Numa audição morna (que só ‘aqueceu’ já na parte final, com a intervenção de André Ventura), o ex-chefe de gabinete do ex-secretário de Estado da saúde afirmou que a ex-secretária pessoal de Lacerda Sales, Carla Silva, só poderia ter marcado a consulta para as gémeas luso-brasileiras com “instrução superior”, ou seja, depois de receber uma indicação do próprio secretário de Estado. Tiago Gonçalves garantiu não ter tido nenhum envolvimento no caso e revelou aos deputados da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que o ex-assessor para a área da Saúde de Marcelo Rebelo de Sousa teve vários “contactos” com Lacerda Sales no Ministério da Saúde à época dos factos, embora admita não saber qual o teor das conversas.

Secretária não tem autonomia para agendar consultas, diz ex-chefe de gabinete

“Uma secretária pessoal não tem autonomia para fazer agendamento de consultas. [Só o pode fazer] mediante instrução superior”, disse Tiago Gonçalves, depois de ter sido questionado pela deputada do Bloco de Esquerda Marisa Matias. “Só vejo uma pessoa com responsabilidade para o fazer, que é o membro do Governo”, sublinhou. No mesmo sentido, o ex-chefe de gabinete de Lacerda Sales disse não ter conhecimento de que Carla Silva tenha “extravasado as suas funções”. “Era uma pessoa de diligência e de profissionalismo. Não tenho nada a apontar do ponto de vista de competência e de lealdade”, disse Tiago Gonçalves, referindo-se a Carla Silva.

O ex-chefe de gabinete de Lacerda Sales garantiu que “nunca deu nenhuma indicação para marcar” a consulta, negando qualquer envolvimento no caso. E manteve a mesma tese depois de o deputado do Chega André Ventura, o penúltimo a inquirir Tiago Gonçalves, ter pedido ao presidente da CPI, Rui Paulo Sousa, que fosse ouvido um excerto das declarações de Carla Silva, em que a ex-secretária de Lacerda Sales disse, também em audição na CPI, que a equipa de secretariado só procedia a diligências com o conhecimento do chefe de gabinete ou de Lacerda Sales.

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“Na equipa de secretariado não fazíamos nada sem que o chefe de gabinete ou o secretário de Estado tivesse conhecimento”, disse Carla Silva, quando foi ouvida há duas semanas na Assembleia da República. Na resposta, Tiago Gonçalves disse que não faria sentido que tivesse sido informado, por Carla Silva, do pedido de marcação de consulta feito por Lacerda Sales. “A dinâmica do gabinete é de trabalho, comandada pelo membro do governo. Se o senhor secretário de Estado pediu isso à secretária e ela lhe deu o reporte, não fazia sentido dar-me a mim conhecimento de uma instrução que podia ter recebido do secretário de Estado”, defendeu Tiago Gonçalves.

O ex-chefe de gabinete de Lacerda Sales diz não ter tido nenhum envolvimento ou intervenção na marcação de consulta para as gémeas luso-brasileiras. “Quando o caso foi noticiado, procurei indagar, consultando os meus elementos pessoais, para perceber se tinha tido alguma intervenção. E não encontrei nenhuma evidência disso”, disse Tiago Gonçalves, em resposta ao deputado do Livre Paulo Muacho.

Tiago Gonçalves garante que não ouviu “qualquer referência” relativa ao caso das gémeas nem deu nenhuma orientação a qualquer membro do secretariado da Secretaria de Estado para marcar uma consulta.

Já no final da audição, Tiago Gonçalves disse à deputada da IL Joana Cordeiro que o ex-secretário de Estado da Saúde lhe perguntou “se tinha dado alguma indicação para ser marcada uma consulta”, o que negou. Essa pergunta de Lacerda foi feita, segundo o ex-chefe de gabinete, numa altura em que já era conhecida a alegada interferência da secretaria de Estado no caso.

