O número de médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar (conhecidos por médicos de família) aposentados a trabalhar no SNS ascende já a 400, quase o dobro do valor que se registava há apenas três anos, segundo os dados mais recentes da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Numa altura em que se agudizam as dificuldades para atrair recém-especialistas e em que o nível de aposentações dos médicos de família se mantém elevado, o regresso destes profissionais aos centros de saúde pode representar uma ajuda (ainda que transitória) na prestação de cuidados à população — e o governo quer melhorar o regime para atrair ainda mais médicos reformados.
Segundo os dados enviados ao Observador pela ACSS, em julho trabalhavam no SNS 401 médicos de família que já tinham concluído o processo de aposentação, tendo-se mantido em funções ou regressado aos centros de saúde depois disso. Trata-se do número mais alto desde que há registos. O aumento em relação ao final de 2023 não é expressivo (mais cerca de 30 médicos) mas, se a comparação for feita com 2022, existiam em julho mais 54% de médicos de Medicina Geral e Familiar no SNS (em dezembro desse ano eram 259).
Os 401 médicos especialistas em Medicina Geral e Familiar representam a maioria (cerca de 60%) dos 653 médicos reformados, de todas as especialidades, que se encontravam a trabalhar no SNS no final de julho.
Médicos de família aposentados que voltaram ao SNS aumentou mais de 50% em dois anos
O regime atualmente em vigor — e que foi sucessivamente renovado, embora em moldes diferentes — permite aos médicos aposentados voltarem a exercer funções nas instituições do SNS acumulando a pensão com 75% do salário (em proporção do número de horas trabalhadas). Em 2016, e perante a baixa adesão dos médicos ao regime criado em 2010, o Ministério da Saúde (então liderado por Adalberto Campos Fernandes) decidiu tornar o regime mais atrativo, aumentando de 33% para 75% a parte do rendimento atribuída aos médicos aposentados.
Número de pessoas sem médico de família aumenta um milhão em cinco anos
Na altura, o ministro da Saúde apresentou a medida como temporária e justificou a opção do governo com a necessidade de atrair mais médicos para o SNS, de modo a suprir as carências em várias especialidades que já nesse momento se fazia sentir. Nos anos seguintes, as carências não diminuíram — pelo contrário, aumentaram —, o que levou os sucessivos governos a renovarem o regime, até hoje.
Segundo os dados da ACSS, em 2017 já eram 150 os médicos de família a trabalhar no SNS, número que se manteve estável até 2020, mas que começou a aumentar a partir de 2021. No final desse ano eram já 213, em 2022 cerca de 260 médicos. O aumento acentuado do número de médicos de Medicina Geral e Familiar aposentados a exercer no SNS nos últimos três anos pode ser explicado também pelo pico de aposentações que se regista em Portugal. Em 2024, o Ministério da Saúde estima que se reformem cerca de mais de 550 médicos de família, um número superior dos últimos três anos — em 2023, aposentaram-se 423 médicos de família (um recorde), em 2022 tinham-se reformado 420 e em 2021 outros 331 médicos. Por estes anos, estão a retirar-se os especialistas que entraram no sistema no final dos anos 70 e início dos anos 80, logo após a criação do SNS, que aconteceu em 1979.
“É uma solução de curto prazo”, avisa associação dos médicos de família
“Há mais colegas a reformarem-se e há mais colegas que, felizmente, mantêm a capacidade e disponibilidade para continuar a trabalhar. Isto é muito positivo, sobretudo em unidades francamente carenciadas e numa altura em que as novas reformas não são compensadas pelas entradas”, diz ao Observador o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, Nuno Jacinto. Também o presidente da Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar considera positivo o regresso dos médicos ao SNS depois da reforma e justifica a elevada adesão com a mudança no regime remuneratório. “As condições anteriores não eram cativantes e agora são”, sublinha André Biscaia.
Nuno Jacinto salienta que, com este reforço do número de médicos, é “possível manter nos centros de saúde verdadeiros médicos de família a dar assistência às populações”, numa referência à lei, de 2022, que permitia a contratação de médicos sem especialidade para centros de saúde de zonas mais carenciadas — um diploma fortemente contestado pelas associações do setor. “É preferível ter este modelo [de regresso dos aposentados] do que médicos indiferenciados e sem experiência“, corrobora André Biscaia.
Ainda assim, Nuno Jacinto ressalva que “o regresso dos colegas aposentados não é uma solução de fundo para os problemas”. “Muitos não terão disponibilidade para trabalhar muito mais anos e a maioria não quer trabalhar num horário completo. Isto é apenas uma pequena ajuda na resolução do problema maior, que é não conseguirmos captar médicos de família”, realça. O médico — que trabalha na USF Salus, em Évora — ressalva que é urgente avançar com medidas estruturais para atrair médicos para os cuidados de saúde primários. “Não vamos ter os colegas a trabalhar até aos 80 anos, esta é uma solução de curto prazo”, reforça o presidente da APMGF.
Governo vai permitir acumular pensão com totalidade do salário
O novo governo, que tomou posse em abril, quer ir ainda mais longe no que diz respeito à atração de médicos de família aposentados. O “reforço da resposta pública com médicos aposentados” é uma das medidas prioritárias do Plano de Emergência e Transformação da Saúde, que deverá estar concluída até final do ano. Para isso, o Ministério da Saúde quer aumentar de 75% para 100% a remuneração salarial acumulável com a reforma durante um período de três anos. Para além disso, os médicos aposentados que voltem para uma USF modelo B vão poder receber 50% dos incentivos associados ao desempenho.
A tutela justifica o aprofundamento do regime com o saldo negativo que se regista (e vai continuar a registar nos próximos anos) entre o número de médicos aposentados e os que são formados. “Estima-se que cerca de 556 médicos de Medicina Geral e Familiar se aposentem durante este ano. Comparativamente com os expectáveis 461 médicos recém-especialistas de MGF (excluindo PPP e Regiões Autónomas), verifica-se um saldo negativo entre médicos aposentados e recém-formados de 95 médicos, reforçando a necessidade de extensão no ativo de médicos em vias de aposentação”, pode ler-se no Plano de Emergência e Transformação.
O Observador questionou o Ministério da Saúde e a Direção Executiva do SNS de modo a perceber quantos médicos de família aposentados adicionais quer a tutela captar e quantos portugueses sem médico atribuído poderão ser beneficiados, mas não obteve resposta.
Apesar do expectável aumento da remuneração associada ao regime que o novo governo quer implementar, Nuno Jacinto acredita que, “na maioria dos casos, a componente financeira não é maior motivação” para os profissionais. Para 2024, o anterior governo publicou uma portaria, em março, que autoriza a contratação de até 900 médicos aposentados de todas as especialidades (um valor muito superior ao do ano passado, quando tinham sido autorizadas 587 contratações). No entanto, o limite para este ano está longe de ser excedido. Em julho, estavam a trabalhar no SNS 653 médicos reformados, segundo os dados da ACSS, sendo que parte desses contratos já transitava dos anos anteriores.