10h30 da manhã, Colombo, faltam 30 dias para o Natal. Tendo em conta que odeio centros comerciais nas mais variadas circunstâncias, o expectável seria esta que vos fala apresentar o semblante de quem foi para as finanças às seis da manhã para apanhar senha e quando chega à sua vez, às 15h33, com um papo seco com queijo e um café manhoso no bucho, é informada que “ficámos sem sistema, agora só amanhã”. Surpreendentemente, não era o caso. A minha felicidade era tal que na minha cabeça irradiava um aroma a flores do campo e um bando de pequenos melros e uma outra borboleta eram a minha entourage, qual Branca de Neve. O visionamento de Wicked para a imprensa aconteceu no dia 26 e eu fui, felicíssima da vida. Uma sala de cinema sem indivíduos a atender chamadas “agora, não posso que estou no cinema, mas diz rápido…”. Sem luzes de telemóvel, porque “se não vir as DMs durante um par de horas, a continuidade da espécie pode ficar em perigo”. Sem criaturas que aparentam almejar fazer audio-descrição na RTP: “Vão-se beijar… Olha, morreu…Grandas mamas!”.
Antes de abordar o filme, um ponto prévio: adoro musicais e isto é um texto de quem já viu o Moulin Rouge mais vezes do que seria saudável, que tem como ritual ver o Música no Coração todos os Natais já com um tirinho na asa e que já imitou coreografias do West Side Story na presença de estranhos. Os musicais dão-me alegria, só isso. Chamem-me parola à vontade. Já me chamaram “Quim Barreiros de saias e falando estrangeiro” na caixa de comentários. Nunca percebi o exato sentido da oração, mas adorei. O meu primeiro contacto com Wicked acontece na primeira temporada de Glee. Não fui até ao fim da série, mas delirei com as primeiras temporadas e vejo quase tudo do Ryan Murphy, até hoje. No nono episódio da primeira temporada, Kurt e Rachel cantam Defying Gravity, o tema que fecha o primeiro ato de Wicked e que é, digo sem medo, uma obra-prima. Obcecada que fiquei, escarafunchei o que havia no YouTube à data. Quando anunciaram a versão para cinema, aproveitei para tentar ver o musical completo, tarefa que completei com sucesso. É, de facto, uma maravilha, o que me trouxe um reforço de medo e entusiasmo pelo que vinha aí. E não é que veio por bem?
[o trailer de “Wicked”:]
Wicked, Parte I, que se estreia no grande ecrã esta quinta-feira, dia 5 de dezembro, é a adaptação do musical homónimo. Na verdade, de metade dele, como o próprio nome indica, sendo que a parte II estreia-se daqui a um ano. Tem como protagonistas Elphaba e Glinda, nomeadas no filme O Feiticeiro de Oz por a Bruxa Má do Oeste e a Bruxa do Norte, respetivamente. E conta como as duas não foram sempre arqui-inimigas e porque é uma é considerada tão boazinha e a outra ruim como as cobras. E será que estas personagens são mesmos estes arquétipos do bem e do mal, tão monocromáticas no carácter como na estética? O filme começa com a celebração da morte da Bruxa Má do Oeste (Cinthya Erivo), apadrinhada por Glinda (Ariana Grande), a mais amada das criaturas. A Catarina Furtado de Oz, digamos assim. Esse momento espoleta um flashback para o momento em que se conheceram na Universidade de Shiz e é aqui que começa a viagem de Wicked.
Elphaba foi rejeitada desde a nascença pelo pai, por ter nascido um nenuquinho cor de absinto (ninguém me tira da cabeça que este Governador Thropp era lampião) e essa havia de ser a reação de todos quantos se cruzariam com ela ao longo do seu crescimento. A Universidade de Shiz não é exceção, onde vai apenas para acompanhar a irmã, mas acaba por assentar arraiais porque a sabidona da Madame Morrible (a oscarizada Michelle Yeoh de Tuado em Todo o Lado ao Mesmo Tempo), figura académica proeminente, se apercebe dos poderes de Elphaba, poderes que ela tenta esconder e não consegue controlar. Graças a um equívoco, vê-se companheira de Glinda, uma crowd pleaser, com uma adição grave ao cor-de-rosa, que nunca ouviu um não na vida.
A partir daqui, temos um plot clássico de inimigas a amigas/popular VS proscrita. Por outro lado, temos um triângulo amoroso, because why not. Jonathan Bailey interpreta o objeto de desejo (e ninguém aqui as vai julgar por isso), um dos atuais namoradinhos da Internet, mais conhecido por interpretar Anthony Bridgerton. Egocêntrico, irresponsável, poucochinho à primeira vista, Fiyero parece a meia laranja da rosa Glinda mas, para espanto do próprio, o verde fala-lhe ao coração. Já como Feiticeiro de Oz, temos Jeff Goldblum. E é o Jeff Goldblum, portanto, elogio é pleonasmo. Um cast imponente, não há como negar. E eu tenho um rançozinho, confesso, pela Ariana Grande. Não sei se é o rabo de cavalo. Não sei se é de a ter achado muito azeiteira desde sempre, apesar de com o tempo ter passado para uma versão mais Air Fryer. Canta nas horas? Sim. Passou uma vez que fosse pelo meu Spotify? Jamais.
