O antigo primeiro-ministro José Sócrates considerou este sábado “absolutamente chocante” a criação de um grupo de trabalho pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM) para seguir o processo Operação Marquês, assegurando que essa decisão viola a lei.

“A decisão de constituir um grupo de trabalho por parte do CSM para acompanhar de perto o processo Marques é ilegal e contra a Constituição. Trata-se no fundo de estabelecer uma tutela administrativa sobre o poder jurisdicional num processo criminal em concreto. O propósito deste grupo de trabalho é evidente: limitar o direito de defesa e pressionar os juízes a tomar decisões desfavoráveis aos visados“, afirmou o ex-governante em conferência de imprensa num hotel na Ericeira.

Sublinhando que a deliberação do CSM, avançada em primeira mão pelo Observador, “não tem um critério genérico” e que visa “um processo de exceção”, José Sócrates defendeu que esta situação “põe em causa a universalidade da lei” e a liberdade e independência dos juízes.

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“A partir de agora passamos a ter uma jurisdição dicotómica: uma jurisdição para os processos comuns e outra para o processo Marquês. O Conselho tem competência para avaliar e fazer juízos críticos ao que aconteceu num processo no passado, o que não tem competência é para condicionar o futuro de um processo, para influenciar o que se vai passar”, observou, resumindo: “Constitui um descarado abuso de poder“.

Sócrates vincou que os juízes que vierem a intervir no processo Operação Marquês — no qual o juiz desembargador Francisco Henriques, da Relação de Lisboa, proferiu um despacho a ordenar a descida à primeira instância para arrancar com os procedimentos para o julgamento — “sentirão sobre os seus ombros os olhos inquisitoriais” do grupo de trabalho constituído pelo CSM e acrescentou que recorreu dessa deliberação para o plenário do organismo de gestão e disciplina dos juízes.

“Esta decisão tem uma óbvia motivação política: o grupo de trabalho representa a fartura exposta de uma sistema judicial que está politicamente viciado. Esta semana mesmo entreguei um recurso para o plenário; é o primeiro passo para impugnar esta decisão. Quero conhecer a opinião de todos os membros do Conselho; obtida a resposta, estudaremos os próximos passos”, explicou.

Decisão da Relação de descer processo para julgamento “é um abuso”

Sobre a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de mandar descer o processo Marquês para a primeira instância a fim de dar início aos procedimentos para o julgamento, o ex-primeiro-ministro considerou “um abuso”. Sócrates criticou ainda o juíz desembargador Francisco Henriques por querer transformar o acórdão de janeiro que o pronunciou juntamente com outros 21 arguidos por 118 crimes “num acórdão transitado em julgado”.

Não é possível que um acórdão de janeiro entre em vigor sem antes se esgotarem os recursos. O juiz quer por em causa os direitos da defesa e o direito a recorrer. Já o fez há seis meses, quando impediu um recurso e não aceitou, foi obrigado agora a aceitar por decisão do Supremo. Agora, faz a mesma coisa: manda para baixo um processo cuja configuração não tem ainda uma decisão final, porque o acórdão de janeiro não transitou em julgado e não vai transitar sem que estejam esgotados todos os recursos”, frisou.

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Para o ex-governante, que foi pronunciado nesse acórdão de janeiro por 22 crimes (três de corrupção passiva, 13 de branqueamento de capitais e seis de fraude fiscal), a decisão do desembargador representa “um abuso que nunca foi visto” na justiça portuguesa, por entender que, neste momento, no processo Operação Marquês não há “acusação nem pronúncia”.

“O que é efetivo neste momento é ainda a decisão do juiz Ivo Rosa de abril de 2021. Essa decisão considerou que todas as acusações eram fantasiosas. Caíram todas e é essa situação, que, no preciso momento em que estou a falar convosco, é efetiva. O acórdão de janeiro não transitou em julgado, não produziu efeitos na realidade e, portanto, a única decisão que deve ser considerada é a de abril de 2021”, referiu. E deixou uma garantia: “Não pode haver julgamento nenhum“.

O acórdão de janeiro da Relação de Lisboa que determinou a pronúncia de Sócrates e de mais 21 arguidos por 118 crimes económico-financeiros foi descrito como “infame” pelo antigo primeiro-ministro. Ao ataque à tese de “lapso de escrita” relativamente à acusação do Ministério Público (MP) concluída em 2017, Sócrates assegurou que vai combater “com toda a energia” enquanto o acórdão de janeiro de 2024 não tiver transitado em julgado.

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José Sócrates invocou argumentos de resposta das desembargadoras Raquel Lima, Madalena Caldeira e Micaela Rodrigues às reclamações dos arguidos sobre o acórdão de janeiro para defender a ideia de que não existe uma pronúncia no processo Operação Marquês.

“O acórdão não configura uma decisão instrutória de pronúncia, mas uma decisão de recurso. Determinou a pronúncia, significa dizer a alguém para fazer a pronúncia. E os arguidos não foram notificados dela. Disseram que não tinham de nos notificar porque não é uma decisão de pronúncia“, justificou.

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No entanto, o antigo governante voltaria a atirar contra a tese do lapso de escrita, ao criticar as desembargadoras por “quererem convencer” que os sete procuradores do MP que assinaram a acusação deste caso se enganaram e sobre “a parte mais importante” do despacho. “Em três anos de instrução, nunca foi referido. Como é que é plausível a tese do lapso de escrita?“, questionou.

Em paralelo, denunciou novamente a existência de uma suposta campanha dos sistemas judicial, jornalístico e político que visa a sua exposição pública como o responsável pelos 10 anos que já leva o processo Operação Marquês e notou que essa alegada campanha “não tem um mínimo de credibilidade”.

Advogado de Sócrates: “Processo não foi remetido para julgamento”

Ao lado de José Sócrates na conferência de imprensa da manhã deste sábado, o advogado Pedro Delille contestou o entendimento sobre o despacho da Relação de Lisboa para remeter o processo para a primeira instância para se dar início aos procedimentos para o julgamento.

O processo não foi remetido para julgamento, foi remetido para o tribunal de julgamento. Antes tem de ser analisado pela presidente do coletivo, que tem de decidir se está pronto para ir para julgamento. Em junho de 2021, [a juíza do juiz 19 do Juízo Central Criminal de Lisboa] decidiu que não estava, precisamente porque estava perante uma decisão de não pronúncia. O que está em vigor é uma decisão de não pronúncia”, indicou, em alusão à decisão instrutória de abril de 2021 do juiz Ivo Rosa.

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De seguida, o mandatário do ex-primeiro-ministro recuperou um outro acórdão da Relação de Lisboa, desta feita de 21 de março de 2024, que determinou que o processo fosse remetido ao Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) para se refazer a decisão instrutória.

“Desde então requeremos aos senhores juízes que estavam com o processo para que fosse remetido ao TCIC para proferir nova decisão instrutória. Até agora, entenderam as senhoras desembargadoras que não tinham de se pronunciar sobre isso e disseram que era uma decisão a determinar a pronúncia. Insistiram em tentar salvar essa ideia mirabolante de que esses super-magistrados do MP se enganaram”, afirmou.