O valor total dos alegados subornos pagos durante a Operação Lava Jato não deixa qualquer dúvida sobre a dimensão do escândalo: mais de 1,9 biliões de dólares (cerca de 1,7 mil milhões de euros) entre 2006 e 2014.
O mesmo se diga sobre o prejuízo provocado nos cofres da Petróleo Brasileiro (Petrobras), a empresa pública no centro do esquema de corrupção denunciado na Justiça do Brasil: 6,2 mil milhões de reais (cerca de 1,5 mil milhões de euros).
Se os valores do caso (que deve o seu nome a um posto de gasolina de Brasília onde tudo terá começado) são equivalentes à escala quase continental de um mercado como o brasileiro, também o valor dos montantes que apenas um dos vários ex-directores da empresa pública brasileira Petrobras aceitou devolver ao Estado brasileiro não fica atrás: mais de 100 milhões de dólares (cerca de 91 milhões de euros).
São montantes inimagináveis para a realidade portuguesa, mas que ganham contornos reais quando sabemos que é a própria Petróleo Brasileiro (Petrobras), a empresa pública que está no centro do caso judicial por os seus administradores e diretores terem sido alegadamente corrompidos pelas principais empresas de construção do Brasil, quem estimou o montante total dos subornos alegadamente pagos e o prejuízo causado. E que é o próprio Ministério Público (MP) brasileiro quem confirma a devolução total feita por um dos arrependidos.
Todos estes pormenores constam da carta rogatória que a Procuradoria da República no Estado do Paraná, através do procurador Deltan Martinazzo Dallagnol, enviou para a Procuradoria-Geral da República em Lisboa no dia 7 de julho deste ano ao abrigo da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e do Tratado de Auxílio Mútuo em Matéria Penal entre Portugal e o Brasil.
Os objectivos da carta rogatória, tal como o jornal i já tinha noticiado, eram simples:
- identificar, apreender documentação, bloquear valores monetários depositados numa conta bancária do BANIF em nome de uma sociedade offshore chamada Kingstall Financial e repatriá-los para o Brasil;
- confirmar que Renato de Souza Duque, ex-responsável máximo pela Diretoria de Serviços da Petrobras, era o beneficiário da Kingstall Financial;
O MP brasileiro pretendia ainda o seguinte:
- confirmar o circuito do dinheiro que tinha tido origem num offshore de Antígua e Barracuda (ilha do mar das Caraíbas), passando pelo Mónaco e por Portugal;
Quem é Renato Duque?
Renato Duque era o responsável máximo pela Diretoria de Serviços da Petrobras. Terá sido indicado pelo Partido dos Trabalhadores (o partido de Lula da Silva e de Dilma Rousseff que governa o Brasil desde 2003) e tratava da contratação de empreitadas de obras públicas, lidando diretamente com as grandes construtoras brasileiras como a Oderbecht, a Camargo Corrêa, entre outras.
Como a Procuradoria do Estado do Paraná descreve na carta rogatória enviada para Portugal, Renato Duque é suspeito da prática dos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro (branqueamento de capitais). No processo Lava Jato investigam-se ainda crimes como corrupção ativa, formação de cartel, organização criminosa e fraude à licitação (manipulação dos concursos públicos da Petrobras) por parte das principais construtoras brasileiras que combinavam preços e dividiam entre si as obras públicas que eram adjudicadas pela petrolífera brasileira.
O que diz a carta rogatória?
O mais interessante do documento elaborado pelo procurador Martinazzo Dallagnol (um dos três magistrados que investigam o caso Lava Jato com o acompanhamento do juiz Sérgio Moro também do Estado do Paraná), e que o Observador agora revela, está relacionada com os pormenores do processo judicial que está a abalar o Brasil desde março de 2014.
