Na novela gráfica Crónicas de Jerusalém (traduzida por Paulo Salgado Moreira), Guy Delisle narra o ano que passou em Israel a acompanhar a missão diplomática da mulher nos Médicos Sem Fronteiras, em Gaza, integrando assim estas crónicas numa tetralogia, publicada pela Devir, onde o cartunista canadiano vai descrevendo a sua experiência em contextos relativamente semelhantes (China, Coreia do Norte e Birmânia).
Nesse sentido, uma vez que Delisle cai desamparado, sem pára-quedas, em realidades muito distantes da sua, talvez a banda-desenhada seja o meio certo para contar estas histórias, por reduzir em traços semi-caricaturais uma realidade extraordinariamente complexa.
Em muitos aspetos, Guy Delisle é a epítome de um ocidental igual a quase todos nós: ao chegar a Jerusalém sabe muito pouco, quase nada, sobre o conflito israelo-árabe, não tem uma apurada sensibilidade religiosa e faz orelhas moucas a argumentos patrióticos. Isto leva, claro, a que encare os israelitas e palestinianos com que se cruza como bichos estranhos e insondáveis que em alguns momentos parecem saídos diretamente da Idade Média.
Poderia agora o leitor supor que invoco estas limitações de Delisle para criticar o livro. Na verdade, parece-me que esse é o maior interesse de Crónicas de Jerusalém: ainda que possamos aprender acerca do quotidiano e da história de Israel com o livro, o que Delisle capta de forma mais arguta é precisamente a incomunicabilidade cultural, que aumenta os dramas não-ocidentais ao impedir que europeus e norte-americanos se imaginem por um segundo na pele destes desgraçados.
A família de Delisle (Guy, a mulher e os dois filhos do casal) vive num bairro palestiniano muito procurado por expatriados simpatizantes com a causa palestiniana, onde por isso edifícios amplos e faustosos crescem lado a lado com enormes bairros de lata. Isso levará a que Delisle passe o primeiro mês sobressaltado com os altifalantes da mesquita que convocam os muçulmanos para a oração, acordando assim as crianças. Nos primeiros tempos, o cartunista sentirá ainda dificuldade em ir às compras ou visitar pontos turísticos no sabat, o que tem o aspeto curioso de reduzir o dia do Senhor, criador do universo e de todas as coisas visíveis e invisíveis a um contratempo logístico. Delisle narrará também a sua dificuldade em estabilizar um horário de trabalho devido às vicissitudes das creches dos filhos, que encerram no dia santo muçulmano (sexta-feira), no dia santo judeu (sábado) e no dia santo cristão (domingo).
Título: “Crónicas de Jerusalém”
Autor: Guy Delisle
Tradução: Paulo Salgado Moreira
Editor: Devir
Páginas: 336
Estas dificuldades burocráticas parecem culturalmente insensíveis, uma vez que, como sabemos, a população palestiniana enfrenta dificuldades bem mais prementes e menos prosaicas do que as acima indicadas. Contudo, ao narrar a sua frustração expatriada, tornando estas crónicas em certa medida aplicáveis às dificuldades de um casal parisiense que enfrente a burocracia de Campo de Ourique nas pausas dos seus trabalhos remotos, Delisle mostra como um ligeiro incómodo influencia mais o nosso bem-estar do que o martírio de milhões, que o perturba sobretudo nos dias em que a mulher fica retida em Gaza. Poderíamos encarar isso como sinal do nosso incompreensível egoísmo, mas talvez seja mais acertado imaginar que é esta, afinal, a única maneira que temos de sobreviver ao horror do mundo, não sendo uma coincidência que durante várias páginas acompanhemos a tragédia de Delisle quando deixa cair as chaves do carro no intervalo entre as portas do elevador.
Os muros que abundam em Jerusalém são, assim, dramáticos não por se tratarem de manifestações bastante concretas da intolerância mútua que abunda na região, mas porque impedem Delisle de desenhar, tal como a principal consequência de um estado de sítio permanente é o incómodo de se passar horas e horas no controlo de vistos do aeroporto.
Ao lermos as Crónicas de Jerusalém, imaginamos a cidade como o paraíso dos ativistas de redes sociais, uma vez que a mais pequena atitude, como ir às compras ou alugar uma casa, ganha imediatamente contornos políticos, visto que os colonatos têm uma oferta muito mais ampla e barata, mas recorrer a ela implica em certa medida patrocinar a ocupação da Palestina. Quando uma personagem cede, sentimo-nos convidados a condenar a sua falta de compromisso com a causa, até nos lembrarmos de que ela está ali para arriscar a sua vida em nome da solidariedade e da defesa dos direitos humanos, de uma forma talvez mais louvável do que a criação de stories no Instagram.
No entanto, a incompreensão e o espanto de Delisle vão além da questão política. Delisle é absolutamente insensível ao aspeto religioso do conflito. Percebemos isso mesmo quando o protagonista visita o Santo Sepulcro e é apenas capaz de comentar “Eh! Que giro, há imensas cruzinhas!”. Ao chegar a casa, remata o episódio com um pouco original “Ah, obrigado, meu Deus, por teres feito de mim um ateu”, sendo o seu agradecimento em parte devido à rejeição da violência perpetrada por motivos religiosos, mas em parte também por o seu ateísmo lhe permitir escapar ileso à complexidade de uma vida religiosa que não compreende. Delisle escarnece de questões centrais para a vida das pessoas que tenta compreender, o que o aproxima da posição sobranceira e altiva que nós, ocidentais, ocupamos em relação a este conflito. Essa ideia é, aliás, repetida mais à frente quando Delisle visita Massada, onde há muitos séculos um grupo de judeus preferiu suicidar-se a converter-se à religião dos romanos, o que deixa o protagonista atónito e indignado. Noutro ponto, sugere que os samaritanos teriam uma excelente reputação no Novo Testamento, quando a célebre parábola a que alude assenta precisamente no espanto de até um samaritano poder ter gestos caridosos. Nessa altura, conhece um samaritano que diz que toda a verdade está contida nos textos que traduz, o que leva o protagonista a tentar, sem sucesso, pensar numa pergunta que queira fazer a alguém omnisciente.
Por fim, e em parte devido a esta insensibilidade religiosa, Delisle mostra-se uma e outra vez (particularmente no último terço do livro) absolutamente incapaz de perceber o motivo que levaria alguém a optar por mudar-se para Israel quando poderia viver confortavelmente no Ocidente, bem como parece incapaz de entender os motivos dos palestinianos, que preferem morrer na sua casa do que partir em busca de uma vida melhor. Nessa perspetiva, talvez a melhor personagem destas crónicas seja o casal brasileiro que decidiu escapar à criminalidade e violência do Brasil procurando refúgio em Israel, sendo que o interesse deste casal não reside na sua história mas no interesse que Delisle parece ter por ela, vendo erradamente nestes judeus brasileiros o símbolo máximo das contradições que imagina abundarem em Jerusalém quando se trata apenas de um casal incoerente que acabou em Israel por engano e que agora pretende fugir dali para o Canadá.
Crónicas de Jerusalém é, assim, a história de um cartunista igual a todos nós que, preso durante um ano no epicentro das três religiões abraâmicas, conclui: “Como região, acho que é um bocado fatigante”.