“Você sabe lá o que é o Jamaica…!”

Atirada assim de chofre, a frase parece vir da boca de alguém sem paciência para forasteiros, especialmente destes novos que, culpados apenas de terem nascido na década de 1990, já não testemunharam os tempos em que o Jamaica tinha a personalidade bastante para se distinguir da amálgama que hoje se conhece apenas como o Cais do Sodré, em Lisboa. Mas não. A frase é de quem sofre discretamente e, em certos momentos, não consegue ocultar a revolta que lhe provoca o anunciado fecho desta icónica discoteca lisboeta. Logo a aparente violência se dissipa da voz e Miguel Cabral, cliente da casa há mais de 40 anos, começa a desbobinar memórias.

“Aqui criou-se uma forma de estar, uma forma de ser.” Pode parecer um exagero, sobretudo para quem só descobriu esta discoteca nos últimos anos, mas as paredes cor de laranja deste espaço guardam a memória de tempos gloriosos em que o Cais do Sodré e o país eram realidades bem diferentes. “Quando eu tinha 19, 20 anos e a minha mãe me perguntava para onde ia, e eu dizia Cais do Sodré…”, conta Miguel, simulando uma expressão facial de repulsa e estranheza. A zona era frequentada por marinheiros e prostitutas, já se sabe, mas foi aqui, no Jamaica, que começou uma mudança significativa, a que chamou ao bairro os amantes da música e não apenas das “meninas”.

Maria José Pereira sorri. Sabe bem do que Miguel está a falar. Na cave do Jamaica, ao lado das casas de banho e do bengaleiro onde também se vendem pastilhas, t-shirts e tabaco, existe um exíguo escritório de onde se comandam as operações. É difícil estarem mais do que duas pessoas neste espaço, onde esta mulher de 72 anos está sentada a olhar para as imagens das câmaras de vigilância. Maria José é gerente e viúva de um dos sócios fundadores da casa. Quando ali deixou de haver uma leitaria e passou a existir uma boîte, o Jamaica tinha “outra clientela, com mulheres”, mas nunca foi uma casa de alterne. “De alterne não tinha nada. Havia umas clientes que tinham uns amigos, só isso.”

O panorama mudou e o Jamaica começou a distinguir-se. A dada altura, “aparece aí o Mário Dias com uma fúria para ser DJ. Tinha uma grande mania pela música” e ficou por lá, conta Maria José, que hoje emprega o filho de Mário, Bruno. Ele, pelas histórias que ouve contar ao pai e pelas milhares de noites que já passou por aqui, confirma o papel pioneiro do Jamaica. “Foi o primeiro bar do Cais do Sodré” onde “as pessoas começaram a vir por causa da música”. A pouco e pouco, “as mulheres foram indo”. E Miguel Cabral ainda tem presente na memória a cara que os donos dos outros bares faziam quando ele e os amigos lá entravam e recusavam companhia feminina.

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“Não pode fechar! Não pode fechar!”

Um exemplo de que o Jamaica ainda aposta na música? Aqui, terça-feira é noite de reggae quase desde a fundação do espaço, há 45 anos. É o único sítio do Cais do Sodré que tem uma noite dedicada a este estilo musical e, mesmo nas outras noites, em que o rock é que manda, nunca falta uma música de Bob Marley para que os noctívagos não se esqueçam onde estão. Durante muito tempo, as noites de terça eram responsabilidade dos DJ residentes, mas desde novembro que estão a cargo de convidados externos. Na noite de 8 de março estava na cabine de som Joi Karyl, um soundsystem de reggae e derivados que tem lugar cativo uma vez por mês neste espaço da Rua Nova do Carvalho, pintada em tons cor-de-rosa. O objetivo destas noites é “fazer o reggae chegar mais ao mainstream“, com festas repletas de “boa disposição”, explica um dos membros do coletivo.

