13 de março de 2017. José Sócrates é mais uma vez interrogado pelo procurador Rosário Teixeira e o inspetor Paulo Silva. É a terceira vez que é confrontado com os indícios que a equipa de investigadores que coordena a Operação Marquês tem contra ele. Desta vez, o ex-primeiro-ministro não consegue disfarçar a raiva. Quando confrontado com as alegadas luvas de dinheiro pagas pelo Grupo Lena, o “animal feroz” faz jus ao petit nom. “Isso é mentira! O senhor está a inventar!“, dispara para Rosário Teixeira.

Este e outros diálogos foram revelados esta segunda-feira pela SIC. O conteúdo dos interrogatórios de José Sócrates já tinha sido tornado público pela comunicação social, nomeadamente pela revista Sábado. O Observador, por exemplo, noticiou após a acusação os interrogatórios dos principais arguidos, optando por publicar o primeiro interrogatório realizado a Sócrates quando o ex-primeiro-ministro foi detido em novembro de 2014. A SIC optou por publicar os vídeos do segundo e do terceiro interrogatórios realizados a Sócrates, sendo a primeira vez que são publicadas algumas imagens gravadas desses momentos.

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“Nunca me relacionei com banqueiros”

José Sócrates seria confrontado com as suspeitas de ter recebido cerca de 29 milhões de euros para favorecer a posição do Grupo Espírito Santo (GES) na Portugal Telecom — a maior empresa portuguesa até 2012. A alegada necessidade de Ricardo Salgado corromper José Sócrates é explicada pelo MP com a oposição que o Executivo do PS promoveu à OPA da Sonae à PT e também com a utilização das 500 golden-share por parte do então primeiro-ministro José Sócrates para impedir a venda de 50% do capital que a operadora portuguesa detinha na operadora brasileira Vivo, de forma a condicionar a venda da participação que a PT tinha na Vivo ao reinvestimento de boa parte dos 7,5 mil milhões de euros pagos pelos espanhóis da Telefónica na aquisição de uma nova participação numa nova operadora brasileira: a Oi/Telemar.

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Quando confrontado com esta suspeita, o ex-primeiro-ministro recusou qualquer ligação a Ricardo Salgado e desafiou os investigadores a apresentarem provas.

Eu nunca me relacionei com banqueiros. [Essa acusação] não resiste à mínima capacide para análise. Como é que vocês se atrevem a dizer que eu fui corrompido pelo Dr. Ricardo Salgado sem terem a mínima evidência, a mínima prova, um facto que vos leve a isso?”, respondeu o ex-primeiro-ministro.

A determinada altura, confrontado com o alegado papel que desempenhou na derrota da Sonae durante a OPA à PT, José Sócrates refutou todas as alegações de Rosário Teixeira e partiu para o ataque.

É impróprio de um procurador da República de um regime democrático fazer imputações sem as fundamentar. Essas imputações são gravíssimas. Isto é um ataque político a um Governo. E faz isto sem ter o mínimo fundamento para o fazer. Eu não tenho nenhuma responsabilidade com Bataglias ou Salgados…”, insistiu o ex-primeiro-ministro.

Vale do Lobo e o mastermind Sócrates

Nesse mesmo interrogatório, o terceiro a que foi sujeito, José Sócrates foi ainda confrontado com os alegados favorecimentos aos acionistas do resort Vale do Lobo, liderados por Hélder Bataglia. As suspeitas dos investigadores indicam que José Sócrates e Armando Vara, então administrador da Caixa Geral de Depósitos (CGD), terão recebido 2 milhões de euros para darem luz verde ao empréstimo concedido pelo banco público ao grupo de acionistas portugueses que vieram a comprar a maioria do capial da sociedade que detinha o resort de Vale do Lobo.

Confrontado com estes indícios, o ex-primeiro-ministro perde novamente a calma. “Desculpará mas não passará por cima disto! Eu nunca falei a Armando Vara sobre o Vale do Lobo. Com que base é que afirma aqui que fui o mastermind do empréstimo da CGD ao Vale do Lobo!? Eu nunca discuti o Vale do Lobo com ninguém!”, explode José Sócrates.

Com a tensão a disparar para níveis estratosféricos, os investigadores vão alertando o antigo governante para o facto de se estar a exceder-se e a levantar a voz. Os advogados, Pedro Delille e João Araújo, tentam fazer o mesmo. José Sócrates ainda ensaia uma pausa dramática, mas não consegue disfarçar. “Desculpe a violência da palavra, mas isto [a alegada interferência de Sócrates no negócio] foi uma manha sua, senhor procurador.

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A ex-mulher colaboradora de Carlos Santos Silva e a Parque Escolar

O confronto entre os três não ficaria por aqui. As despesas pagas pela XLM, outra empresa controlada por Carlos Santos Silva, a Sofia Fava, ex-mulher de José Sócrates, também estiveram no centro do terceiro interrogatório a José Sócrates. O ex-primeiro-ministro descartou qualquer responsabilidade na ligação entre ambos. “Não conheço essa XLM de lado nenhum. Sabia apenas que a minha ex-mulher trabalhava com o engenheiro Carlos Santos Silva. Isso era lá com eles. Ela era amiga dele, tal como o meu irmão era amigo do engenheiro Carlos Santos Silva”, garantiu.

