Antes de entrar em paragem cardio-respiratória, Hugo Abreu superou 15 horas dos mais exigentes exercícios físicos. As provas acabariam por resultar na morte do furriel e levaram à exaustão outros 21 instruendos do 127.º curso de Comandos. Depois de ser levado para a tenda de campanha, na tarde de 4 de setembro, Abreu sofreria cinco horas de agonia sem nunca chegar a ser transferido para um hospital. Dylan Araújo da Silva, outro recruta, acabaria por morrer uma semana depois, a 10 de setembro, com uma falência hepática. O curso só foi suspenso, de forma provisória, por volta das 16 horas, quando mais de duas dezenas de instruendos já recebiam assistência médica na tenda de campanha.

A chamada “Prova Zero” serve para isso mesmo: testar os limites do corpo e da mente dos militares que querem uma boina vermelha e afastar, logo nos primeiros instantes, os homens que quebram. No despacho que o Ministério Público (MP) levou à juíza de instrução, e em que a procuradora Cândida Vilar pediu que os cinco instrutores do curso de comandos, o diretor do curso e o médico que assistiu os militares caídos fossem proibidos de se aproximar das testemunhas, são relatados os exercícios, os castigos, as agressões e privações a que foram sujeitos os 67 recrutas do curso que terminou na última sexta-feira com 23 sobreviventes — pedido recusado pela juíza Cláudia Pina, que considerou não estarem em causa crimes militares e que aplicou Termos de Identidade e Residência aos arguidos, impedindo, no entanto, o médico de exercer funções em instalações militares. Eis o relato detalhado de uma tragédia, tendo em conta a reconstituição dos factos feita pelo Ministério Público.

00h00: a marcha no Campo de Tiro de Alcochete

Na madrugada de 4 de setembro, os 67 recrutas foram levados para o Campo de Tiro de Alcochete. Assim que chegaram, foram divididos em quatro grupos e começaram uma marcha em ritmo médio. Hugo Abreu estava no grupo dos “graduados”, liderado pelo tenente Hugo Pereira e pelo sargento Ricardo Rodrigues. Dylan Araújo da Silva seguia no chamado grupo P3, sob as ordens do tenente Miguel Almeida e do sargento Nuno Pinto. Começava a “Prova Zero”.

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Grupo inicial

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O 127º curso de Comandos começou a 3 de setembro, com 67 militares. Os primeiros exercícios físicos começaram às primeiras horas da madrugada do dia seguinte, no Campo de Tiro de Alcochete.

E começavam os castigos. Neste caso, a “privação de água”, uma prática que o Exército garantiu desde o início que não tinha existido mas que vários recrutas relataram no processo. No final da marcha, o grupo de Hugo Abreu pôde beber quatro tampas dos cantis que carregavam consigo (cerca de um terço de uma garrafa de água das mais pequenas). Com duas exceções: o alferes Neves e o sargento Rodrigues. Os recrutas tinham sido castigados e transportavam os cantis vazios.

Quando percebeu que os colegas não tinham direito a água, o aspirante Cardoso ofereceu-se para partilhar com eles algumas tampas do seu cantil .

Furioso com a pergunta, o suspeito [sargento Ricardo] Rodrigues ordenou aos instruendos que executassem flexões como castigo”, refere o despacho do Ministério Público.

O castigo foi mais duro para o grupo em que seguia Dylan Silva. Depois de cumprirem os vários quilómetros da marcha, nenhum dos militares foi autorizado a beber água.

03h00: descanso só para alguns

No resto da madrugada, apenas os recrutas do grupo P3 tiveram direito a descanso: duas horas de sono antes de enfrentarem os mais de 40ºC que se fariam sentir no pico do calor da tarde de 4 de setembro. Aos graduados, nem esse curto descanso foi permitido. Até às três horas da manhã, os recrutas de ambos os grupos foram obrigados a executar “vários exercícios físicos como castigo”.

