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Porridge Radio: o glorioso elogio da tormenta

O artista sofre, cria e do sofrimento nasce a beleza, que nós egoisticamente fruímos. Beleza não falta, no maravilhoso novo álbum "Clouds In The Sky They Will Always Be There For Me".

Dana Margolin, segunda a contar da esquerda: a alma, coração, corpo, assombração, trauma e carne da música assinada por Porridge Radio
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Dana Margolin, segunda a contar da esquerda: a alma, coração, corpo, assombração, trauma e carne da música assinada por Porridge Radio

Dana Margolin, segunda a contar da esquerda: a alma, coração, corpo, assombração, trauma e carne da música assinada por Porridge Radio

Às vezes tudo o que é preciso é um coração quebrado e um burnout e quando a cantora dá por ela está aos gritos e a atirar os pulmões fora num desespero por ser ouvida, como se estivesse a cantar contra uma parede e fosse uma questão de vida ou de morte ser ouvida do lado de lá. Foi o que aconteceu a Dana Margolin em Anybody, a magnífica canção que abre o magnífico Clouds In The Sky They Will Always Be There For Me, o mais recente álbum de Porridge Radio.

Margolin não devia precisar de gritar tão alto para ser ouvida – num mundo ligeiramente mais justo, toda a gente a escutaria; num mundo mais justo, o nome Porridge Radio não seria um segredo. Bom, tudo isto depende da definição de segredo que cada um adota, mas coloquemos assim a questão: na década de 90 as pessoas mais atentas ouviam os Pavement, mas para a maior parte da humanidade, ocupada a ouvir os Nirvana ou os Pearl Jam ou os Smashing Pumpkins, os Pavement eram um segredo.

E hoje, quando se fala de indie-rock, em particular no feminino, toda a gente chama (e muito justamente) rainhas a Sharon van Etten ou a Angel Olsen; e muita gente acompanha as Snail Mail ou as Soccer Mommy; entre as duas paira Mitski, que já atingiu um estatuto de figura cimeira. Mas onde raio encaixa a banda liderada por Margolin? Talvez no mesmo estrato de Snail Mail ou Soccer Mommy, mas não certamente no de Sharon van Etten ou Angel Olsen ou mesmo de Mitski.

Em várias entrevistas Stephen Malkmus, dos Pavement, perorou sobre as razões pelas quais os Pavement nunca atingiram o estatuto dos Nirvana: depois de Crooked Rain, Crooked Rain (o segundo álbum dos Pavement) toda a gente lhes dizia que iam explodir, contava Malkmus. Mas depois a explosão não aconteceu. Talvez as canções fossem demasiado esquisitas, elocubrava Malkmus, talvez não fossem suficientemente simples ou directas.

O álbum Crooked Rain, Crooked Rain de Porridge Radio foi Every Bad, o segundo disco lançado por uma editora (a banda tem um par de discos lançados em nome próprio antes) e aquele em que encontraram um modus operandi que garante o deleite do ouvinte canção após canção: dedilhados de guitarra que depois são dobrados por riffs infeciosos, explodindo no refrão, altura em que Margolin, além de garantir melodias apreciáveis, se esforça por dar cabo da garganta.

Se quiserem um exemplo disto em Clouds In The Sky They Will Always Be There For Me sigam até God of Everything Else, a quarta canção do álbum, que abre com uma lindíssima linha de violino que a acompanhará até ao fim, acentuando cada emoção. Margolin canta:

“Been trying to forgive myself
wishing I was somebody else
for wanting you to love me back
but it’s worse than that”

E quando o refrão chega nem são precisas guitarras a explodir, apenas violinos a ascender e aquela voz aos berros, suja, cheia de gravilha, a disparar contra o amado ausente que a acusa de ser demasiado intensa.

É um tratado de bem escrever, God of Everything Else”, e é impressionante que até então não tenha surgido uma canção que achemos assim-assim, que achemos que até podia não estar ali – a abertura, com Anybody, A Hole in the Ground”, Lavender, Raspberries e God of Everything Else é um espanto – e continua em Sleeptalker, na maravilhosa explosão das guitarras no refrão com os coros em fundo e os metais a bradar. Porquê, meu Deus dos ateus, porque é que esta malta não vende milhões?

Sejam quais for as razões para o relativo anonimato da música de Porridge Radio, não vender milhões leva a que as pessoas, para ganharem dinheiro da música, tenham de dar concertos sem fim para poderem comprar pão e o vinho. O que no caso delas levou Margoliin à exaustão após meses e meses de digressão a promover Waterslide, Diving Board, Ladder To The Sky (de 2022), que – valha a verdade – foi o primeiro disco da banda a chegar ao top 40 no Reino Unido (elas ainda não conseguiram entrar no mercado americano).

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Era importante promover Waterslide, Diving Board, Ladder To The Sky porque Every Bad fora nomeado para um Mercury Prize e de repente os astros pareciam ter-se alinhado – o feng shui do cosmos dizia que era naquele momento ou nunca, estava quase lá, vinha aí a explosão. Para uma banda que leva tão a sério explosões nos refrões seria absurdo desperdiçar a oportunidade de fazer Waterslide, Diving Board, Ladder To The Sky explodir.

Algumas bandas lidam com digressões exaustivas de forma profissional, como se fora mais um dia no escritório; mas Margolin diz não ser como a maior parte das pessoas – em entrevistas tem confessado que só recentemente se apercebeu que experiencia as suas emoções de forma muito intensa, como se nunca pudesse apenas sentir e ter sossego. O que, conclui, se torna a dada altura doloroso e extenuante.

Essa intensidade passa para cada canção mas, adianto já, ganha novos contornos em Clouds In The Sky They Will Always Be There For Me, o disco em que as Porridge Radio deixam de confiar exclusivamente nos riffs de guitarra, nas explosões e nos berros de Margolin e apresentam um naipe de soluções de composição, harmonias, arranjos e melodias que as eleva acima de tudo o que fizeram até hoje – há cordas, há metais, há pianos, há órgãos, há momentos mais lentos e, sobretudo, há espaço para a subtileza e para as canções respirarem (mas descansem, ela berra na mesma e com a mesma intensidade). É, aliás, a isso que ela se refere quando em God of Everything Else canta:

“You always said that I’m too intense
It’s not that I’m too much
You just don’t have the guts”

É um espanto, ver como Margolin expõe as suas fragilidades, inseguranças e falhas e consegue torná-las universais – o que se deverá a um maior cuidado com as palavras: desta feita ela escreveu as letras primeiro e diz que a escrita tem sido o seu refúgio, ao ponto de ter criado um Substack onde vai alinhavando ideias. Margolin estava ferida e esgotada – ironicamente, foi o trabalho de escrita que ajudou a cicatrizar e a revitalizar as forças perdidas numa digressão esgotante.

É de certo modo caricato que já se anuncie nova digressão (que passará pelo Lisboa ao Vivo em março do ano que vem, no dia 25), mais ainda tendo em conta que nos últimos tempos ela tem defendido o direito a dizer “Não”, aconselhando toda a gente a praticar a dita negação, porque ninguém conhece os nossos limites melhor do que nós próprios.

Só Margolin conhecerá os seus limites físicos e só ela saberá se já recuperou o suficiente para encetar nova digressão que se prevê esgotante – até porque Clouds In The Sky They Will Always Be There For Me é tão bom, é tão belo e tem sido tão bem recebido que o mais certo é que novas datas sejam adicionadas às que já estão previstas e a banda dê por si longo tempo na estrada.

A possível boa notícia é – e admito desde já o egoísmo contido nesta afirmação – que se ela tiver novo burnout pode ser que faça novo grande disco, onde testa os limites da sua escrita e da sua composição. É sempre assim, nos melhores casos: o artista sofre, cria e do sofrimento nasce a beleza, que nós egoisticamente fruímos. Beleza não falta, neste maravilhoso Clouds In The Sky.

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