação aplicada”, mas deixa um alerta:  “Se não fizermos investigação fundamental agora, daqui a trinta anos   não vamos ter investigação aplicada. Se não percebermos primeiro o funcionamento do mundo, como é que vamos conseguir, mais tarde, criar estratégias para resolver os problemas?”

Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto liderado por Sara Silva Pereira, da Universidade Católica Portuguesa, foi um dos 40 selecionados (seis de Portugal) — entre 497 candidaturas — para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2023 do programa de bolsas de Pós-Doutoramento Junior LeaderA investigadora recebeu 390 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As bolsas Junior Leader apoiam a contratação de investigadores que pretendam continuar a carreira em Portugal ou Espanha nas áreas das ciências da saúde e da vida, da tecnologia, da física, da engenharia e da matemática. As candidaturas à edição de 2025 terminam a 3 de outubro.

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