O filme é realizado por Jon M. Chu, que dirigiu objetos tão díspares como dois documentários sobre o Justin Bieber, em 2011 e 2013, Gi.I. Joe: A retaliação, o pop Crazy Rich Asians e o também musical In the Heights (amei a música, o filme é meio merda). Parece que faz as opções de carreira com base num pedra papel ou tesoura, mas desta vez gostei. Muito bem cantado, dançado e filmado. Para lá de respeitar o formato original, não só não descura a história, como nalguns casos atreve-se a explorar mais a fundo as personagens. Especialmente no caso de Elphaba, acredito que muito graças à extraordinária Cinthya Erivo. A atriz pega numa personagem que tinha tudo para ser caricatural (afinal de contas é uma bruxa com um chapéu pontiagudo e a pele totalmente verde) e enche-a de humanidade. Querem saber o que eu achei da Ariana, não é? Vou tentar ser justa e honesta. Uma das coisas que mais gosto neste musical é o quão cómico ele é e essa comicidade está muito assente na personagem interpretado por Ariana. E ela não vai mal, mas não tem cabedal humorístico para esta personagem. Sorry, not sorry. Thank u, next. Melhor sorte na parte II.
Mas há toda uma yellow brick road que sustenta este universo consecutivamente bem sucedido e acho que vale a pena recordar, até porque começa no início do século passado, é coisa para meter respeito. Em 1901, o escritor L. Frank Baum e o ilustrador Denslow lançam o livro The Wonderful Wizard of Oz (alguém que lê o título e não começa a trautear mentalmente não tem coração). Bestseller instantâneo, é transformado num musical e é apresentado em 1903 pela primeira vez, na Broadway. Saltando para 1939, estreia o filme com que Judy Garland e os seus sapatinhos vermelhos conquistaram um lugar na história do cinema. Fun fact (ou como os musicais são sempre prejudicados junto da Academia): embora só tenho ganhado os Óscares de Melhor Banda Sonora Original e Melhor Canção Original com a icónica Over the Rainbow, O Feiticeiro de Oz foi eleito pelo American Film Institute, o melhor filme de entretenimento familiar de todos os tempos. Já em 1995, que é como quem diz há quase 30 anos, Gregory Maguire lançou o livro Wicked: The Life and Times of the Wicked Witch of the West e mais uma vez não tardou muito para que esta nova história do universo de Oz, ganhasse vida na Broadway. Em 2003, mais precisamente. O multipremiado musical Wicked: The Untold Story of the Witches of Oz é o quarto espectáculo com mais tempo em cartaz na história da mais famosa e influente indústria do teatro musical.
Agora que já puxei dos pergaminhos do passado, passo a explicar porque é que a partir deste dia 5 de dezembro se devem sujeitar às agruras de uma grande superfície comercial em época de consumismo desenfreado, tendo como banda sonora mais que provável um loop de Mariah Carey, a dizer que passa bem sem presentes, só quer o bofe dela para lhe aquecer o presépio. E pessoas que dizem que não gostam de musicais, porque as pessoas na vida real não desatam a cantar: pessoas na vida real fazem o que se faz nalguns dos mais bem sucedidos blockbusters da história? Tipo James Bond? Star Wars? Velocidade Furiosa? O Vin Diesel se pagasse o seguro daqueles carros, eu queria ver como é que era.
Mas Wicked é sobre pessoas e como interagem umas com as outras. No século passado e sempre. É sobre a amizade na diferença. Embora Ariana não me convença no registo cómico, a contra-cena com Cynthia fez-me chorar mais vezes e com mais intensidade do que gostaria de admitir, se tivesse algum tipo de vergonha na cara. Que claramente não tenho. Wicked é sobre preconceito, sobre perceções de segurança e ameaça e sobre a narrativa do inimigo comum, como mecanismo de poder. Porque nestas duas horas e quarenta de óculos 3D, vemos e ouvimos de tudo: uma estrada de tijolo amarelo em construção, bailarinos que nos dão vontade de pagar uma inscrição na Alunos de Apolo, cenários de todas as cores, formas e feitios, interpretações comoventes, vozeirões que dão vontade de nos levantarmos e gritar “Bravo!” (mesmo que o Rui Pedro Tendinha esteja na mesma fila, true story), uma direção de arte que é um sonho, um professor de história que é um bode e frases como esta: “If you make it discouraging enough, you can keep anyone silent”. Vão ver e ouvir o Wicked.