Impressiona, não há como negá-lo. Em 1989, Richard McGuire, escultor e ilustrador na The New Yorker, publicou Aqui, uma história de seis páginas a preto e branco, na revista Raw, de Art Spiegelman e Françoise Mouly. Em 2014, essa história foi expandida, usando cores, para 304 páginas, versão que trazemos agora. Em cima da mesa, temos uma experiência que rompe com a tradição narrativa, trazendo-nos uma visão assíncrona sobre um espaço.
Na novela gráfica, McGuire mostra o mesmo espaço em diferentes pontos no tempo: uma sala da casa em que cresceu, em Nova Jérsia, a 45 minutos de Manhattan. Isto tanto inclui décadas diferentes, já com a casa construída, como inclui momentos durante a construção ou ainda momentos muito anteriores, um milhão de anos para trás, ou séculos à frente.
Com isto, parece que várias histórias vão sendo contadas, mas no fundo conta-se uma, a que por ali passou. Num registo gráfico impressionante – com várias imagens de pontos temporais diferentes na página dupla –, é difícil ao leitor saber para onde se virar, uma vez que não está protegido pela narrativa linear que lhe encaminharia o sentido. Há momentos em que uma imagem se sobrepõe à outra, de outra época, mostrando-se fragmentos do mesmo espaço em simultâneo. Ao invés de várias narrativas desenvolvidas ao mesmo tempo, parece que vai havendo sobreposição ocasional, obrigando o leitor a participar na narrativa, preenchendo os espaços, e sabendo sempre que o que está é diferente do que esteve. Assim, não há como olhar de forma estática para nenhum dos quadrinhos, uma vez que se vê, em simultâneo, o edifício e o campo que lá existia milhares de anos antes, assim como a vida humana a evoluir (outras línguas, outras roupas, outras formas de sociedade).
Título: “Aqui”
Autor: Richard McGuire
Tradução: Raul Henriques
Editora: Cavalo de Ferro
Páginas: 304
O trabalho, por isso, é amplo, não se confinando à coesão narrativa de um enredo linear. Em vez disso, McGuire aposta na não-lineariedade, embora tal não o faça desistir de ter em mãos uma coisa calibrada. O calibre, claro, é de ordem distinta do habitual. Na mesma página dupla, pode ver-se, por exemplo, a paisagem de 300500000 a.C., um piquenique em 1870 e uma flecha de 1402. Enfim, é um projeto ambicioso e magnânimo que resulta mais numa experiência de leitura do que numa leitura em si. Ou seja, à medida que vai folheando, o leitor sente que lhe são despertados os sentidos, que o ato de ler é coisa sensorial, que lhe cabe ligar os fios.
A experiência de leitura, ao invés de ser caótica, vai tendo elementos de complementaridade. O leitor, ao ver perante si épocas diferentes, vai observando o espaço com todo o seu potencial, com toda a sua realidade, o que é, o que foi, o que será, e com isto vê o contraste entre os tempos – as formas de vida, a roupa, as formas de tratamento, os atos, a evolução das espécies e da natureza. Em termos gráficos, é um festival, permitindo ver tudo em simultâneo, com traço rijo e cores sólidas.
Mesmo nas décadas em que a casa já está construída, e nos diálogos que vão sendo apresentados, muitas vezes com vozes vindas de longe, e balões que tragam as vozes para a sala vazia, tudo é sugestão. O autor vai dando pequenos apontamentos de vida, como registos de fotografias ou de datas festivas, e, para o leitor, é comovente ver a vida a estender-se à sua frente, nunca se perdendo uma certa ideia de nostalgia do que houve. É que não há como evitar pensar que tudo o que se vê é efémero, que tudo o que aparece já passou ou está prestes a passar. Até o presente se transforma em pretérito passado com a inclusão de vinhetas do futuro. Naquela sala, conta-se, enfim, a história da Humanidade, e o vazio que a nostalgia deixa – os tais quadrinhos do passado que não volta – torna-se mais contundente com o vazio total da paisagem, milhares de anos antes do nosso tempo. E, como McGuire não facilita na tarefa de unir os pontos, eleva a fasquia dos ficcionistas, dos criadores de arte: não só não abdica do pormenor, como o usa para dar o panorama, criando um livro multidimensional, caleidoscópico. Em cada pequena coisa, há milhares de outras coisas. O espaço, claro, é o mesmo, mas nada é estanque, e o leitor vê o movimento até na paisagem aberta, sem nada, quase à espera do porvir.
Havendo uma linha cronológica, para o leitor, parece que a vida acontece ao mesmo tempo, porque a experiência de leitura é forçosamente múltipla. Com isto, a própria ordem que McGuire apresenta aos leitores também não tem de ser seguida, podendo a leitura ser também não-linear, quase sensorial, como quem monta um puzzle e brinca com a passagem do tempo, vendo as famílias norte-americanas do século XX, mas também as tribos nativo-americanas que andaram naquele espaço, ou os dinossauros que por lá passaram, ou mesmo os movimentos glaciares que culminaram naquele espaço. De repente, em vez do confinamento de uma sala, temos o planeta à frente.
Aqui, ainda que vá tendo gente a fazer o papel de personagens, é uma novela gráfica sobre ninguém. Em vez disso, o tempo é o protagonista, e a acção é o movimento inerte de o ver passar, e os quadrinhos são fragmentos que permitem apanhar-lhe os pontos. Num trabalho de fôlego, McGuire rompe com a linearidade sequencial da arte, oferecendo a vida entre 80 milhões de anos para trás e o ano 2213, mudando o tom consoante a época e criando uma experiência de leitura independente da ideia de causa e efeito. Partindo de uma sala, ao invés de contar a história de uma família, de uma cidade, de um país, temos a história do planeta. Não só não é coisa pouca, como é mesmo quase tudo.
A autora escreve de acordo com a antiga ortografia