06h20: alimentação racionada

Seis horas depois de terem sido levados para Alcochete, os militares tiveram direito à primeira refeição. Mas, por ordem do sargento Ricardo Rodrigues, do grupo de graduados, “não foi fornecida toda a ração de combate”. Os recrutas comeram um pacote com cinco bolachas e uma dose de doce para acompanhar, quando o Guião da Prova estipula que teriam direito ao triplo da alimentação: três pacotes de bolachas e outros tantos de doce. Dessa vez, não houve água para nenhum dos graduados, mas tiveram 40 minutos de descanso, até às 7 horas.

Nesta fase, os instrutores do grupo P3 foram menos duros: os soldados puderam comer dois pacotes de bolacha e dois de doce, além de lhes ser permitido beber a água que ainda restava nos cantis, que não chegaria a um litro.

07h20: o primeiro soldado a cair

Por volta das oito horas da manhã, os termómetros chegavam aos 24ºC. Nesse momento, os instruendos dos dois grupos já tinham realizado Ginástica Educativa, um exercício “sem grande intensidade física” mas que acabou sem direito a água nem intervalo.

Os graduados seguiram diretos para a instrução de Técnicas de Combate 1, durante o qual foram sujeitos a um “elevado desgaste físico” quando a temperatura já rondava os 32º. Eram 10h20 e, diz a investigação, “os suspeitos Hugo Pereira e Ricardo Rodrigues bem sabiam que a exposição ao sol a temperaturas tão elevadas e sem que os instruendos se encontrassem hidratados era absolutamente desaconselhável”.

Os primeiros militares começam a quebrar. A instrução de Tiro de Combate sujeitou-os a uma “intensidade física desgastante” provocando “cansaço físico extremo, desidratação e stress emocional”. Um estado potenciado pela privação de água. O soldado Peres caiu sem sentidos – mas foi apenas o primeiro. Transportado para a ambulância, poucos minutos depois estava de novo reunido com o seu grupo.

A enfermeira nem sequer foi capaz de se aperceber do estado de desidratação em que se encontrava o soldado”, refere o despacho.

O Guião da Prova manda que os recrutas sejam acompanhados pelos profissionais de saúde (enfermeiros e médicos) desde o primeiro minuto, dada a dureza da “Prova Zero”. Mas, a essa hora, nem sinal de Miguel Almeida. O capitão-médico – também ele comando, também ele constituído arguido e entretanto impedido de desempenhar funções em instalações militares – só se juntaria ao grupo por volta das 11 horas da manhã, quando já estava cumprido quase meio dia de prova, “violando gravemente os seus deveres funcionais”, segundo o MP.

A manhã ainda não ia a meio e os soldados caíam, exaustos. Depois do instruendo Peres, os soldados Godinho e Jorge Silva “vomitaram”, dando sinais de “exaustão pelo calor, que se manifesta por sede intensa, ansiedade, náuseas, vómitos e fadiga”. Mas esse cenário de desgaste generalizado não afetou o plano de instrução dos responsáveis do grupo. Como a prestação dos soldados durante “não tinha sido boa”, o tenente Pedro Fernandes pô-los a rastejar nas silvas.

Aos instruendos que hesitavam em entrar nas silvas, outros instrutores à ordem do suspeito Pedro Fernandes pegaram nos instruendos pelos braços e empurraram-nos para dentro das silvas”, provocando mais lesões corporais.

10h30: a violação do Guião da Prova

A esta hora, o sargento Silva (pela segunda vez naquela manhã) e o furriel Garcia desmaiavam. O aspirante Seco queixava-se de “sede, tonturas e falta de ar”. O grupo de graduados estava a executar a Ginástica de Aplicação Militar — conhecida na gíria militar pelo acrónimo GAM, Ginástica Até à Morte –, que provoca “elevado desgaste físico”. A temperatura já estava nos 35º. Mas, suspeitando que o furriel Garcia estava a simular um estado de exaustão, um dos instrutores dava ordens para que o recruta fosse atirado para as silvas, onde outros colegas de curso rastejavam sob ordens dos seus superiores. “Tais condutas visaram humilhar e agredir fisicamente os instruendos, com grave violação dos procedimentos a adotar durante o curso, bem sabendo os instrutores que tais ordens eram contrárias aos deveres do militar e disciplina militar”, escreve a procuradora Cândida Vilar.