A adjudicação ao Grupo Lena, liderado por Joaquim Barroca e do qual Carlos Santos Silva era um colaborador próximo, de várias obras da Parque Escolar foram, inevitavelmente, outro dos temas abordados. Entre 2009 e 2011, o Grupo Lena recebeu 89 milhões de euros da Parque Escolar, 47 milhões só entre 2010 e 2011. Os investigadores sempre desconfiaram que este volume de negócios — em muito superior à realidade da empresa — fosse uma mera coincidência e acreditam que José Sócrates pode ter desempenhado um papel fundamental no resultado dos concursos públicos lançados para a Parque Escolar.

O ex-primeiro-ministro exige a Rosário Teixeira que apresente provas das suspeitas que está a levantar. O procurador recusa inverter os papéis e o ex-primeiro-ministro perde mais uma vez a paciência.

“Não posso perguntar que provas é que tem para fazer uma afirmação destas? Ao longo do meu tempo como primeiro-ministro — e veja bem o que lhe estou a dizer, ‘veja bem’ no sentido de mark my words: nunca falei com nenhum ministro sobre nenhum concurso. Nunca! Não acompanhei nenhum concurso, não faço ideia! O senhor procurador pretende lançar lama para cima das pessoas“, rematou Sócrates.

O projeto de alta velocidade

Ao longo de todo o interrogatório, e de acordo com as imagens transmitidas pela SIC, Sócrates esteve sempre ao ataque. Só por uma vez Sócrates pareceu hesitar: no momento em que foi confrontado com a alegada participação na indemnização milionária que a Elos (de que fazia parte o grupo Lena) recebeu depois de falhada a construção do TGV.

De acordo com a investigação, o Grupo Elos conseguiu sempre introduzir no contrato com o Estado várias normas que alteravam a proposta avaliada, nomeadamente uma cláusula pela qual seria indemnizado em caso de visto prévio negativo pelo Tribunal de Conta. A tal cláusula que permitiu ao grupo ganhar os 149 milhões de euros sem construir um centímetro da linha de alta velocidade. A convicção do Ministério Público é que José Sócrates desempenhou um papel fundamental neste processo.

Para este interrogatório, Rosário Teixeira trouxe um depoimento fundamental: aos investigadores, Raul Vilaça Moura, na altura presidente do júri do concurso que atribuiu a concessão do TGV, confessou que estivera no gabinete do ex-primeiro-ministro, acompanhado por Mário Lino, em que discutiram precisamente os riscos que existiam em caso de recusa de visto do Tribunal de Contas.

Confrontado com esta nova informação, com a qual ainda não tinha sido confrontado nos dois primeiros interrogatórios, José Sócrates hesita. “Agora que o acabei de ouvir, a minha ideia é que isso tinha que ver com a terceira ponte… Mas, eh pá, talvez ele tenha uma memória mais fresca do que eu. Ele só se ocupava disso”. Rosário Teixeira insiste, mas José Sócrates descarta mais uma vez responsabilidades. “É muito simples. Tem de chamar o engenheiro Mario Lino. Eu nunca intervim em nenhum concurso.”

“Paguei todos os jantares. Mas será que isso valerá alguma coisa para a sua cabecinha?”

Outro dos momentos mais tensos do interrogatório a José Sócrates — neste caso, durante o segundo interrogatório, em maio de 2015 quando estava preso preventivamente há seis meses — aconteceu quando o ex-primeiro-ministro foi confrontado com as férias que foram suportadas por Carlos Santos Silva.

Sócrates desmentiu várias vezes a tese de que o empresário era o seu testa-de-ferro e perguntou aos investigadores se também eles se lembravam de quem pagou as suas últimas férias. A determinada altura, o antigo governante explode: sim, Carlos Santos Silva pagou as férias; mas foi ele quem pagou todos os jantares.

Eu paguei todos os jantares. Mas será que isso valerá alguma coisa para a sua cabecinha?”, questiona Sócrates, visivelmente irritado. Rosário Teixeira interrompe para apelar à calma, mas o ex-primeiro-ministro não dessarma: “Carlos Santos Silva é um amigo de 40 anos. Passo férias [com ele] há 20 anos. Mas os senhores saberão isso, já que devassaram toda a minha vida.”

O Ministério Público deduziu acusação na Operação Marquês contra 28 arguidos, entre eles José Sócrates, a quem são imputados 31 crimes. O ex-primeiro-ministro está acusado de três crimes de corrupção passiva, 16 de branqueamento de capitais, nove de falsificação de documento e três de fraude fiscal qualificada.

A fase de instrução criminal da Operação Marquês não deve iniciar-se antes de setembro — quase um ano depois da fase de inquérito ter terminado.

Fase de instrução criminal deve iniciar-se em setembro. Quase um ano depois de Sócrates ter sido acusado

Além de Sócrates, estão acusados o empresário Carlos Santos Silva, amigo de longa data e alegado `testa de ferro´ do antigo líder do PS, o ex-presidente do BES Ricardo Salgado, os antigos administradores da PT Henrique Granadeiro e Zeinal Bava e o ex-ministro e antigo administrador da CGD Armando Vara, entre outros.

A acusação deduziu também um pedido de indemnização cível a favor do Estado de 58 milhões de euros a pagar por José Sócrates, Ricardo Salgado, Carlos Santos Silva, Armando Vara, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava e outros acusados.