Ex-assessor de Marcelo teve contactos com Lacerda Sales no Ministério da Saúde, diz Tiago Gonçalves

Uma das poucas novidades que saiu da audição desta sexta-feira está relacionada com o ex-assessor para a Saúde do Presidente da República, Mário Pinto. O ex-chefe de gabinete de Lacerda Sales diz ter “memória” de Mário Pinto (o ex-assessor para a saúde do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, em funções à data dos factos) “ter tido contactos com o secretário de Estado [Lacerda Sales] no Ministério da Saúde”. No entanto, Tiago Gonçalves não sabe sobre que versavam as conversas.

Não presenciei esses contactos. Não sei qual era o teor das conversas que houve”, sublinhou Tiago Gonçalves.

O ex-chefe de gabinete de Lacerda Sales disse também que Nuno Rebelo de Sousa o contactou para agendar uma reunião com Lacerda Sales, mas não sabe como o filho de Marcelo Rebelo de Sousa teve acesso ao seu contacto. “O dr. Nuno Rebelo de Sousa procurou marcar uma reunião com o secretário de Estado da Saúde. Contactou-me nesse sentido. Não tive nenhum contacto prévio com Nuno Rebelo de Sousa. Não sei como chegou à minha pessoa”, disse Tiago Gonçalves, em resposta à deputada do Bloco de Esquerda Marisa Matias.

Caso das gémeas fora da reunião entre Sales e o filho de Marcelo — pelo menos, naquela em que chefe de gabinete participou

Tiago Gonçalves explicou que o pedido de Nuno Rebelo de Sousa foi feito “no âmbito das funções que desempenhava”, como presidente da Câmara do Comércio Portuguesa de São Paulo. “Solicitei ao senhor secretário de Estado que avaliasse a importância de o receber, foi-me transmitido que sim e retornei o contacto no sentido de transmitir data e hora, de acordo com a disponibilidade de agenda do membro do governo”, lembra o ex-chefe de gabinete de Lacerda Sales. Na reunião, na qual esteve presente, assegurou, não foi abordado o tema das gémeas luso-brasileiras — uma informação que entra em contradição com as informações que o próprio Lacerda Sales tinha avançado.

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Em entrevista ao semanário Expresso, em dezembro do ano passado, o antigo secretário de Estado contou que foi nessa reunião, em novembro de 2019, que teve conhecimento do caso das gémeas luso-brasileiras e da sua condição clínica. “Fez a apresentação de cumprimentos, dado que não o conhecia, e falou-me, factualmente, das duas crianças”, afirmava Lacerda Sales nessa entrevista. E acrescentava: “[Nuno Rebelo de Sousa] Disse-me que conhecia duas crianças luso-brasileiras com atrofia muscular espinal, com perto de um ano e que seria importante fazerem um medicamento (Zolgensma) até cerca dos dois anos. Não me deu conta de que haveria um processo paralelo do ponto de vista formal, que tinha havido contactos com a Estefânia, com a Casa Civil, que esse contacto tinha ido para o gabinete do primeiro-ministro e para o Ministério da Saúde.”

Essa versão é distinta daquela que foi apresentada pelo então chefe de gabinete do secretário de Estado da Saúde na audição desta sexta-feira na comissão parlamentar de inquérito ao chamado caso das gémeas do Santa Maria.

“O tema estava enquadrado na delegação que veio no âmbito para Web Summit. Deu lugar a uma reunião no dia 7 de novembro [de 2019]. Estive presente nessa reunião, tal como o Dr. Nuno Rebelo de Sousa, o senhor secretário de Estado e mais duas pessoas de uma delegação de hospitalização privada brasileira. O propósito da reunião foi tratar da mobilidade intercâmbio de profissionais de saúde”, afirmou Tiago Gonçalves, não descartando, contudo, que as gémeas luso-brasileiras tenham sido tema de uma outra reunião — da qual, diz, não tem conhecimento. “Se houve outras reuniões, não lhe consigo dar essa informação”, disse.

Tiago Gonçalves garantiu que nunca teve contacto com Nuno Rebelo de Sousa, com o Hospital de Santa Maria ou com o gabinete do ex-primeiro-ministro António Costa sobre o caso, e que apenas teve conhecimento do mesmo pela comunicação social.