11h30: o capitão-médico aparece na instrução

Ao final da manhã, os recrutas, que tinham começado a marcha ao início da madrugada, tiveram direito a mais um período de descanso e a beber “entre 4 e 8 tampas de cantil de água”, o equivalente a menos de uma garrafa pequena. Era a terceira interrupção desde que tinham começado a “Prova Zero”, mas, no total, para o grupo de Hugo Abreu (que não dormira) essas pausas não tinham somado mais de 60 minutos entre a meia noite-noite e o final da manhã, de acordo com a investigação.

Mesmo assim, não havia tempo a perder. Era preciso acelerar o ritmo de desgaste e os graduados foram levados para a segunda instrução de Técnicas de Combate: o chamado “Carrossel”, uma das fases mais duras e que é descrita por comandos como o momento do “choque”.

Sem água, e com a temperatura já perto dos 40º, dois militares caíram inanimados: o sargento Silva e o furriel Gonçalves. O estado em que se encontravam outros quatro recrutas – os aspirantes Seco e Cardoso, o sargento Sousa e o furriel Garcia, que já tinha desmaiado – dava sinais de estarem perto do limite. O sargento Sousa vomitava e tremia.

É então, de acordo com os investigadores, que o médico Miguel Domingues aparece pela primeira vez, desde que os recrutas chegaram ao Campo de Tiro de Alcochete. O capitão manda retirar os primeiros homens e colocá-los sob observação na tenda de campanha, mas nesse grupo não estão nem Hugo Abreu nem Dylan Silva.

À mesma hora, a algumas centenas de metros, o pelotão P3 recebia a instrução de GAM, também de “elevado desgaste físico”. Os soldados Emídio, Peres, Dju e Torres “denotavam um elevado estado de cansaço e desidratação”. Mesmo ao lado, o soldado Batista vomitava e o soldado Godinho pedia água, sem forças para se levantar. A água chegou pouco depois.

Antes de almoço, já tinham desmaiado quatro homens (um deles duas vezes, no caso do sargento Silva).

Das 21h30 do dia 3 de setembro de 2016 às 12h20 do dia 4 de setembro, o grupo de graduados bebeu no máximo cerca de 10 tampas de água (o equivalente a uma garrafa de água de 33cl), sem ter tido praticamente descanso”, refere a investigação. Já o grupo P3, de Dylan Silva, “bebeu no máximo um cantil de água”, equivalente a um litro.

12h20: dois minutos para almoçar

Dois minutos para o almoço. Segundo a investigação, foi este o tempo que os graduados tiveram para comer uma lata de ração de combate e beber cerca de 1,6 litros de água. “A ração foi ingerida à pressa” porque o sargento Ricardo Rodrigues lhes deu “pouco tempo para a mesma”, refere o despacho.

Mas nem todos haviam de repor energias. “Os instruendos aspirantes Seco e Cardoso”, que já tinham dado sinais de exaustão, “e os furriéis Silva e Garcia”, que tinham caído a meio da manhã sem sentidos, “não almoçam porque não lhes foi dada ordem para tal”. É isso mesmo que dizem ao sargento Ricardo Rodrigues, quando são chamados para a formatura, às 14h. Mas de nada serviu. Seguiram para a instrução de Tiro de Combate de estômago vazio.

A diferença de tratamento entre os graduados e as praças seria evidente em vários momentos ao longo do dia. À hora de almoço, por exemplo, o grupo dos soldados teve direito a uma refeição mais completa: uma lata de ração de combate, duas maçãs e um pão. Também beberam a água que tinham no cantil e que voltaram a encher.

