Guillaume Musso (1974) é o autor mais lido em França. Livro após livro, o autor tem criado uma colecção de best-sellers policiais. Este A vida secreta dos escritores, publicado pela Gradiva este ano, parte de um guião seu, que conta com ilustração de Miles Hyman. A Gradiva, aliás, já tem publicado os romances do autor nos últimos anos, permitindo comparar as duas linguagens: a da escrita de romance ou a escrita de guião para uma novela gráfica.
A conjugação cai bem. Guillaume Musso esforça-se por criar nuances, Hyman reflecte-as. A acção, que vai tendo reviravoltas, agarra o leitor, que demora a casar as coisas, efeito para o qual muito contribuem as pranchas inteiras, quase de suspensão da história, que levam a autores como Proust ou Agatha Christie, permitindo alongar, abranger, criar outras perspectivas e, claro, explicar o título. Tudo isto vai doseando o ritmo, mantendo o mistério sobre o que se passa na ilha Beaumont, no Mediterrâneo, onde reside Nathan Fawles, o protagonista da história: autor de grande sucesso comercial, abandonara, para surpresa do público, a escrita após a publicação do terceiro romance. Ali se refugiou então, refugiando-se também do escrutínio, ainda que, aqui e ali, lá vá gente procurá-lo, incluindo jornalistas em busca do Santo Graal: querem o motivo que levou ao fim da escrita, e isto vinte anos depois da desistência. O desaparecimento foi de tal forma radical, que a resolução do mistério se manteve como coisa viva a arder durante demasiado tempo. A ausência de explicação deixou o público às aranhas: assumia-se, afinal, que quem escreve uma vez tem de o fazer para sempre; que, ao invés de se praticar a escrita, se é escritor. Só por isto, a escrita já aparece como paixão que não perece, sendo impossível entender-se a sua morte precoce, a morte que vem antes da morte do homem. Aliás, autor e homem fundem-se e não podem ser dissociados.
Título: “A vida secreta dos escritores”
Autores: Guillaume Musso e Miles Hyman
Editora: Gradiva
Tradução: Ana Maria Pereirinha
Páginas: 192
Para o leitor, tudo vai tendo interesse, até porque cedo lhe passa também a interessar o motivo da desistência, ao mesmo tempo que vai tendo noção do impacto da curta obra de Nathan Fawles entre os leitores e os média. Fawles, contudo, fechou a porta, não quer contacto, não quer o regresso ao passado, e enxota, até de forma violenta, quem lhe aparece à frente. No meio de tantos visitantes, dois destacam-se, propulsionando o enredo de A vida secreta dos escritores: há Mathilde Monney, a jornalista que o contacta e lhe vai contando uma história, aos poucos, dia após dia, a la As mil e uma noites, instigando o protagonista e os leitores em simultâneo; e há Raphael Bataille, um jovem que trabalha na livraria da ilha e que, fascinando com Fawles, quer ser escritor e aprender com o seu exemplo. É este, aliás, o narrador da história.
A partir destes eixos, desenrola-se o resto, com o livro a ganhar contornos de policial. Tanto a jornalista como o livreiro pretendem o mesmo, embora a primeira tenha uma suspeita e o segundo esteja na página em branco. Para Mathilde, interessam mais questões de ordem pessoal; para o rapaz, interessa a fórmula de um romance capaz de tocar o cerne do leitor. Com isto, vai havendo um certo paralelismo entre dois tipos de literatura: um, que é o criado por Nathan Fawles, que aparenta buscar as entranhas da vida; outro, que é o de Guillaume Musso, e que se vê neste livro, que lhe busca a arquitectura.
No decorrer da leitura, o leitor depara-se com os dois planos, lendo um thriller de investigação sobre um escritor que não escreve thrillers, e mantendo-se o registo do suspense até ao fim. À medida que a narrativa se desenrola, as personagens perdem a vantagem em relação a quem lê, em termos de informação, e as dúvidas do receptor tornam-se nas mesmas que as das personagens. Além disso, nenhuma das personagens é tinta preta em folha branca, uma identidade óbvia a não ser descortinada. Também isso contribui para o clima de intriga, fazendo a páginas tantas, de cada virar de página um afastamento de cortina.
A história aparentemente simples ganha complexidades, formando um puzzle, resolvendo vários mistérios de uma assentada, e isto apesar de, várias vezes, ao longo da leitura, se sentir que se tem as rédeas da acção para depois se ser levado para outro lado. No final, e isto não é spoiler nenhum, sobra a surpresa – e procurá-la garante a leitura até ao fim. Além dos temas da vida, que implicam a culpa, o arrependimento, a obsessão, ainda temos os temas caros aos escritores em termos formais e técnicos, principalmente através do narrador, esse que quer entender a fórmula, os mecanismos da ficção. Com isto, a adaptação de Hyman também não é coisa de somenos: o texto aparece na quantidade certa, cosendo a acção, e doseando os quadrinhos de forma a manipular a percepção do leitor. Em termos gráficos, as cores suaves recriam o sol a bater no Mediterrâneo e o traço a lápis não deixa de lado o detalhe de cada vinheta.
A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico.