“Quando a guerra acabar quero abrir uma cafetaria em Kiev”. Este era o desejo que Valentina Nahorna tinha, segundo revelou ao Observador, para o seu futuro após o fim da Guerra na Ucrânia. Já não o vai cumprir. A enfermeira da 3.ª Brigada de Assalto, uma ramificação do Batalhão Azov, morreu aos 29 anos na linha da frente ao serviço do exército ucraniano, no Donbass, vítima de um ataque russo contra as tropas ucranianas, confirmou o Observador com fontes do exército ucraniano.

Valentina Nahorna foi uma das histórias em destaque na reportagem multimédia do Observador “Wagner: Dentro da máquina de guerra de Putin“, que foi recentemente premiada com o prémio Gazeta Multimédia e que deu origem ao livro Wagner: A Máquina de Guerra de Putin (Tinta da China, setembro de 2024). O Observador encontrou-se com a enfermeira na região (o Donbass) onde esta acabou por morrer, perto de Bakhmut e da linha da frente, onde os combates entre Ucrânia e a Rússia são mais intensos.

O nickname de Valentina era Valkyria, nome pelo qual era conhecida e pelo qual é recordada entre os soldados. “Valquíria foi um exemplo de dignidade e força. Ela sempre procura aprimorar as suas habilidades para ajudar quem precisava de uma forma ainda mais eficaz. O seu percurso é um exemplo para todos nós: o caminho da coragem, da determinação e do constante avanço”, escreveu a 3.ª Brigada de Assalto.

Segundo a imprensa ucraniana, que já noticiou a morte, a chefe de serviço médico do batalhão, Victoria Kovacs, e a voluntária Lilia Matveeva relataram que Valentina morreu junto com o namorado, Danylo Bersek, que era soldado da Terceira Brigada de Assalto. “Eles lutaram juntos, amaram juntos, estarão juntos no escudo… Que suas almas estejam sempre juntas. Para sempre na fila! Valquíria e Berserk”, disse Lilia Matveeva citada pela imprensa ucraniana.

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Ainda no final de dezembro de 2023, quando a reportagem do Observador foi publicada, Valentyna Nahorna divulgou-a nas suas redes sociais — através das quais se tinha tornado numa pequena estrela do exército ucraniano, com mais de 23 mil seguidores.

Pode, rever aqui toda a reportagem:

Wagner. Dentro da máquina de guerra de Putin

Valentyna Nahorna, a manicure que a guerra fez cirurgiã

Valentina Nahorna encontrou-se com o Observador numa tarde quente do final de agosto de 2023. Começou por pedir que não fosse fotografado nada que identificasse o espaço e a conversa acabou por decorrer num abrigo de betão. A enfermeira da brigada Azov tratava de situações de emergência que chegavam das batalhas ali bem perto, na zona de Bakhmut. Fazia suturações e outros procedimentos de trauma essencialmente a soldados ucranianos, mas também era chamada a cuidar do inimigo — tratou “uma dezena de Wagners”.

Revelava então ao Observador ter um dilema moral: “Honestamente, não tenho vontade nenhuma de os ajudar, porque se vieram para a nossa terra, basicamente deviam ficar cá”, confessa. Mas depois havia um sentido de missão: “Tento não pensar e simplesmente faço o que é preciso fazer”. A enfermeira, que era tratada pelos outros soldados como “médica”, garantia:  os russos “têm exatamente o mesmo tratamento que os nossos rapazes [os soldados ucranianos], a única diferença é que só vamos cuidar do inimigo quando os nossos já têm todo o tratamento”.

Valentina Nahorna tem a alcunha de Valkyria e colocava no Instagram fotografias dos cuidados médicos que faz. Quando falou com o Observador tinha 19,1 mil seguidores, que já eram mais de 23 mil no dia em que morreu. Partilha imagens de crânios abertos, de abdomens esventrados, mas sempre com uma confiança inabalável: “Ele vai ficar bem”; “Todos vivos”; “Estamos a trabalhar para que ele possa ir tomar o pequeno almoço com a mulher”. O tom é de superação e heroísmo, que contrasta com o lado mais sádico com que trata o inimigo. Depois da entrevista, Valentina fez chegar ao Observador fotografias que não colocou online: são selfies com combatentes do grupo Wagner que tratou.

Muitas vezes, Valentina, como confessava ao Observador, conseguia obter “informações úteis” dos doentes inimigos sobre “as posições onde estavam localizados e o tipo de equipamento que utilizavam”, mas confessa que não tem instruções específicas dos SBU para extrair informação. “Em geral, os nossos rapazes [dos serviços de inteligência] levam-nos para outra sala e é lá que eles falam”, explica.

A enfermeira dos Azov dizia ao Observador que as situações mais “assustadoras” que vive não são aquelas em que tem de “colocar um intestino para dentro”, mas sim aquelas em que “trazem os teus amigos em sacos”. O caminho para ali chegar foi quase tão sinuoso como o quotidiano que vivia. Valentina era manicure e estava de folga no dia 24 de fevereiro. “A minha mãe não parava de gritar que a guerra começou”, contou ao Observador. “Levantei-me calmamente, fiz o meu pequeno almoço, tomei banho, fiz a mochila e mandei mensagem aos meus amigos dos Azov: ‘Estou pronta, o que preciso fazer?”. Às 10h00 já estava numa base numa fila de recrutamento, mas disseram-lhe: “Não estamos a recrutar mulheres“.

A então manicure, que estava a estudar para técnica de desenvolvimento farmacêutico, é, após insistência, encaminhada para um mini-curso de primeiros socorros, onde aprendeu o protocolo M.A.R.C.H. A partir daí foi para a frente de batalha, fez vários cursos e agora era uma espécie de cirurgiã na primeira linha. Só ia a casa a espaços e queixava-se da forma como não era valorizada quando ia a Kiev. Chegou a revelar que se sentia incomodada por os ucranianos de Kiev levarem a sua vida normalmente.

No fim da entrevista ao Observador, há pouco mais de um ano, Valentina Nahorna apressou-se a seguir para o hospital de campanha, de localização secreta, que estava a receber todos os feridos da zona de Bakhmut. Não tinha planos para os próximos meses. Nem anos. “Vou ficar pelo exército muitos anos”, reiterava, na previsão de uma guerra longa. Mas não deixava de sonhar: “Quando a guerra acabar quero abrir uma cafetaria em Kiev”. É um desejo que já não vai cumprir.

*Com Iaroslav Oliinyk