Parece estar a dar resultado. Pouco depois das duas da manhã, a casa está cheia. E vê-se de tudo: rastafaris de fato de treino, malta mais velha de camisa branca, miúdos que só agora descobriram a noite. “É o que toda a gente sabe: vem ao Jamaica e ‘tá-se bem”, diz Miguel Cabral. Um rápido inquérito pelos clientes confirma essa tese. “O ambiente é muito fixe”, responde Cláudia, surpreendida por saber que a discoteca tem ordem para fechar a 14 de abril. “É a primeira vez que venho cá e estou a gostar”, afirma António Silva, que não parece ter mais do que 19 anos e também não sabia que o futuro do Jamaica está ameaçado por uma ordem de despejo. Mal sabe, desata aos berros: “Não pode fechar! Não pode fechar! Não pode fechar!” Menos histérico, Ericson Correia, ali ao lado, fala sobre o que o atrai a estas noites. “Aqui está tudo tranquilo, não se passa nada.”

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Uma manifestação para salvar a noite

Em baixo, no escritório, enquanto um empregado vai empilhando fotocópias da petição pública que está a correr para salvar o espaço, Maria José diz-se uma mulher de fé. “Nem há palavras para descrever” o que lhe vai na alma por estes dias, afirma. “Nós temos uma casa, temos pessoal que trabalha, que tem os seus compromissos. O que vai ser deles? Não posso pegar neles e ponho-os aí arrumados a um canto. É horrível isto. Não só pelo tempo que cá estamos, pelo que construímos, por tudo.” Ela nunca foi dada a danças e à vida da noite, mas sublinha o peso da história que estas paredes carregam.

A maior parte das pessoas que trabalha no Jamaica já cá está há largos anos. Pedro Fernandes, que controla os excessos da pista de dança e vai limpando escadas e mesas de copos abandonados, é o mais recente na casa. A primeira noite em que trabalhou foi na passagem de ano de 2014 para 2015 e por cá ficou. “Nós temos esperança de que não seja definitivo… É o nosso trabalho”, comenta.

É essa esperança que todos têm por aqui. Ao anunciar que o Jamaica, o Tokyo e o Europa tinham de ir embora para que o edifício tenha obras e seja transformado num hotel, o senhorio disse também que havia a possibilidade de o Jamaica voltar a este espaço — daqui a anos, depois dos trabalhos. Mas a incerteza desse futuro é tanta que o cenário é impensável para clientes, trabalhadores e responsáveis. “A gente vai arranjar aí uma manifestação desde o Terreiro do Paço até ao Cais do Sodré”, atira Maria José. “Temos de nos agarrar a todas!”

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O Cais do Sodré sobrevive sem Jamaica?

“O Jamaica acaba e isto fica um deserto.” Isto é o Cais do Sodré, é a rua cor-de-rosa, é este movimento noturno que se desenvolveu nesta zona de Lisboa nos últimos anos. A opinião é de Miguel Cabral, que recorda o papel pioneiro do Jamaica na divulgação de música estrangeira e portuguesa a ouvidos que não estavam habituados a novas sonoridades nem à liberdade da descoberta. “É por isso que o Jamaica é o Jamaica. O Jamaica é isto. É liberdade.”

Bruno Dias concorda. Esteve oito anos no Tokyo e agora está há oito aqui. As notícias de que ambos os espaços vão fechar causam-lhe um “duplo sentimento” de perda. “Mais um hotel vai matar o Cais. Devia haver bom senso. Está-se a tornar uma zona de dormidas”, diz. Mesmo em frente ao Jamaica, ao Tokyo e ao Europa há um hotel. No rés-do-chão estão o Liverpool, o Oslo e o Cais Bar. É a isso que todos se agarram. “Eu não sei onde isto vai parar com tantos hotéis”, desabafa Maria José. “Querem acabar com a cidade bonita.”

Na pista de dança, a música não abranda. Pelas três e meia, quatro, o espaço começa a esvaziar e os DJ perguntam aos convivas o que querem ouvir. “Querem reggae ou hip-hop? Ponham a mão no ar!” A malta vota pelo reggae, o som aumenta e o Jamaica volta a abanar.