Sem comunicação não há funcionalidade. Tanto no mundo exterior, como dentro do corpo. É por isso que alguém sem nenhum problema no cérebro ou nas pernas, mas com uma lesão na espinal medula não consegue andar. O órgão que comanda o movimento está funcional, o órgão que o executa também, mas se a via de comunicação entre ambos está cortada, o cérebro não consegue enviar nem receber informação das pernas. É como ter um cabo elétrico cortado.
As partes do corpo que são afetadas por uma lesão dependem da zona onde ela se situa na espinal medula e, quando mais acima, mais membros e órgãos são afetados. Isso significa que além de não conseguir fazer movimentos com as pernas — se a lesão for lombar — ou as pernas e braços — se a lesão for na cervical — há outros órgãos como a bexiga, os intestinos, os pulmões e mesmo o coração que podem não funcionar bem.
Estes doentes sofrem frequentemente de incontinência, disfunção sexual e problemas respiratórios, que podem ser ainda mais limitadores da qualidade de vida do que não andar”, diz Nuno Silva.
A vida académica e profissional do cientista tem sido dedicada a tentar perceber estas lesões e os mecanismos de regeneração da espinal medula, de forma a que um dia seja possível melhorar a vida destas pessoas. No Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde (ICVS), da Escola de Medicina da Universidade do Minho, o investigador de 39 anos estuda novas abordagens de reparação e regeneração de lesões medulares.
Quando era pequeno, tudo que queria era correr atrás da bola de futebol com os amigos, na aldeia de Arnoso, no concelho de Famalicão, onde os pais nasceram. Nesta altura, quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse crescido, respondia uma de duas coisas: “guarda-redes de futebol” — porque era fã do Vítor Baía — ou “cientista louco” — porque achava graça à famosa fotografia de Albert Einstein de cabelo em pé e língua de fora.
Foram dois desejos infantis que se concretizaram em parte. Continua a jogar à bola com os mesmos amigos, mas não profissionalmente e “nunca à baliza”. É cientista, mas nada excêntrico e surge nas fotografias que lhe tiram com uma pose muito mais composta do que Einstein nessa imagem icónica que lhe captou a atenção em criança.
Quando concluiu a licenciatura em Biologia Aplicada, na Universidade do Minho, em 2007, o estágio e a dissertação final já foram dedicados às lesões medulares. Na altura, começou por trabalhar com biomateriais, usando-os como scaffolds, ou seja, como estruturas tridimensionais que dão suporte às células para crescerem. Depois, durante o doutoramento em Engenharia de Tecidos, Medicina Regenerativa e Células Estaminais — que concluiu em 2012, também na Universidade do Minho — fez investigação em química de materiais, de forma a perceber como melhorar a capacidade das células estaminais aderirem aos biomateriais, crescerem e diferenciarem-se. No pós-doutoramento, dedicou-se à farmacologia tentando encontrar combinações de diferentes fármacos que pudessem ajudar a regenerar o tecido neural da espinal medula.
Num dos projetos que tem em curso, financiado pela Fundação “la Caixa”, está a juntar todo este conhecimento sobre lesões medulares com a capacidade do Laboratório Ibérico Internacional de Nanotecnologia, instituição parceira do projeto, para tentar desenvolver um dispositivo médico capaz de modelar a resposta do corpo a este tipo de lesões.
“Há duas respostas das células imunitárias que são importantes após lesão da espinal medula: a pró-inflamatória e a pró-regenerativa. O que acontece quando há uma lesão é uma resposta pró-inflamatória demasiado grande e uma resposta pró-regenerativa muito baixa ou inexistente. Nós queremos modelar isto, para que haja um melhor balanço.”
Com este projeto tem como objetivo desenvolver um dispositivo multifuncional, que consiga combinar diferentes abordagens terapêuticas. “Uma é a libertação controlada de drogas para balançar a resposta imunitária após lesão, a outra é usar estimulação elétrica epidural para ativar as redes neuronais da espinal medula responsáveis pelo movimento.”