No documento, obtido pelo Observador no Brasil, o procurador Dallagnol apresenta o caso judicial da seguinte forma:
O caso Lava Jato investiga o maior esquema de corrupção já descoberto na história do Brasil. Em apertada síntese, funcionários do alto escalão [altos funcionários] da empresa estatal Petróleo Brasileiro (Petrobras) recebiam o pagamento de propinas [subornos] para beneficiar empresas privadas que foram contratadas para grandes empreendimentos. Além disso, essas empresas privadas formaram um grande cartel que aumentou artificialmente os preços e o lucro, em prejuízo da empresa estatal. Os funcionários da Petrobras, uma gigantesca empresa que atua nas áreas de óleo, gás e energia, já tinham ciência desse cartel e receberam propinas [subornos] também para facilitar o seu funcionamento. O pagamento das propinas [subornos] era intermediado por operadores financeiros que lavavam o dinheiro e o entregavam de forma a que aparentasse [ser] dinheiro lícito. Quando na verdade era propina [suborno]. As construtoras, os operadores financeiros e os funcionários da Petrobras formaram uma grande organização criminosa. O valor total das propinas [subornos] foi estimado pela própria Petrobras em cerca de 1,9 biliões de dólares” (cerca de 1,7 mil milhões de euros), lê-se no documento
Como tudo começou no “Clube”
A Operação Lava Jato iniciou-se em 2014 com indícios de lavagem de dinheiro (crime equivalente ao crime de branqueamento de capitais do Código Penal português) e de crimes financeiros no âmbito do mercado negro de câmbios – crime relativamente comum no Brasil e que costuma ser imputado aos chamados ‘doleiros’, operadores desse mercado ilegal.
A investigação começou por centrar-se em quatro grupos liderados pelos ‘doleiros’ Carlos Habib Chater, Alberto Youssef, Nelma Kodama e Raul Henrique Srour – cada um deles estariam ligados a diferentes dirigentes partidários.
Através de Alberto Youssef, os procuradores de Curitiba (capital do Estado do Paraná) chegaram às obras da Petrobras. O ‘doleiro’ Youssef, segundo a investigação, liderava um verdadeiro “banco de dinheiro sujo” que era utilizado para lavar dinheiro antes do mesmo ser utilizado no pagamento de alegados subornos a altos funcionários e administradores da Petrobras.
Youssef utilizava várias técnicas, como por exemplo:
- uso de empresas de fachada que, através de faturas falsas, permitiam lavar o dinheiro;
- remessa de valores para contas no exterior mediante contratos de cambio fraudulentos para posterior pagamento aos altos funcionários da Petrobras.
É assim que foram recolhidas provas que acabam por envolver as maiores empresas de construção brasileiras num alegado esquema de corrupção e de lavagem de dinheiro. A Odebrecht (dona da Bento Pedroso Construções em Portugal), a Andrade Gutierrez (acionista de referência da Oi e da Portugal Telecom), a Camargo Corrêa (que comprou cimenteira Cimpor a cuja subsidiária em África era liderada por Armando Vara), a OAS (construtora ligada ao genro do ex-governador da Bahia António Carlos Magalhães), entre outras menos conhecidas em Portugal como a UTC, a Techint, Mendes Júnior, Promon, MPE, Skanska, Queiroz Galão, Galvão Engenharia, IESA, Engevix, Setal e GDK.
Segundo a Procuradoria do Paraná, este conjunto de empresas terão formado um cartel que combinava previamente os preços que seriam oferecidos e quem concorria a cada concurso aberto pela principal petrolífera brasileira.
As empreiteiras reunidas em algo que denominavam de “Clube” ajustavam previamente entre si qual delas iria sagrar-se vencedora das licitações da Petrobras, manipulando os preços apresentados no certame, com o que tinham condições de, sem concorrência real, serem contratadas” pela petrolífera, lê-se na carta rogatória.
Este esquema de cartelização durou entre 2006 e 2014 e impediu uma verdadeira concorrência que permitisse à Petrobras beneficiar em termos financeiros com uma luta saudável entre as construtoras pela vitória nos seus concursos.
Pelo contrário. Segundo os procuradores de Curitiba, eram acertados preços propositadamente elevados que já continham inclusive os subornos que teriam de ser pagos (aproximadamente 3% dos sobrecustos apresentados). A Petrobras calculou em abril que tenha sido prejudicada em mais de 6,2 biliões de reais (cerca de 1,5 mil milhões de euros) com o esquema de corrupção.
Mas não só.
Percentagem de cada contrato das empreiteiras com a Petrobras era então destinada ao pagamento de propina […] a agentes políticos, inclusive parlamentares federais”.
