“O Nome da Rosa” tinha de acontecer. Era uma questão de tempo. O primeiro romance de Umberto Eco reúne todos os temas que trabalhava há muito – mais do que isso, juntava as suas maiores paixões. A semiótica e a história medieval, a religião e a Europa, os símbolos, a lógica e a Academia mas também os comuns mortais, os leigos de conhecimento e a cultura de massas, juntamente com a Arte e a eterna discussão entre o que é e o que não é belo. E Jorge Luis Borges. Em 2011, Eco dizia em entrevista ao jornal britânico “The Guardian” que “as pessoas estão fartas de coisas simples, querem ser desafiadas”. Contas feitas, essa era uma convicção que o acompanhava há muito. Por isso escreveu O Nome da Rosa.

Não imaginava o italiano que mais de 30 anos depois de o ter publicado, em 1980, estaria a fazer digressões pelo mundo para apresentar os seus romances seguintes. Não escreveu muitos, no total foram sete — o último, Número Zero, ainda no ano passado. Mas eram todos recebidos como se acolhe uma estrela pop. Com ansiedade, com ganas de consumir a obra para depois a ter suficientemente decorada a fim de a transformar em conversa de café. E era também esse um dos dilemas de Umberto Eco, o eterno diálogo entre a cultura intelectual e a cultura de massas. Ou então sempre foram apenas uma, como deu a entender tão bem com O Nome da Rosa.

Códigos

O que é certo é que a linguagem era a sua eterna obsessão. Não tanto a possibilidade de comunicar através de códigos mas a realidade inevitável de que a mesma comunicação pode ter diferentes significados em diferentes momentos, pode ser compreendida de formas distintas em outras tantas ocasiões. Ou como explicava nessa mesma entrevista ao Guardian, “quando um cão ladra, não mente”. Mas nós podemos fazê-lo e isso é fascinante. O Nome da Rosa parte desse princípio. Um crime que parece um suicídio mas pode não ser. Livros que têm um significado aparente mas outros tantos escondidos. Uma religião que segue determinados princípios mas que pode fazer uso de outros opostos ao mesmo tempo. E um homem para descodificar tudo isso e trazer a verdade – pelo menos uma verdade – à superfície. Com as respostas nos livros, como dizia Borges.

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Acontece tudo num mosteiro beneditino, no Norte da Itália. Há um assassino que ameaça os monges e é o frade William of Baskerville que chega, acompanhado do seu fiel seguidor Adso, e acaba por investigar a ocorrência. Começa com a tal suspeita de que um dos monges se atirou de uma torre mas as pistas não dizem isso ao sábio franciscano que por ali passa com uma missão com o carimbo do Papa. E à medida que vai querendo saber mais também vai presenciando a morte de mais uns quantos fiéis religiosos. Há uma biblioteca que guarda os segredos dos acontecimentos, livros e iluminuras que escondem respostas difíceis de descobrir à primeira e à segunda. Mas William of Baskerville parece empurrado por uma sabedoria que, apesar das vestes, tem pouco de divina ou sobrenatural. É o homem esforçado a fazer uso da dúvida constante e isso é fascinante. Mais ainda é vermos continuamente a figura do autor na personagem principal. Mesmo que Sean Connery tenha brilhado quando Jean-Jacques Annaud fez uma certeira adaptação ao cinema, faz em Setembro 30 anos.

As bibliotecas, sempre as bibliotecas. Não era só a do próprio Umberto Eco, dividida entre diferentes moradas e com dezenas de milhares de títulos em estantes que os sucessivos entrevistadores do autor sempre apontaram nos respetivos textos finais. A verdade é que o escritor italiano era neto de um tipógrafo. Mais do que isso, quando o tipógrafo morreu, o neto ficou com muitos dos trabalhos e das encomendas nunca reclamadas. Foi tudo “parar a uma caixa”, como explicou em tempos à Paris Review. “E essa caixa foi parar à adega dos meus pais”. Daí até aos livros escondidos em salas escuras em O Nome da Rosa foi uma questão de tempo.

E depois – ou até antes de tudo isto – há Jorge Luis Borges, o escritor argentino que fascinava Umberto Eco e que teve até direito a dar o nome ao bibliotecário cego do mosteiro, Jorge de Burgos. Bibliotecário, repetimos, como numa Babel feita de livros como a que Borges descreveu no conto que 1941. Na Biblioteca de Babel estava um universo vasto feito de múltiplas salas, com livros que apresentavam as soluções as necessidades essenciais para a sobrevivência, com as respostas para todas as perguntas e em todos os formatos. Um labirinto (também) feito de salas octogonais, de realidades e de interpretações, que encontrou em Umberto Eco apenas um dos muitos encantados pela obra de Borges. Mas um com vontade e capacidade para a adaptar e transformar em algo seu.

(In)Certezas

Muito antes de ter chegado a “O Nome da Rosa”, Umberto Eco já lidava com um duelo fundamental para a elaboração do livro. A dúvida podia, afinal, opor-se ao dogma. Como académico ilustre, Eco fazia pleno uso dos princípios que gerem as ciências – sociais ou exatas, tanto faz. Acreditava no método e preferia experimentar e testar a dizer que não gostava sem provar. “O Nome da Rosa” faz isso na relação entre Baskerville e o jovem Adso, com um constante questionamento face às evidências. Como o faz face às interpretações sobre a linguagem e sobre a religião. As certezas nunca foram a delícia de Umberto Eco, antes a possibilidade de as mudar.

Quando Baskerville descobre quem é o assassino, este tem motivos e justifica-se – com desculpas que incluem até o perdido Livro sobre a Comédia de Aristóteles. Face à fé e aos princípios que apregoa e segue, o criminoso pode ser desculpado sem perder muito tempo, fosse o tal dogma a decidir o seu destino final. Mas foi Umberto Eco que escreveu o livro e essa facilidade nunca encontraria espaço nas suas páginas.