A swinging London dos anos 60 tinha os Beatles e os Rolling Stones, o boom da moda com Mary Quant, a mini-saia e Twiggy, as drogas, a liberalização a jacto dos costumes, as festas loucas e o advento da cultura das celebridades. Entre estas, estavam não só as estrelas pop, os actores, as modelos, os fotógrafos e os aristocratas, mas também um par de criminosos: os gémeos Kray. Reggie e Ronnie eram os senhores do submundo londrino de então, maus como as cobras e brutos como as casas, mas também amigos de se vestirem à moda e de terem uma pose cool. E como eram donos dos clubes nocturnos mais chiques e in do West End, e tinham convívio fácil, algum do brilho dos actores, cantores, músicos e desportistas britânicos e internacionais que os frequentavam ou lá actuavam, e da alta sociedade que lá comia, bebia, dançava e jogava, passou para eles. E os Kray ganharam estatuto de “famosos”, saindo nos jornais e nas revistas ao lado dos seus clientes.
[Veja neste vídeo os verdadeiros gémeos Kray]
Assim nasceu a sua lenda, e assim os gémeos se tornaram figuras pop em Inglaterra. De tal forma que, em 1970, até os Monty Python gozaram com eles num célebre sketch da sua série de televisão, onde surgiam como “Os Irmãos Piranha”, Doug e Dinsdale, que empregavam uma “combinação de violência e sarcasmo” para espalhar o terror entre as suas vítimas e rivais. Além de gozar com a reputação dos Kray, os Monty Python atiravam-se também à condescendência de alguns sectores da sociedade britânica para com os gémeos (houve quem os comparasse a Robin dos Bosques, escrevesse artigos e livros em sua defesa quando finalmente foram presos ou intercedesse pela sua libertação).
[Veja o sketch dos Monty Python (em duas partes)]
O cinema não podia ficar alheio a tais figuras. Em 1990, Peter Medak recrutou os gémeos Gary e Martin Kemp, dos Spandau Ballet, para interpretar Ronnie e Reggie Kray em “Os Irmãos Kray”, um filme que os põe a gravitar em redor da mãe Violet (Billie Whitelaw), de quem eles eram chegadíssimos, e que branqueia consideravelmente a brutal reputação do duo. Medak quis aproveitar-se da condição de estrelas pop dos Kemp para valorizar as personagens, mas estes, além de não serem actores por aí além, também não tinham a qualidade ameaçadora dos Kray.
Este ano, apareceram nada menos do que três filmes sobre Reggie e Ronnie Kray: “The Rise of the Krays” e “The Fall of the Krays”, de Zachary Adler, que contam a história da ascensão e queda dos gémeos pelos olhos de um dos seus amigos mais próximos. E “Lendas do Crime”, de Brian Helgeland, o argumentista de “LA Confidencial”, que escolheu dar o ponto de vista, e a narração da história, a Frances Shea, a segunda mulher de Reggie e a grande paixão deste (Ronnie, o irmão, era homossexual, e tanto se dizia bissexual como afirmava ser “activo e não passivo, não sou maricas”, como explica na cena em que Reggie leva Francis a conhecer o irmão).
[Veja o trailer de “Lendas do Crime”]
Ao contrário de Peter Medak em “Os Irmãos Kray”, Helgeland não é condescendente para com a reputação violenta e impiedosa dos Kray, frisando até a psicopatia paranóica e esquizofrénica de Ronnie, que o levava a actos de uma brutalidade tão devastadora quanto inesperada. Mas opta por pintar Reggie como mais humano, contido e agressivo do que o irmão, numa variante do “polícia bom, polícia mau”, que neste caso se declina como “Kray mau e maluco, Kray um bocadinho mais potável”. Na verdade, tanto Ronnie como Reggie não eram ambos flores que se cheirassem, e “Lendas do Crime” omite alguns dos aspectos menos civilizados da personalidade de Reggie, deixando Ronnie com o ónus da violência viciosa.
[Veja os bastidores do filme]
“Lendas do Crime” beneficia da reconhecida capacidade britânica de recriação meticulosa de locais e épocas (neste caso, os anos 60 e as duas faces da Londres de então, a afluente e a das classes trabalhadoras, por onde os Kray circulam). Em quase tudo o mais, segue à letra, com competência indistinta, as situações feitas do filme de gangsters variante cockney-retro, cheio de polícias irados e rubicundos, de vilões “característicos”, de aristocratas perversos e políticos esquivos, e a roçar por vezes o involuntariamente anedótico (a orgia homossexual em casa de Ronnie parece saída de uma paródia a este tipo de filmes).
[Veja a entrevista com Tom Hardy e Brian Helgeland]
A única originalidade de Lendas do Crime é ter dado o papel dos Kray ao mesmo actor, Tom Hardy, (“Locke”, “Mad Max: Estrada da Fúria”), que ia interpretar apenas Reggie mas convenceu Brian Helgeland a fazer os dois gémeos, com uma ajuda dos efeitos digitais. Num filme onde a maior parte das personagens – mesmo a Frances da esforçada Emily Browning – são pouco mais que “bonecos”, esboços ou caricaturas, Hardy brilha desdobrando-se nos dois Kray, distinguindo-os através de pormenores físicos e de vestuário, de tiques, posturas, atitudes ou entoações de voz, mas sugerindo sempre que eles são como duas manifestações de uma só pessoa, um mesmo “eu” perturbado e perigoso, cindido em dois. Ronnie e Reggie, Reggie e Ronnie, os gémeos do mal da Swinging London, devotados, leais e inseparáveis. Mesmo depois de quase se terem morto um ao outro à pancada.