Parece uma fotografia, uma imagem cristalizada de uma vida nova. Partindo da tendência para o nomadismo digital, que o novo mercado de trabalho permitiu, o autor construiu uma narrativa voltada para a problematização da expatriação voluntária. Por problematização entenda-se apenas a criação de uma narrativa, explicando os motivos, as aspirações, as desilusões. Ao longo da leitura, não há como não sentir que se olha pela janela, e que o livro retrata o que está lá fora – ou, em muitos casos, dentro.

Mostrando a vida de um casal, Anna e Tom, também eles nómadas digitais, webdesigners, o autor italiano mostra também um apreço da geração millennial pela ideia de uma vida sem amarras, ainda que essa vá contrastando com a casa limpinha, de design claro, escandinavo, que dá sentido ao resto. Com confraternizações entre estrangeiros numa terra, que a vão deixando cada vez mais estrangeira, o romance pega na ideia de movimento como possibilidade, não obrigação, e na procura de um estilo de vida que procure elementos já transformados em globais, seja a mobília de um certo design ou um certo tipo de latte ou de comida. À medida que cria a realidade, Latronico aposta numa narrativa essencialmente imagética, descritiva, apresentando os fluxos de consciência na terceira pessoa. Além disso, o que define as personagens são os actos, esses que se misturam com os dos outros, em circunstâncias semelhantes, o que faz com que não haja um mergulho na psique individual de cada um. Em vez disso, Anna, Tom e as outras personagens periféricas têm sempre um quê considerável de representativo.

Ao longo da leitura, percebe-se que a individualidade das personagens não interessa muito ao autor. Não é sequer esse o foco do romance e, para mais, no texto que lhes é dirigido, nota-se a construção da redoma casal. Os dois, aliás, funcionam como unidade indivisível, até como profissionais. Essa unidade estende-se à vida social, aos gostos, aos hábitos, às opiniões, às sensações.


Livro: “As perfeições”
Autor: Vincenzo Latronico
Editora: Elsinore
Tradução: Vasco Gato
Páginas: 136

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O romance, ainda assim, não é sequer sobre um casal ou uma ideia de casal, antes sobre uma micro-estrutura de uma sociedade que assenta nessa unidade, e isto aparece sempre como marca de uma geração. Há a procura de uma satisfação que parece transversal a todos os que fazem o mesmo movimento que Tom e Anna, e a ideia de felicidade passa pela mesma lista de elementos, de forma quase acrítica, o que faz com que o autor apresente um retrato geracional a partir de uma redoma. O que vai sendo relevante é a forma como é criada, numa capital europeia – como em outras –, uma comunidade que parece estanque, apesar de ser forçosamente díspar. Os nómadas digitais vêm de países diferentes, com culturas e línguas diferentes, e ainda assim aparecem, devido ao movimento e à opção, como comunidade homogénea, funcionando como redoma dentro de um determinado espaço com condições propícias à sua existência. Enquanto isto acontece, a cidade que acolhe os nómadas digitais, e que se vai adaptando a um gosto aparentemente mais global, acaba por se tornar numa coisa estranha – e quem chega não só não se imiscui na cultura como não contribui de forma directa. Aliás, as personagens mudam-se, mas continuam a contribuir para os seus países de origens, muitas vezes trabalhando de forma remota para empresas, noutro fuso horário. Assim, a comunidade homogénea começa a perder corpo, e as estruturas que, de início, parecem rijas – os grupos para os recém-chegados, os lugares partilhados, as festas – começam a mostrar as suas fragilidades.

Claro, à medida que se lê, não poderá passar ao lado a diferenciação entre nómadas digitais e migrantes: os primeiros impõem, mas nunca são vistos como impositores, regra geral aumentando o custo de vida dos lugares a que chegam e reproduzindo as suas referências culturais e gastronómicas; os segundos, que não raras vezes vivem às margens dos lugares onde trabalham, são vistos como os elementos que devem permanecer estrangeiros. É que, dos primeiros, parece haver um certo tipo de segurança laboral que os legitima socialmente.

Ora, adiantando-se a narrativa, vê-se outra coisa. O movimento que procura uma imagem cristalizada de felicidade, que estará noutro país, com outra língua, acaba por ser feito sobre uma segurança laboral precária, ainda que a sua flexibilização, à partida, pareça ter só vantagens. A glamourização, aqui ironizada, acaba por derivar em noites sem dormir, em insegurança, em stress – e muitas vezes em trabalho inútil. Acima de tudo, a ausência de amarras traz desvantagens quando se precisa de estar amarrado. Ao mesmo tempo, é inevitável ver-se que a ideia de glamour contrasta com a insegurança laboral e que se vai criando uma ilusão. O Instagram, por exemplo, tenta provar – dar a entender – uma vida mexida, quando a realidade caseira é outra.

As perfeições cristaliza um tempo, olhando para a coetaneidade e metendo-a inteira num texto. Será impossível, para o leitor coevo, desligar-se do que vê todos os dias, ou lê, ou ouve, ou sabe. Latronico apanha o movimento a meio, pegando nas tendências dos millennials. A sua escrita é aguçada, e Latronico tem um olhar permanentemente irónico, e sempre na dose certa: por vezes, a mera sugestão serve para arrancar a empatia. De resto, cabe ainda dizer que, com uma prosa escorreita, As perfeições é ainda um romance inerentemente analítico, que procura mais o relato social do que individual, mais o estado de um mundo do que o de alguém.

A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.