Uma área difícil de investigar
O senso comum ainda associa as lesões medulares traumáticas a acidentes de mergulho ou de automóvel entre pessoas muito jovens. Isso foi verdade em tempos, mas já não é: com o aumento da segurança rodoviária, por um lado, com o aumento da esperança de vida, por outro, a tendência foi invertida. Como mostra um estudo realizado no Centro Hospitalar do Porto, a maioria das lesões traumáticas na medula acontece entre adultos ou idosos e são motivadas por quedas.
Estas pessoas não têm muitas opções disponíveis. As soluções e tratamentos para problemas do sistema nervoso central, nomeadamente da espinal medula, são poucas quando comparadas com as que já existem para doenças de outros órgãos e há boas explicações para isso.
Desde logo, esclarece o investigador, porque apesar de se fazer uma analogia da espinal medula a um cabo elétrico, essa é uma comparação simplista. Se um cabo elétrico romper, basta pegar em ambas as pontas do fio e juntá-las para o cabo voltar a funcionar. Mas com a espinal medula é diferente.
A espinal medula é um sistema altamente complexo e com uma função muito precisa. É como ter milhares de fios conectados a centros neuronais, que por sua vez emitem outros milhares de fios para se conectarem a outros centros neuronais.” Cada um desses milhares de fios têm de se unir forma correta, caso contrário podem ocorrer ligações prejudiciais.
O próprio tecido tem de se reparar e regenerar. Mas isso também é um problema porque, ao contrário de outros órgãos, como o fígado, a medula tem pouca capacidade regenerativa. Essa pouca plasticidade, acontece por razões evolutivas, quase de segurança. “Acontece porque as funções do sistema nervoso central são tão precisas. É importante que não haja muita plasticidade, para essa precisão não ser alterada e para mantermos as funcionalidades todas sem que haja alterações prejudiciais.”
Por outro lado, também não há possibilidade de fazer transplantes de órgãos do sistema nervoso central. Por fim, há casos descritos em que se tenta estimular essa regeneração com fatores de crescimento e não só não há melhoria de funcionalidade, como surge um novo problema: a dor neuropática.
É por isso que tem sido tão difícil encontrar soluções. “O Miami Project, criado para investigar um tratamento para as lesões medulares em 1985, propunha curar estas lesões em dez anos. Já passaram quarenta.” Isso quer dizer que não é possível prever quando se estará mais perto de um tratamento eficaz. “Mas estamos sempre a evoluir e há cada vez mais terapias a serem testadas, pelo que creio que, nas próximas décadas, se conseguirá chegar a alguma terapia que, ainda que não cure, melhore muito a qualidade de vida das pessoas.”
A tese de doutoramento do investigador — cuja introdução foi transformada num artigo que tem mais de 600 citações e é considerado uma ‘bíblia’ das lesões medulares, garante o próprio — tem uma epígrafe inicial, que resume o que é essencial, tanto para pessoas com lesões medulares, como para investigadores. É uma citação de Christopher Reeve, o ator que protagonizou o filme Super-Homem e que, em 1995, aos 42 anos, ficou tetraplégico após sofrer uma queda de um cavalo: “Don’t give up. Don’t lose hope. Don’t sell out. ”
Este artigo faz parte de uma série sobre investigação científica de ponta e é uma parceria entre o Observador, a Fundação “la Caixa” e o BPI. O projeto liderado por Nuno Silva, do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde da Escola de Medicina da Universidade do Minho, foi um dos 33 selecionados (11 em Portugal) – entre mais de 200 candidaturas – para financiamento pela fundação sediada em Barcelona, ao abrigo da edição de 2023 do Concurso CaixaResearch de Investigação em Saúde. O investigador recebeu 990 mil euros para desenvolver o projeto ao longo de três anos. O prazo para as candidaturas à edição de 2025 termina a 20 de novembro.