Vamos lá começar. O que é isso de “mindfulness”?

“Gosto de ver o mindfulness como a capacidade de estar presente”, começa por dizer Vasco Gaspar, autor do livro Aqui e Agora (edição Matéria-Prima). “É o estar consciente do que se passa à nossa volta, das emoções, do nosso corpo”, continua o licenciado em Psicologia do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Coimbra e ainda professor certificado no Search Inside Yourself, programa de mindfulness desenvolvido e testado na Google. A arte em questão — se assim a pudermos chamar — é simples na sua definição, difícil na prática. Afinal, quantas vezes conseguimos efetivamente desligar a nossa corrente de pensamentos e concentrarmo-nos apenas no que está ao nosso redor? É como o hábito recorrente de conduzir em piloto automático, sem dar conta do caminho, ou andar nos transportes públicos sem nunca nos apercebermos das pessoas com quem nos cruzamos. E porque é tão importante fazer o inverso? Porque “toda a nossa vida acontece agora, no presente”.

Andamos 47% do tempo distraídos

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Escreve Vasco Gaspar no seu livro que em média passamos 47% do nosso tempo distraídos, “oscilando entre pensamentos do passado, projeções para o futuro ou fantasias com o presente”. O número não vem ao acaso e diz respeito a um inquérito conduzido pela Universidade de Harvard, que questionou 2.500 pessoas através de uma aplicação sobre o que estavam a pensar em determinado momento. A investigação foi liderada pelos psicólogos Matthew A. Killingsworth e Daniel T. Gilbert, que afirmam que uma mente que vagueia é uma mente infeliz.

“Se a minha cabeça está no passado ou no futuro, estou a perder a vida”, diz Vasco Gaspar, fazendo lembrar uma das mais icónicas citações de Albus Dumbledore, personagem da saga Harry Potter, quando este diz para o jovem e heroico feiticeiro: “Não vale a pena mergulhar nos sonhos e esquecermo-nos de viver.” A ideia não é de todo descabida considerando que, muitas vezes, a ansiedade advém do facto de se pensar continuamente no futuro, numa tentativa de solucionar problemas que não são imediatos ou criando expectativas sobre determinados eventos. “A nossa mente está enviesada para o negativo”, atira o especialista, defendendo que o ser humano é atraído para o negativo por uma questão de sobrevivência. A isso acrescenta que não raras vezes os problemas não passam de “conceitos mentais” — é o que o senso comum chama de sofrer por antecipação. “Sofrer agora não vai ajudar em nada. Ficamos mais stressados, ansiosos e entramos numa espiral negativa, na síndrome do sacrifício.”

O mindfulness é, então, um treino mental que ensina as pessoas a lidarem com os seus pensamentos e emoções. Ajuda uma pessoa a distinguir o pensamento útil daquele inútil que, em determinadas circunstâncias, chega a ser prejudicial.

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Quem é que se lembrou disto?

“A maioria do que conhecemos atualmente como mindfulness tem a sua origem no budismo”, escreve Vasco Gaspar no livro Aqui e Agora. Embora a técnica seja milenar, a sua introdução recente na sociedade ocidental deve-se em particular a uma pessoa: Jon Kabat-Zinn. Doutorado em Biologia Molecular pelo MIT, foi num retiro que percebeu que a meditação poderia ser usada sem qualquer componente religiosa. Pegando nesse pressuposto, desenvolveu o programa MBSR — Mindfulness Based Stress Reduction (redução de stress baseada em atenção plena) que viria a revolucionar a forma como o mindfulness é visto. “Todos os ramos que ouvimos falar de mindfulness têm este tronco em comum, ainda que depois do programa tenham surgido mais ramificações. Mas foi Jon Kabat-Zinn que começou por ligar a ciência ao mindfulness, esclarece o autor. E se a medição foi em tempos encarada como “uma coisa para tontos”, como Vasco Gaspar faz questão de referir, nos anos 1990 e 2000 começaram a surgir os primeiros resultados que mostravam como estas práticas eram capazes de “alterar estruturas do próprio cérebro tendo em conta, por exemplo, a gestão de stress”.

E como é que se pratica “mindfulness”? É preciso cruzar as pernas e dizer “ohmmm”?

O mindfulness pode ser praticado de duas formas, formal ou informalmente. A primeira diz respeito à meditação, ainda que não seja preciso cruzar as pernas ou pôr as mãos ao nível do peito. Na verdade, não tem que ver necessariamente com o estar focado, basta fazer o esforço da atenção plena, deixando os pensamentos fluir durante alguns minutos e em silêncio. “A meditação é como ir ao ginásio. São práticas artificiais, para cultivar, coisas que não fazemos no nosso dia a dia”, explica Vasco Gaspar.

Mitos ligados à prática de meditação

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Segundo a obra Aqui e Agora de Vasco Gaspar, estes são os mitos mais comuns associados à meditação:

  • para meditar é preciso uma pessoa sentar-se em poses estranhas;
  • é necessário queimar incenso durante a meditação;
  • é preciso dizer adeus aos bens materiais;
  • é preciso ir à Índia (ou qualquer outro destino no continente asiático);
  • meditar é parar de pensar.

