No seu livro publicado nos anos 80 sobre John Ford, que leva no título o nome do realizador, Luís de Pina cita um texto de Luís António Verney, Do Estilo Simples, para explicar a simplicidade eloquente do estilo cinematográfico do autor de A Desaparecida, e que reza a certa altura: “Fácil coisa é a um homem de alguma literatura ornar o discurso com figuras, antes todos propendemos para isso, não só porque o discurso se encurta mas porque talvez nos explicamos melhor com uma figura do que com muitas palavras. Pelo contrário, para nos explicarmos naturalmente e sem figura é necessário buscar o termo próprio, que exprime o que se quer; o qual nem sempre se acha, ou, ao menos, não sem dificuldade, e sempre se quer perfeita inteligência da língua para o executar”.
É um texto que serve também como uma luva ao estilo de Clint Eastwood naquele que, aos 94 anos, deverá ser o seu derradeiro filme (e o 40.º como realizador), Juror #2, que em Portugal não passa nos cinemas e vai ser visto apenas em streaming, na Max: depurado de ornamentos, livre de efeitos desnecessários, singelo e exato na sua expressão visual. E ao serviço de um enredo só aparentemente elementar. Juror #2 revela-se como muito mais do que o courtroom drama clássico que aparenta ser. Poderíamos chamar-lhe o Crimes e Escapadelas de Clint Eastwood, mas sem o final amoral e niilista da fita de Woody Allen.
[Veja o “trailer” de “Juror #2”:]
Justin Kemp (Nicholas Hoult) é um jovem jornalista cuja mulher, uma professora, está prestes a dar à luz o primeiro filho do casal, e vê-se inesperadamente convocado para ser um dos jurados (o número 2 do título) de um caso em que um homem com um passado violento e de delinquência é acusado de ter assassinado a namorada, após a ter agredido num bar. O caso parece ser daqueles de resolução rápida, dada a manifesta culpabilidade do réu. E todos, em especial a procuradora Faith Killebrew (Toni Collette), que está em plena campanha eleitoral, esperam que o júri profira, depressa e por unanimidade, um veredicto de culpado.
Só que Kemp se apercebe que está, involuntariamente, envolvido no caso, mas não diz a ninguém, temendo por si e pelos seus. Só que também não quer que a pessoa errada seja condenada. Por isso, vai fazer o papel de cético e tentar abalar as certezas e mudar a opinião dos outros 11 membros do júri. Em Juror #2, Clint Eastwood e o argumentista Jonathan A. Abrams viram do avesso a premissa de um dos melhores courtroom dramas de sempre, Doze Homens em Fúria, de Sidney Lumet (1957), com Justin Kemp no oposto da personagem aqui interpretada por Henry Fonda, um idealista escrupuloso e desinteressado, cujo único interesse é que seja feita justiça e um inocente não pague por um crime que não cometeu.
[Veja uma entrevista com Toni Collette e Nicholas Hoult:]
À linearidade da história e à clareza de motivos do herói da fita de Lumet, Clint Eastwood contrapõe uma intriga mais enredada e uma personagem principal cujo comportamento tem motivações mais pessoais e interesseiras. Juror #2 transforma-se então na história do combate íntimo de Justin Kemp, dividido entre interesse pessoal e familiar, e dever de consciência e sentido da justiça. A que o realizador acrescenta uma reflexão sobre as imperfeições e vulnerabilidades do sistema judicial (ver a rapidez com que os jurados querem condenar o réu para irem às suas vidas, e o comportamento do inspetor da polícia reformado interpretado por J.K. Simmons, o único que quer apurar os factos, e fazer com que a verdade e a justiça citados pela juíza do processo no início do filme coincidam). E isto sem que Juror #2 tenha “vilões”, sequências bombásticas de confronto em tribunal ou fora dele, ou golpes de teatro de última hora. Eastwood está mais interessado em fazer-nos pensar do que em dar espectáculo.
[Veja uma sequência do filme:]
Clint Eastwood tira dos seus atores exatamente as interpretações que quer deles, nem uma palavra, um gesto, uma expressão ou uma emoção a mais ou a menos (ressalte-se, por curiosidade, que Kiefer Sutherland, que faz o advogado que Kemp consulta, conseguiu este pequeno papel após escrever a Eastwood dizendo que era um grande admirador, e que queria entrar num filme dele antes que se retirasse), e filma com uma limpidez de exposição e narração, uma circunspeção cinematográfica e uma eficácia dramática consumadas. E o final de Juror #2 , à porta da casa de Kemp, está à altura e é consequente com tudo o que Eastwood narrou até aí, e com as questões morais e os pressupostos de consciência em jogo no enredo.
O facto da Warner Bros., um estúdio com o qual Clint Eastwood está associado há meio século, e a que deu prestígio, prémios (incluindo Óscares) e largos lucros, ter estreado Juror #2 – e à última da hora – apenas em cerca de 50 cinemas nos EUA, e fora de portas só nalguns países selecionados, e o ter lançado diretamente em streaming nos restantes, diz muito sobre o estado da indústria cinematográfica americana, e aqueles que hoje mandam nela. Como escreveu o crítico Bilge Ebin na Vulture, “para o moderno executivo dos estúdios [Eastwood] (…) deve parecer não um artista que tem que ser protegido, mas sim um erro a ser corrigido”.