Mas nem isso ajudou os soldados Dju, Torres, Peres, Emídio e Godinho. Os sinais de desgaste que tinham apresentado durante a manhã foram-se agravando e, a esta hora, os quatro recrutas já “não conseguiam caminhar, porquanto apresentavam contrações dolorosas dos músculos”. Por volta desta hora, os recrutas Ricky Sousa e André Gonçalves foram afastados do grupo e levados para a enfermaria.

14h10: momentos críticos no inferno de Alcochete

Depois de levarem os recrutas para a instrução de Tiro de Combate, os instrutores “começaram a gritar com os instruendos, obrigando-os a rastejar, rebolar, efetuar marcha hiperfletida, corrida e cambalhotas”. O chão fervia debaixo dos militares, com temperaturas entre os 44º e os 48º, segundo dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera. O ar que os recrutas respiravam estava acima dos 40º.

Hugo Abreu não aguentava mais e desmaiava. Passava-se o mesmo com outros três instruendos: o alferes Neves e os furriéis Roios e Garcia (que perdia os sentidos pela segunda vez e que, entretanto, tinha sido deixado sem almoçar). Os aspirantes Seco e Cardoso continuavam bastante debilitados e a situação dos instruendos era cada vez mais crítica.

Por apresentar um “estado confucional”, o alferes Neves é levado de ambulância para o Posto de Socorros era colocado a soro. Na mesma viatura seguia o furriel Roios, “que apresentava sintomas de desidratação e cansaço extremo, ao ponto de não conseguir movimentar-se nem falar”.

É então que o furriel Garcia é levantado pelos braços por dois instrutores. Ia “ter uma recompensa”. Mas o corpo já estava demasiado fraco e o militar voltaria a desfalecer, “ficando prostrado no solo”. Só depois recebia ordem para abandonar o grupo de instrução.

O suspeito Pedro Fernandes sabia que as condutas acima descritas provocavam nos instruendos/ofendidos sofrimento físico e psicológico, como provocou, sujeitando-os a tratamento não compatível com a natureza humana e que tais atitudes eram contrárias aos deveres do militar e disciplina militar”, insiste a procuradora Cândida Vilar no despacho que levou à juíza de instrução Cláudia Pina.

O médico Miguel Domingues estava junto do grupo de graduados. Confrontado com o aparente estado de exaustão de vários recrutas, o capitão “ordenou aos aspirantes Cardoso e Seco e ao furriel Garcia” que rastejassem “alguns metros em direção à ambulância”, sublinha a procuradora, considerando que o oficial deu essa ordem “com o propósito de provocar lesões físicas e neurológicas nos ofendidos, bem sabendo que, dessa forma, agravava o estado de saúde dos mesmos”.

Apesar de visivelmente debilitado, Hugo Abreu continuava com o grupo de instrução. O recruta estava confuso, já não conseguia processar as ordens. Limitava-se a cuspir em seco e a repetir a mesma expressão: “Estou aqui para curar as feridas”. Mesmo assim, o enfermeiro João Coelho considerou que Abreu estava orientado no espaço e no tempo. Segundo a investigação, terá sido deste enfermeiro a decisão de dar prioridade ao alferes Neves e ao furriel Roios no transporte de ambulância. É nesse momento, refere a investigação, que o sargento Ricardo Rodrigues enche a mão de areia, coloca-a na boca do furriel e lhe diz “cospe lá agora”.

Enquanto dois colegas seguem para a enfermaria, Hugo Abreu recebe ordens para entrar na viatura de transporte de pessoal com os outros graduados. Mas está demasiado fraco e não consegue subir para a viatura. São os outros recrutas que o ajudam a entrar e que o deitam, depois, no chão da carrinha, na posição lateral de segurança. A caminho da zona onde estão montados os bivaques, Abreu começa a enrolar a língua e a revirar os olhos. Mais uma vez, são os colegas de curso (os instruendos Garcia e Silva, que haveria de desmaiar minutos depois) a sair em seu socorro, colocando-lhe uma tampa do cantil na boca, para que o Furriel não sufocasse.