Em causa está o facto de a pessoa escolher um ou mais momentos do dia para prestar atenção ao quarteto fantástico — corpo, sensações, emoções e pensamentos –, uma forma de meditação que não passa pela reflexão, antes pela perceção direta do que se sente naquele preciso momento. “Não envolve fazer perguntas, não é tanto reflexivo. É um treino mental”, chegou a dizer ao Observador Gonçalo Pereira, responsável pelo workshop de gestão de stress do The Lisbon MBA, o 13º melhor MBA da Europa segundo o Finantial Times.

Já a prática informal acontece quando a pessoa experimenta trazer para o quotidiano o que aprendeu na meditação — e a aplicação não podia ser mais simples. Um exemplo: quando, ao guiar, prestar atenção ao caminho e não fizer as coisas em piloto automático ou, então, quando usar a atenção naquilo que o poderá acalmar, em vez de se juntar aos que se zangam em pleno trânsito. Gonçalo Pereira explicou ainda que o ser humano nasceu naturalmente no presente: é por isso que quando a sua filha era mais pequena não existia, para ela, uma noção concreta de tempo — cinco minutos ou uma hora significavam o mesmo; ela apenas conhecia o presente.

Quais os seus benefícios?

Antes de mais, o mindfulness não pode ser tido como uma panaceia, isto é, um pretenso remédio universal para todos os males do mundo. No entanto, a sua prática não impede de se obter maior clareza e capacidade de lidar com as diferentes adversidades que vão surgindo ao longo da vida. “Quanto mais consigo ter a capacidade de estar presente, mais vou conseguir lidar com a minha vida, com os meus problemas. A nossa cabeça está tão cheia que não conseguimos dar atenção a ninguém”, diz Vasco Gaspar, dando exemplos de pais que fingem estar a brincar com os filhos enquanto a sua mente divaga para outras esferas da vida privada.

“Muita gente vive as piores coisas da vida sem as viver. É uma questão cultural. Acho que o ser humano perdeu a capacidade de descansar”, explicava Gonçalo Pereira em agosto do ano passado, mencionando ainda as mais-valias daquilo que pratica há vários anos e que tem por hábito (e profissão) passar aos outros: “O mindfulness é aprender a parar. Este é o primeiro benefício, o qual permite que ganhemos capacidades cognitivas.”

Por esses e outros motivos, a sua prática pode ser um contributo eficaz contra o stress da vida laboral. E caso não se recorde, o stress pode não viciar mas deixa as pessoas doentes física e psicologicamente, correndo o risco de, no fim a linha, ficarem deprimidas e terem ataques de pânico. Existe ainda a possibilidade de entrarem em situações de burn out (esgotamento), o que remete para a exaustão no trabalho.

Numa linha mais científica, refira-se que coube a uma equipa do Centro de Investigação do Núcleo de Estudos e Intervenção Cognitivo-Comportamental a responsabilidade de criar um programa pioneiro para a infertilidade com base na prática em questão. A pesquisa envolveu 55 mulheres inférteis de diferentes idades e a realizar tratamento médico em Lisboa, Porto e Coimbra. No final, as mulheres do grupo de controlo que foram submetidas à intervenção viram diminuir os sentimentos negativos — vergonha, derrota ou autocompaixão –, sendo que os ganhos mantiveram-se passados seis meses.

Onde é que o “mindfulness” já chegou?

Se é verdade que o mindfulness já pisou o hall de entrada da ciência — com as áreas das neurociências ou da epigenética a servirem de exemplos –, o mesmo se pode dizer tendo em conta muitos outros setores da vida em sociedade, tal como esclarece Vasco Gaspar na obra já referida:

  • na saúde, no sentido em que o mindfulness está a ser usado com sucesso no tratamento de patologias de foro mental e físico. Exemplo disso é o facto de ser recomendado no Serviço Nacional de Saúde britânico;
  • nas empresas, com a Google a ser uma espécie de porta-estandarte ao criar o curso Search Inside Yourself;
  • na liderança, com o falecido Steve Jobs da Apple ou Arianna Huffington, presidente e editora chefe do Huffington Post, a admitirem que praticam a meditação mindfulness;
  • na política — quem diria que é oferecido mindfulness aos colaboradores do parlamento inglês?;
  • nas forças militares e de segurança (tanto o US Navy como o US Army já se vergaram à meditação plena);
  • e ainda na educação.

“Mindfulness” na educação? Como assim?

