João van Zeller está há muitos anos ligado à Escócia por razões familiares e por ter a paixão do golfe. Encontra-se por estes dias na região, em St. Andrews, e tem seguido com interesse e paixão as campanhas para os dois referendos de dia 18: o sobre a independência da Escócia e o que está a dilacerar os sócios do mais antigo e prestigiado clube do golfe do mundo, o Royal & Ancient Golf Club of St. Andrews (R&A), que terão de decidir se vão ou não permitir que mulheres possam entrar para sócias. Tem vindo a escrever um diário cujas últimas páginas está a partilhar com os leitores do Observador. Hoje uma nova entrada relativa a 15 de Setembro, a três dias do referendo:
O Old Course de St Andrews é um dos campos de golfe mais procurados e mais míticos, se não o mais mítico do mundo. Para lá jogar convém reservar com um ano de antecedência. Mas aos domingos, em vez de golfistas, o vetusto Old Course recebe centenas de famílias comuns, que por lá passeiam e brincam todo o dia com as suas crianças e os seus cães. É insólito, e obriga à interrupção das competições do Encontro de Outono do R&A.
Assim sendo, este domingo do Autumn Meeting do R&A é a única ocasião do ano em que os sócios têm a oportunidade de convidar as mulheres para um cocktail oferecido no Clubhouse, e que se prolonga entre as 12 horas e as 14.30. Um quase almoço volante, para quem apreciar as “tapas” variadíssimas que, com vinhos razoáveis, são servidas aos cerca de 300 convidados. O que foi interessante nesta manhã foi escutar a opinião das mulheres, sobre se elas, YES ou NO, gostariam de poder ser candidatas a sócias do R&A, assunto que vai a votos no mesmo dia do voto para o referendo. Surpreendentemente, a maioria ou está contra, ou é neutra. Uma das razões por que estão contra parece ser o facto de o St Rule, centenário clube de golf exclusivamente para mulheres, ficar na contingência de ser obrigado a admitir homens. O Clubhouse do St Rule é um belo edifício sobranceiro ao fairway do 18ª buraco do Old Course, cujas sócias nunca se sentiram beliscadas por, no R&A, numa afirmação de male chauvinism, ainda existir uma área de cerca de 4 m2 reservada aos cães e às esposas que esperam pelos sócios.
O que não houve foi dia de descanso na luta pelo YES ou NO para a independência da Escócia. Nunca sei como classificar a soma final dos múltiplos talentos de Jeremy Paxman. É apresentador abrasivo do Newsnight na BBC1; é árbitro de cultura enciclopédica que exibe no programa University Chalenge na BBC2 às segundas feiras; é jornalista; é comentador; é escritor. Não sei se conheci algum homem mais brilhante do que ele na chamada televisão “séria”. E nas últimas horas trouxe enfaticamente à arena um argumento que, nesta demência que é o referendo, tem sido pouco lembrado. Como é possível que a União, incluindo, além da Escócia, a Inglaterra, o País de Gales e a Irlanda do Norte, não seja chamada a votar, quando se sabe que o mundo britânico total, tal como hoje o conhecemos, vai ser inevitável, radical e dramaticamente alterado a partir da próxima sexta-feira pelo resultado do referendo da Escócia, seja ele YES ou NO? E, numa fúria, se o YES ganhar, ele que é 25% escocês, quer riscar de imediato os parlamentares escoceses com assento em Westminster, quer que se levante uma fronteira entre a Escócia e a Inglaterra corrida a arame farpado, quer cães a ladrar enfurecidos e a morder nos emigrantes ilegais, exigência de passaportes, alfândega impiedosa, e torres de vigia, como as do tempo da Alemanha Oriental com muro de Berlim. Dada a força mediática deste herói, a campanha do YES saltou-lhe ao pescoço.
Hoje chamou-me a atenção a variedade e intensidade das reacções a que se assiste, bem longe das Ilhas Britânicas. Num misto de horror, pavor, indiferença, surpresa, confusão, encanto, há de tudo. Os catalães rejubilam, claro, e naturalmente querem que Madrid faça à Catalunha o mesmo que Westminster fez à Escócia. E o primeiro-ministro da Índia diz Deus nos livre de uma desagregação no Reino Unido. A China, cujo governo apoia o NO, observa com nervosismo a campanha pelo YES, devido às tentativas separatistas do Tibet e da província de Xinjiang, ambas com importantes reservas de petróleo e gás. E a Russia rejubila com a possível humilhação de Westminster que, por causa da Ucrânia e da Síria, está a atravessar uma fase de forte sentimento anti-Putin. Justifica-se: Alex Salmond manifestou admiração pelas políticas do líder russo. Na Ucrânia, o separatista Rycov mudou o nome para McRykov, o que não surpreende. Também não espanta que o separatista Kurdistan Tribune acuse os britânicos de, a poucos dias do referendo escocês, estarem a usar a velha linguagem colonialista para tentar vergar as legítimas aspirações da Escócia à independência.
O que foi interessante foi a chegada inesperada de Rupert Murdoch à Escócia. No Reino Unido, além de dono do The Times e da cadeia de televisão por satélite Sky, o que conta é ser dono to The Sun, jornal que vende 270.000 exemplares apenas na Escócia e que, com o seu populismo desmedido, pode tocar fundo o objectivo YES. Se por um lado está a planear retirar as mulheres nuas que diariamente e há dezenas de anos aparecem na famosa página 3 do The Sun, por outro, parece estar a querer endossar Alex Salmond. O pai de Murdoch era ministro da Igreja Presbiteriana em Aberdeenshire, na Escócia. O filho, agora com 83 anos hiperactivos, pode querer sublinhar as suas origens escocesas e o seu tartan.
E o número 10 de Downing Street está ansioso por saber a posição de Murdoch quanto ao referendo. Apesar de no Reino Unido poder ter parecido um animal político morto depois do escândalo das escutas telefónicas e do encerramento do News of the World, o jornal que mais vendia no Reino Unido, Murdoch não faleceu politicamente nestas Ilhas. Para quem detém centenas de jornais, revistas e canais de televisão nos quatro cantos do mundo, e conta no seu Conselho de Administração com um ex-primeiro ministro da Espanha (José Maria Aznar), e um ex-Presidente da Colômbia (Álvaro Uribe), essa morte parece difícil.
O que transpira não é de somenos. No caso de a Escócia se tornar independente, Murdoch pode mudar a sede do News Corp dos Estados Unidos, para a Escócia, contando que Alex Salmond lhe dê significativas vantagens fiscais. Poucos duvidam que Salmond apenas esteja apenas à espera de um piscar de olhos de Murdoch para lhe fazer uma proposta fiscal irrecusável, caso o YES vença. A três dias do referendo, Murdoch parece posicionar-se, mas o seu jornal The Sun ainda não tomou partido. David Cameron e os Unionistas tremem.
João Van Zeller é advogado e empresário