É também Garcia quem sugere ao instrutor Ricardo Rodrigues que dê ordem para que Hugo Abreu seja transportado de imediato para um hospital.

Em tom agressivo e revelando total desprezo pela situação em que já se encontrava Hugo Abreu”, o tenente “pergunta ao instruendo Garcia se o mesmo era enfermeiro”.

No grupo P3, o cenário era semelhante: três soldados (Dju, Emídio e Torres) já tinham recebido ordem para abandonar a recruta e recuperavam na tenda de enfermaria. Os recrutas tiveram direito a um intervalo e voltaram a beber mais algumas tampas de água, menos que que uma garrafa pequena.

15h45: Hugo Abreu é levado para a enfermaria

Só a meio da tarde os instrutores e a equipa médica consideram que Hugo Abreu chegou ao limite. O furriel é levado para a enfermaria, mas os responsáveis pela investigação consideram que as próprias condições em que foi assistido não eram adequadas.

“A exaustão pelo calor obrigaria a que nenhum dos instruendos, mas em particular estes dois [Abreu e Diogo Neves], fossem colocados numa tenda sem refrigeração e sem que, de imediato, se procedesse ao arrefecimento corporal dos doentes e a medidas de suporte de funções vitais“, refere o despacho.

Perante um cenário como o dos dois militares, “os doentes devem ser rapidamente vestidos e colocados num ambiente fresco”. E isso não aconteceu porque o ambiente dentro da tenda de enfermaria estava mais quente que o exterior. “Tais procedimentos foram ignorados pelo suspeito Miguel Domingues, médico, pelos enfermeiros e pelo diretor da prova”, considera o Ministério Público.

Pouco depois das 15h, no grupo de soldados, há vários instruendos sem forças. Os instrutores querem por em marcha a prova de choque — o Carrossel –, mas os homens limitam-se a permanecer deitados no chão, esgotados e sem forças. O termómetro em Alcochete marca quase 41º. Mas os superiores não desistem.

Os suspeitos Miguel Almeida e Nuno Pinto deram ordens para que alguns dos instruendos fossem levados para um silvado para executarem outros exercícios físicos como castigo por estarem deitados, como aconteceu com o soldado Silva, que chegou a ser agredido na face com socos pelo suspeito Nuno Pinto“, descreve a investigação, com base nos relatos recolhidos pelos militares.

Os que escaparam ao castigo continuavam estendidos no chão, ao sol, “sem qualquer assistência”.

Dylan Silva também estava no limite. Mesmo assim, recebeu ordens para carregar a mochila do soldado Cardoso, incapaz de levantar-se devido às tonturas que sentia. A cambalear, sem forças para permanecer de pé, é a vez de Dylan Silva receber ajuda. O colega Nuno Pinto segura-o em braços e carrega-o até uma sombra, onde foi observado pelo médico que acompanhava o curso.

16h00: curso é suspenso

Hugo Abreu estava na enfermaria há menos de uma hora. Dylan Araújo da Silva estava a ser encaminhado para os serviços de saúde. E outros 20 instruendos do 127º Curso de Comandos estavam a soro na enfermaria quando o capitão Rui Monteiro tomou a decisão de suspender a instrução.

3 litros

O despacho do Ministério Público refere que “desde as 21h30 do dia 3 de setembro de 2016, os instruendos do 3º grupo (P3) tinham sido autorizados a ingerir cerca de três litros de água, quantidade muito inferior à necessária para qualquer ser humano face à onda de calor que se fazia sentir”

Quase um terço dos militares encontrava-se num enorme estado de exaustão e, na enfermaria, médico e enfermeiros aproveitavam todos os cantos para colocar os militares que iam chegando. O espaço apenas tinha capacidade para receber um máximo de 10 pessoas, mas acolhia mais do dobro.

