Moçambique com Z de Zarolho surpreende pela premissa — e também pela forma como o autor leva a cabo a proposta que faz dentro do território da ficção. É um romance virado para a vida, inerentemente social, com personagens que, sendo densas e capazes de dar de si individualmente ao leitor, não deixam de existir também pelo que representam na cadeia da sociedade moçambicana. E a ficção aparece como esse lugar mágico em que se podem levar às últimas consequências propostas antes de serem postas em prática, servindo como lugar de teste – cada romance, aliás, é uma hipótese. Ao fazer-se esse exercício, o leitor confronta-se com uma possibilidade que leva a outra possibilidade, culminando a leitura no enfrentamento de uma unidade orgânica, de uma realidade calibrada. É isso que Mutimucio faz aqui. Em primeiro lugar, parte de uma hipótese: o governo moçambicano a querer instituir o inglês como língua oficial. A seguir, testa o caminho, vai dando respostas, vai montando a vida. Com um degrau a levar ao outro – ou seja, um parágrafo a encaminhar-se para outro –, a narrativa monta-se mostrando não só o impacto na vida das pessoas, mas também as motivações que sustentam a proposta no parlamento, e isto sem nunca impedir que laivos de humor pontuem o romance.
Enquanto a narrativa se desenvolve, o leitor vê de que forma a mudança tem impacto na vida das pessoas, e dos dois lados da vida. Por um lado, dos privilegiados que a rejeitavam: Djassi, político que votou contra, vê-se a braços com a vida real, tendo de pedir favores aos adversários políticos de forma a que o filho consiga uma bolsa em Londres, uma vez que, ao abandonar-se a língua portuguesa, os estudos em Lisboa, já planeados, seriam um tiro furado; Hohlo, seu empregado doméstico, que se levanta de madrugada para apanhar o chapa e acordar os patrões, sonha com outra vida, e o sonho implica a escada social que, no seu entender, só o estudo permite, mas o estudo dá uma reviravolta com a nova língua, e a própria escola dispensa-o por não estar entre os grupos prioritários que devem aprender o inglês.
Tudo sabe a tragicomédia. E, sendo evidentemente ficção, o livro respira como a vida, uma vez que o romance vai mostrando as diferenças de status num país que, tendo as suas línguas, viu ser imposta outra. Em meia dúzia de pinceladas – com uma prosa rápida, incisiva –, o autor traça o deus-dará que é a imposição de uma nova língua, assim como a relação hierárquica colonial entre as línguas de cada país.
Livro: “Moçambique com Z de Zarolho”
Autor: Manuel Mutimucuio
Editora: Edições 70
Páginas: 114
Ao longo da narrativa, há pormenores que não apenas compõem a psique da personagem como compõem o lugar de onde vêm, oferecendo a relação de forças de um país. E aparecem de forma elegante, orgânica, célere. Em meia dúzia de palavras, traça-se um quadro. Note-se esta maravilha:
– Cozinhar arroz, fritar batatas e assar um frango. Não encher arroz. Isto não é um quartel.”
A chamada de atenção da patroa estava clara. Hohlo deliberadamente fazia muito arroz, porque sabia que lhe seriam doadas as sobras que competiam por espaço na geleira da família Costa. (…) Procederia conforme indicado, mas haveria de tentar a sua sorte com o óleo de cozinha. Era-lhe também sempre dado o resto do óleo dos fritos para levar para casa. Para garantir uma quantidade razoável, iria fritar as batatas da ementa do dia numa verdadeira piscina de óleo.” (p. 21)
O autor parte da premissa ficcional, mas nunca reduz o romance a esse jogo, à criação de uma realidade autónoma per se. Cria-a, claro, e o romance não deve ser lido de forma documental, uma vez que não tenta chapar a realidade, mas, partindo do que só a ficção pode dar, retrata-a. Ao longo das suas páginas, não há frases a mais, não há informação que seja palha. Tudo compõe as personagens e tudo compõe o contexto. Desde a forma como a patroa de Hohlo o trata (“Queres fazer-nos perder emprego para sermos uns coitadinhos como tu?”, p. 17) à forma como é visto que um negro trabalhe para um negro, tudo tem substrato social. Assim, o contexto, mais do que simplesmente dar cenário à acção, possibilitando-a, constitui-a, não se desligando nunca da premissa ficcional. E, nisto, tudo vai sendo um jogo de forças, ninguém existe como coisa una, desligada da teia: “dizer-lhes que o seu patrão era deputado da Assembleia da República nunca seria suficientemente forte para suplantar o facto de que ele trabalhava para um mulandi” (p. 16). As questões de desigualdade racial estruturam parte da narrativa, seja pela ligação às línguas (o inglês ou o português), seja porque a questão da branquitude como revelação de poder nunca é posta de lado: “Deus não é maluco para ter determinado que patrão e branco em changana sejam a mesma palavra” (p. 16).
Com uma prosa escorreita, funcional, sem solavancos, Manuel Mutimucuio faz uma proposta ficcional que resulta num romance calibrado, uma vez que não só ata as pontas do enredo como consegue dar uma visão panorâmica de um país. Ao leitor, é fácil ver o que é ficção, mas, mais importante do que isso, é fácil, e surpreendente, ver o que é vai beber directamente à vida.
A autora escreve de acordo com o antigo acordo ortográfico