Dos altos funcionários da Petrobras alegadamente corrompidos, segundo os investigadores brasileiros, destacam-se três:
- Renato Duque, responsável pela Diretoria de Serviços, que terá sido indicado pelo Partido dos Trabalhadores (o partido de Lula da Silva e de Dilma Rousseff que governa o Brasil desde 2002)
- Paulo Roberto Costa, da Diretoria do Abastecimento que terá sido indicado pelo Partido do Progresso
- Nestor Cerveró, da Directoria Internacional, ‘nomeado’ pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro.
Seria através de cada diretor/representante que os partidos, e os respetivos dirigentes e deputados, receberiam a sua quota-parte do esquema montado pelas construtoras, segundo a Procuradoria do Paraná.
Arrependidos
As primeiras ações públicas (buscas e interrogatórios) dos procuradores do MP Federal do Paraná foram bem sucedidas na obtenção de provas mas também na angariação de arrependidos – “delatores” na versão brasileira.
Inspirada na lei norte-americana, a lei brasileira permite ao Ministério Público e ao juiz de instrução criminal negociarem uma acusação e respetiva redução da pena prevista para cada um dos arguidos – os chamados “acordos de delação premiada”.
O ‘doleiro’ Youseff foi um dos primeiros suspeitos a colaborar com a Justiça, tendo feito um acordo em que a pena de prisão será suspensa quando a soma de todas as condenações (Youseff é visado num número significativo de processos) ultrapassar os 30 anos de prisão efetiva.
O mesmo “acordo de delação premiada” foi feito com Pedro Barusco Filho, ex-braço direito de Renato Duque. Este funcionário da Diretoria de Serviços da Petrobras não só forneceu prova testemunhal de como funcionava o esquema de corrupção e entregou documentação importante, como chegou mesmo a devolver cerca de 100 milhões de dólares (cerca de 91 milhões de euros) de subornos que confirmou ter recebido de construtoras brasileiras e que tinha escondido em contas bancárias na Suíça.
Esse facto foi recordado pelo procurador Martinazzo Dallagnol às autoridades portuguesas para enfatizar a qualidade da prova que já tinha sido recolhida pela Procuradoria do Paraná, visto que a cooperação judiciária só é eficaz desde que existam fortes indícios da prática dos crimes económico-financeiros imputados.
Ponto da situação
A Operação Lava Jato, beneficiando das regras significativamente mais ágeis do processo penal brasileiro quando comparado com o processo português, tinha levado até setembro a 13 acusações formais do Ministério Público Federal contra ex-responsáveis da Petrobras, responsáveis das construtoras envolvidas, ‘doleiros’ e responsáveis políticos.
Dessas 13 acusações, cinco casos foram concluídos em primeira instância com condenações a penas máximas que, em alguns casos, chegaram aos 20 anos de prisão efetiva e multas pesadas aplicadas individualmente a cada um dos réus condenados.
Renato Duque, por exemplo, foi condenado em setembro pela Justiça brasileira, a uma pena de prisão de 20 anos e oito meses pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e associação criminosa. No mesmo caso, foi ainda condenado João Vaccari Neto, ex-tesoureiro do PT, pelos mesmos crimes, com exceção de associação criminosa, a uma pena de mais de 15 anos de prisão efetiva. Neste caso, o MP Federal imputava doações de mais de 4,2 milhões de reais (cerca de um milhão de euros) ao partido de Lula da Silva e de Dilma Rousseff.
Relevantes são também os valores que o Ministério Público Federal já recuperaram e entregaram à Petrobras: mais de 870 milhões de reais (cerca de 211 milhões de euros) até ao final deste verão. Este valor, contudo, pode aumentar significativamente se tivermos em conta que já terão sido bloqueados fora do Brasil até setembro mais de 2,4 biliões de reais (cerca de 582 milhões de euros).
O caso, contudo, ainda está longe do fim.
Por exemplo, Marcelo Oderbecht, presidentes do Grupo Oderbecht, e Otávio Marques Azevedo, presidente da Andrade Gutierrez, continuam presos preventivamente por suspeitas de corrupção e os respetivos casos ainda não foram concluídos. Como também falta esclarecer até onde chegarão as suspeitas relacionadas com dirigentes do PT e com o ex-presidente Lula da Silva – o que muito tem pressionado politicamente a presidente Dilma Rousseff.