Por isso, quando deixou de haver macas disponíveis, alguns instruendos começaram a ser colocados no chão. Outros foram postos em “burros de mato”, uma cama militar de nylon que fica instalada a uma altura próxima do solo. Alguns continuavam completamente fardados, apesar do calor. Outros já só tinham as calças vestidas e as botas calçadas.

18h00: as horas de agonia

Tal como os colegas de curso, Hugo Abreu e Dylan Araújo da Silva estavam deitados, a soro. Mas, no caso destes dois recrutas, a hidratação não estava a surtir qualquer efeito. Hugo Abreu tinha deixado de reagir a estímulos. Limitava-se a gemer. Dylan da Silva também já não reagia a estímulos e vomitava.

Mesmo assim, sublinha a investigação, “uma das socorristas e a enfermeira Isabel Nascimento foram jantar, desinteressando-se pelo estado de saúde dos inúmeros instruendos que se encontravam na tenda, em particular os instruendos Hugo Abreu e Dylan Silva”.

Uma hora depois, cerca das 19h, o médico volta a examinar os homens na enfermaria. Percebe que os recrutas precisam de outros cuidados médicos e ordena que seja preparada a sua transferência para o Hospital das Forças Armadas. Mas atribui-lhes apenas prioridade amarela, não urgente. É logo depois de dar essa indicação à equipa de saúde que Miguel Domingues abandona a tenda de enfermaria e o Campo de Tiro de Alcochete. Aos responsáveis pela investigação, o capitão garantiu que, até às 22h, esteve no Hospital das Forças Armadas (HFAR) a preparar as camas para os instruendos debilitados.

23 Comandos

O 127º curso de Comandos foi dos que mais baixas registou. Começaram 67 e acabaram 23, o que se traduz numa taxa de aprovação de 34%. A maior parte das saídas (27) aconteceu por desistência a pedido dos próprios militares — do grupo de graduados, apenas um dos elementos ficou até ao fim para receber a boina vermelha. Outros 11 militares tiveram de abandonar a instrução por indicação médica e quatro não estavam tecnicamente aptos para concluir o curso.

Às 20h36, Hugo Abreu teve uma paragem cardíaca. O INEM só foi contactado no minuto seguinte — mais de uma hora e meia depois de haver indicação para os homens serem transferidos para o HFAR. A chamada foi feita por um soldado, referindo que estão dois enfermeiros com o furriel. Só uma hora mais tarde, às 21h30, a ambulância do INEM com um médico e um enfermeiro, chega junto do militar. O enfermeiro do Regimento de Comandos tinha parado há minutos de executar manobras de reanimação a Hugo Abreu.

O médico do INEM dá uma indicação imediata para que seja enviada uma segunda ambulância. Dylan da Silva estava prostrado e com uma temperatura corporal acima dos 40º.

21h45: O óbito de Hugo Abreu é declarado

O médico civil focou-se, então, em Dylan Silva. O Soldado estava “semi-comatoso”, “de olhos fechados”, “com movimentos das mãos descoordenados”, não reagia a estímulos e não falava. Por isso, o clínico começou a cobri-lo com toalhas molhadas e sacos de gelo, “não tendo tais procedimentos sido suficientemente eficazes”. Dylan foi transferido para o Hospital do Barreiro nessa noite e, mais tarde, para o Hospital Curry Cabral. Acabaria por morrer no dia 10 de setembro.

Na segunda-feira, dia seguinte à crise no Curso de Comandos, o diretor de prova deu ordens para a instrução fosse retomada. Hugo Abreu tinha morrido, Dylan da Silva estava em situação crítica e havia ainda vários militares internados na tenda de campanha do Campo de Tiro de Alcochete.