“Gosto muito de marisco, mas sou bastante seletiva com o que como. Só compro em lotas legalizadas, onde sei que é analisado. E, em restaurantes, só peço se souber onde foi apanhado e consulto antes a página do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA).”
As palavras são de Sandra Lage, investigadora do Centro de Ciências do Mar do Algarve, em Faro. O rigor que põe na escolha do marisco que come não é apenas uma questão de gosto: é que a cientista de 37 anos estuda as biotoxinas produzidas por algas que contaminam o marisco e nos causam intoxicações alimentares.
A contaminação de marisco pode acontecer por razões diferentes – nomeadamente por causa de bactérias, com a E.Coli – mas outra das causas de contaminação são os florescimentos de microalgas nocivas (conhecido pelo nome em inglês Harmful Algal Blooms ou HAB) que Sandra estuda.
Estes florescimentos acontecem hoje de forma mais frequente e intensa por um conjunto de razões. “Desde logo, pela descarga de poluentes agrícolas, como o azoto e o fósforo, e também por causa do aumento da temperatura da água, que ocorre com as alterações climáticas”, explica a investigadora. Além disso, também o transporte marítimo tem feito com que esta proliferação de algas nocivas se expanda geograficamente: quando os grandes navios cargueiros recolhem água num porto – para a usar como lastro – e a largam depois num porto do outro lado do mundo, juntamente com a água, seguem milhões deste microorganismos.
Os moluscos bivalves que gostamos de comer – como a amêijoa, o mexilhão, o berbigão e as navalhas – respiram e alimentam-se filtrando a água. Uma ostra, por exemplo, pode filtrar mais de 1000 litros de água por dia. Por isso, acumulam com facilidade as substâncias ou toxinas presentes na água em que vivem. Quando os comemos contaminados, essas toxinas passam para nós, dando origem a intoxicações alimentares, com sintomas gastrointestinais – como vómitos e diarreia – ou neurológicos – como dores de cabeça, confusão, formigueiros e paralisias.
A frescura dos bivalves é possível de avaliar seguindo algumas regras, mas as biotoxinas que contém não se detetam pelo cheiro, aspecto ou sabor e a cozedura não as elimina. A única forma de identificar é através de análises, pelo que para garantir a segurança alimentar o IPMA tem um Sistema Nacional de Monitorização de Moluscos Bivalves, que faz esta monitorização.
Os viveiristas e aquacultores que produzem bivalves são directamente informados acerca do que podem ou não apanhar. Já o consumidor final ou quem apanha para consumo próprio, pode fazer como Sandra Lage e consultar essa informação no site,para zelar pela sua segurança alimentar.
No final de Setembro, por exemplo, a apanha de mexilhão e amêijoa branca estava totalmente interdita no Litoral de Aveiro e na zona que vai da Figueira da Foz à Nazaré. Também de São Vicente a Lagos está interdita a apanha de buzina, mexilhão e lapa.
Sandra Lage estuda as toxinas do marisco há mais de uma década: já investigou as toxinas emergentes – aquelas que ainda não estão suficientemente estudadas e em relação às quais ainda não existe regulação – a tetrodotoxina – que é potencialmente fatal, pode ser encontrada no peixe-balão e que ela encontrou em buzinas do Algarve. Com o seu novo projecto, está um passo à frente: a sua ideia é prever a contaminação do marisco antes de ela acontecer.
A investigadora está a focar-se em biotoxinas bem conhecidas e reguladas, ou seja, cujas quantidades máximas, que podem estar presentes para um consumo seguro, estão definidas. Mas o problema das análises que são feitas é que “só informam quando o organismo já está contaminado e impróprio para consumo.” Isso quer dizer que, quando os viveiristas e os aquacultores são avisados, muitas vezes já capturaram o marisco, que acaba por ir para o lixo porque não pode ser vendido.