Educar com mindfulness não quer necessariamente dizer que deixam de existir conflitos entre pais e filhos, no entanto há a promessa de entender mais facilmente que cada conflito tem o seu papel e quais as aprendizagens a ele associadas. “O mindfulness é, no fundo, uma forma de como nos relacionamos com a vida. É a observação propositada do momento presente sem julgamentos e com compaixão”, diz Mikaela Övén, instrutora de mindfulness certificada desde 2012 e autora do livro Educar com Mindfulness (Porto Editora). “Essa observação permite-nos criar um espaço entre emoção e reação, ou seja, podemos ter respostas com mais clareza e podemos dá-las com mais calma”, continua. Assim sendo, a mesma verdade poderá aplicar-se na dinâmica familiar, do educador para educando, o que se traduz em pais com mais calma e que têm respostas mais apropriadas, defende Mikaela, que associa o mindfulness à parentalidade consciente.

Para mim viver com mindfulness é perceber que sou perfeita na minha imperfeição. Não procuro o certo ou o errado, procuro antes estar consciente. Não procuro opiniões mas sim estar conectada com o meu filho e com as minhas intenções.

Mas quais são, então, os benefícios de uma criança que cresça com a palavra mindfulness no dicionário? “São crianças que crescem com uma autoestima muito saudável, o que não é a mesma coisa que ser autoconfiante. Autoestima significa que lido bem com todas as coisas que sou, é um sistema imunitário social e vai ajudar-me perante os diferentes desafios na vida”, diz a instrutora, argumentando que a autoconfiança, essa, parte do exterior e está relacionada com o ter ou o fazer. Uma vez instalada a autoestima, as promessas passam pela capacidade de a criança desenvolver boas relações com os outros e ter uma noção real do que é a empatia. “Permite desenvolver uma comunicação mais consciente, saber dizer-se o que se quer e o que não se quer. Saber exprimir as emoções.”

E na sala de aula, o que acontece?

Não é que seja um aluno muito assíduo, mas o mindfulness também já chegou às escolas. E a realidade que se verifica há algum tempo lá fora não está particularmente distante do panorama nacional. Prova disso é o projeto MindUp que há três anos consecutivos é implementado no primeiro clico do Agrupamento de Escolas Marinha Grande Poente — são mais de 500 os alunos beneficiados. A ideia do programa que é trabalhado pelos próprios professores na sala de aula passa por promover competências socioemocionais, tal como explica ao Observador o professor e um dos coordenadores do projeto, Fernando Emídio.

“São 15 sessões durante 15 semanas. Começamos pela parte da neurociência, em que é explicado o funcionamento do cérebro, quando é que este está calmo ou agitado. Depois implementam-se exercícios de mindfulness, sendo que primeiro ouvem-se os sons e só depois os alunos concentram-se na respiração.” Os exercícios, esses, são idealmente postos em prática três vezes por dia: de manhã quando os alunos chegam à escola, depois de almoço e ao final da tarde, para terminar bem mais um “dia de trabalho”.

Apesar de os resultados não serem de todo lineares, o professor aponta para uma redução significativa da impulsividade dos miúdos dentro e fora da sala de aula, mas também nas relações interpessoais. No que toca à concentração, nota-se um foco de tempo mais longo e o facto de não haver uma dispersão da atenção tão rápida entre os mais novos. “Há essa capacidade de manter a atenção sustentada durante mais tempo e menos ansiedade quando se faz isto antes dos testes.”

Também se fala na dieta “mindfulness”. É preciso meditar enquanto se come?

Em causa não está tanto a promoção de dietas com o rótulo mindfulness, antes um estilo de vida mais saudável. Segundo o livro Alimentação Plena, de Patrizia Collard e Helen Stephenson (edições Matéria-Prima), a ideia passa por mudar a relação que temos com a alimentação, quando esta é negativa. Para tal é preciso estar-se consciente do que se come e apreciar todos os momentos de uma refeição. A título de exemplo, no livro lê-se que são muito poucas as pessoas que comem apenas quando têm fome no mundo ocidental, isto porque as emoções desempenham um papel determinante nos nossos hábitos alimentares. “O mindfulness ajuda a termos consciência do que comemos, quando comemos e a identificar padrões de consumo excessivo.” Comer de forma mindful implica, então, prestar atenção ao corpo, isto é, refletir sobre as necessidades físicas antes de levar comida à boca; usar pratos mais pequenos e porções menores; comer pouco e várias vezes ou beber um copo de água antes de cada refeição.

Mas isto funciona mesmo?

Vasco Gaspar é o primeiro a repetir a ideia: o mindfulness não é uma panaceia, mas em alguns casos consegue ser útil. Seja disso exemplo o facto de se ter alargado a vários espetros da vida social, desde a gestão de stress em grandes empresas à própria alimentação, sem descurar a educação gerida entre pais e filhos. Apesar disso, o professor certificado no Search Inside Yourself admite que existe quem se aproveita da palavra que hoje em dia está em voga em nome do proveito próprio — há quem defenda até a prática de winefulness que, até nota em contrário, soa estranho aos ouvidos de quem de facto aprecia vinho. Não que isso seja o suficiente para desmotivar quem acredita na técnica milenar, até porque, quem sabe, talvez um dia a meditação seja tão frequente como calçar um par de ténis e sair à rua para correr — será que vamos cuidar da mente como cuidamos do corpo?