A tarde desta quinta-feira nas Conferências do Estoril foi dominada pelo tema da Inteligência Artificial, os seus impactos (positivos e negativos) no presente e a forma como pode vir a ser utilizada no futuro para resolver alguns dos maiores problemas da sociedade contemporânea.
Numa altura em que a tecnologia se “intromete” cada vez mais no mundo do trabalho e das nossas vidas, o australiano Michael Sheldrick, autor de From Ideas to Impact e co-fundador do projeto Global Citizen, veio a Carcavelos enumerar o potencial profundamente transformador da IA. Ao Observador, elencou os benefícios – e os riscos – que a sociedade poderá ver a muito curto-prazo. “Há claramente ganhos na produtividade, o Fundo Monetário Internacional já o disse, mas há também um risco de a riqueza ser distribuída de forma desigual”. Sheldrick, que advoga a favor de causas como o fim da pobreza, sublinha que é nos países menos desenvolvidos que essas desigualdades mais se farão sentir.
“Há 600 milhões de pessoas em África que ainda não têm acesso à eletricidade. O que é que vai acontecer na próxima década? A médio-prazo África concentrará 25% da população mundial em idade laboral, e há um risco que a Inteligência Artificial possa exacerbar essas desigualdades a um ritmo exponencial.”
Ainda que entenda que os poderes políticos tardam em compreender a fundo as mudanças que podem estar no horizonte, Sheldrick salientou que estão a ser dados passos nessa direção. “Sou um otimista e acredito que esta tecnologia pode ser uma ferramenta importantíssima nas mãos das pessoas, no sentido de fortalecer as democracias e responsabilizar os governos. Em parte, é por isso que estas conferências são importantes, para colocarmos estes assuntos na agenda. Não só para soarmos o alarme, mas também para encontrarmos as soluções”.
Esse trabalho de procura de novas soluções recebeu na quinta-feira à tarde um impulso, com o anúncio de uma parceria entre a NOVA SBE e a Universidade de Harvard para a criação do Digital Data Design Institute, uma instituição sediada na universidade portuguesa dedicada ao estudo tecnológico. “Sam Altman, o CEO da OpenAI, disse que a IA ia acabar com a humanidade, mas que entretanto íamos ter grandes empresas. Não temos que nos resignar a isso”, disse Jen Stave, diretora do novo instituto, numa apresentação com o dean da NOVA SBE, Pedro Oliveira, e a homóloga da NOVA Medical School, Helena Canhão.
Entre as áreas que se prevê que venham a ser mais afetadas pela IA contam-se as indústrias criativas. Foi neste contexto que Derek Ali, engenheiro de som vencedor de quatro Grammys e que já trabalhou em projetos de rappers como Kendrick Lamar e Childish Gambino, subiu ao palco para uma conversa com Jen Stave. “A indústria da música está a mudar debaixo dos nossos pés. Os próximos cinco anos podem ser completamente diferentes”.
Ali não acredita que a IA vá acabar com a criatividade humana, mas sim que os seres humanos irão utilizar a tecnologia como uma ferramenta poderosa. Para exemplificar, o engenheiro de som trouxe pequenas demonstrações, geradas quase inteiramente pela tecnologia a partir de prompts [linhas de entrada para que o sistema de inteligência artificial gere texto, imagem, vídeo ou som] seus, incluindo um fado sobre Marcelo Rebelo de Sousa cantado inteiramente em português, e uma música pop sobre o dean da NOVA SBE. “Esta tecnologia está numa fase inicial, vai melhorar exponencialmente”.
A corrupção, a luta pela democracia… e Pepe
Nem só na artes se refletem os medos e os riscos futuros da IA. Num mundo cada vez mais polarizado e em que o conceito de “verdade” parece cada vez mais difuso, a preocupação aumenta quanto ao potencial destrutivo da desinformação potenciada pelas novas tecnologias.
Luis Villaherra, fundador da Associação para a Transparência, Supervisão Social e Dados Abertos (TRACODA), veio à NOVA SBE oferecer uma visão diferente. O ativista, que luta contra a corrupção no seu país natal, El Salvador, acredita que a IA pode ajudar à criação de uma sociedade mais transparente e a resolver problemas antigos. “Não podemos estar sempre a fazer a mesma coisa e esperar resultados diferentes”, disse, numa apresentação onde, entre outras ideias, revelou que a organização está a desenvolver “um modelo generativo capaz de detetar casos de corrupção. Ainda está longe, mas é muito entusiasmante”.
No mesmo sentido, numa palestra ironicamente intitulada “How to Make Democracy Great Again”, Jon Alexander e Katy Rubin refletiram acerca dos desafios e riscos à democracia – num ano em que metade da população mundial votou ou votará em eleições. “Não é só das nossas cabeças, pois não? As nossas instituições estão mais fracas, os desafios estão a acumular… queremos que seja apenas uma fase, mas a verdade é que as coisas podem colapsar”, disse Jon Alexander. “E cabe-nos a nós impedir que isso aconteça”.
O potencial transformador da IA na economia mundial também esteve em destaque na talk protagonizada por Robert Seamans, professor da Universidade de Nova Iorque e conselheiro económico da administração Obama, que salientou várias das oportunidades e desafios que se avizinham. “A economia do futuro será construída na base da IA? Sim, claro que é. Mas temos de nos lembrar de que a IA não é uma solução ‘faz-tudo’. Os governos terão um papel muito importante, temos de perceber que ocupações serão afetadas e as políticas para o trabalho têm de refletir estas mudanças”.
O final do primeiro dia da edição de 2024 das Conferências do Estoril terminou com a presença do ex-futebolista Pepe, numa conversa com a diretora executiva do evento, Laurinda Alves – e com dezenas de crianças em palco. O ex-internacional português respondeu às perguntas dos mais novos e percorreu vários episódios da carreira e os possíveis futuros fora dos relvados (não excluiu a hipótese de vir a ser treinador). Questionado sobre a melhor memória da carreira? “A final do Campeonato da Europa.”