É um sistema que garante a segurança alimentar dos consumidores, mas que penaliza os produtores, que perdem tempo e dinheiro na apanha de um produto que têm de destruir.
Se [os produtores de marisco] fossem informados antes da contaminação ocorrer, poderiam deixar o marisco onde ele está e, possivelmente, semanas depois do florescimento de microalgas desaparecer, a toxina iria sair do corpo do marisco e poderiam então capturar e vender, sem o impacto económico da perda de tempo e de produto que acontece agora.”
É nisso que Sandra está focada com este projecto: prever quando é que o organismo vai ficar contaminado, antes de estar. Para isso, vai basear-se numa teoria da ecologia que defende que esta produção de biotoxinas é um mecanismo de defesa das microalgas, que elas ativam quando o seu predador – o zooplâncton – está presente. “O zooplâncton produz uns lípidos chamados copepodamidas e as microalgas, através da comunicação química, percebem que os seus predadores estão presentes e aumentam a produção de toxinas”. Sandra vai testar esta teoria e, se estiver correta e conseguir provar que as copepodamidas estão presentes na costa portuguesa e causam um efeito na produção de toxinas, será possível prever esta contaminação do marisco com toxinas com duas semanas de antecedência. O marisco não chegaria a ser apanhado.
Nascida em Afife, Viana do Castelo, em 1987, Sandra era uma criança sossegada da porta de casa para dentro. Entretinha-se com leituras pouco habituais para crianças. “O meu pai ainda hoje faz piadas a propósito disto: aos 11 anos pedi como presente uma coleção de enciclopédias e pegava naquilo, volume por volume, e lia de enfiada”, conta a investigadora. Mas o sossego acabava mal punha um pé na rua. “Sobretudo quando íamos para a praia ou para o rio, os meus pais tinham de estar com ‘sete olhos’, porque eu desatava a correr e atirava-me à água como uma louca. Parece que chegou a haver vários acidentes.”
Ainda hoje é um pouco assim: é possível vê-la sossegada, embrenhada na leitura ou na escrita de artigos e projetos científicos quando está no gabinete, mas também não dispensa correrias na rua sempre que pode. “Não consigo estar muito tempo entre quatro paredes e gosto de fazer caminhadas, de andar de bicicleta, ir à praia, estar na montanha e fazer um piquenique – tudo que sejam atividades fora de casa e na natureza.”
Admite que talvez tenham sido estas recordações que tem de criança, de andar a chapinhar nas poças, a ver algas e apanhar marisco na praia de Afife que a levaram aos 18 anos, a escolher a licenciatura em Biologia na Universidade de Lisboa e, mais tarde, o mestrado em Ecologia Marinha.
Sandra iniciou a carreira de investigação sobre as biotoxinas e florescimento de algas nocivas no Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), realizou um estágio na Food and Drug Administration (FDA), nos Estado Unidos e continuou a sua investigação na análise de biotoxinas com um doutoramento em Fisiologia Vegetal , em 2016, na Universidade de Estocolmo, na Suécia, onde viveu quase 10 anos.
Tinha o desejo de se estabelecer como investigadora em Portugal e é isso que está a fazer, desde que regressou, em 2021. Afinal, mar, marisco e algas para estudar é o que não falta num país com 943 km de costa continental. “E, no Algarve, há muita aquacultura de marisco, mas não há nenhum laboratório 100% focado em biotoxinas marinhas. A minha meta é estabelecer aqui um grupo de investigação, que se foque exclusivamente nisso.”
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto liderado por Sandra Lage, do Centro de Ciências do Mar do Algarve, foi um dos selecionados para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2023 do programa de bolsas de Pós-Doutoramento Junior Leader. A investigadora recebeu 296 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. As bolsas Junior Leader apoiam a contratação de investigadores que pretendam continuar a carreira em Portugal ou Espanha nas áreas das ciências da saúde e da vida, da tecnologia, da física, da engenharia e da matemática. As candidaturas à edição de 2025 terminam a 3 de outubro.