O “western” já foi dado por morto e enterrado incontáveis vezes, embora insista em manifestar-se regularmente, mesmo que por vezes de forma ectoplásmica ou algo retorcida. Mas a verdade é que continuam a fazê-los. Por exemplo, Mel Gibson vai realizar e interpretar um “remake” de “A Quadrilha Selvagem”, de Sam Peckinpah (e não parece nada boa ideia); Casey Affleck prepara-se para dirigir Joaquin Phoenix em “Far Bright Star”, sobre um soldado americano que persegue Pancho Villa; e “The Kid” vai contar o encontro entre Billy the Kid e Pat Garrett, da perspetiva de um miúdo, com um elenco onde surgem Ethan Hawke, Chris Pratt e Vincent D’Onofrio, que também realiza. Enquanto isso, já podemos ver “Os Irmãos Sisters”, de Jacques Audiard.

[Veja o “trailer” de “Os Irmãos Sisters”]

O filme passa-se em meados do século XIX, durante a grande expansão para o Oeste e a febre do ouro, e apesar de não ter posto os pés nos EUA (foi todo rodado em Espanha e na Roménia), “Os Irmãos Sisters” cria a ilusão perfeita de que estamos nas paisagens consagradas e mitificadas pelo “western”. John C. Reilly e Joaquin Phoenix interpretam Eli e Charlie, os irmãos com o apelido curioso (cómico, até) do título. Mas longe de serem heróis, não são flores que se cheirem, e o que fazem não tem graça nenhuma. Ganham a vida como pistoleiros contratados, e a história abre em plena noite, com os Sisters a eliminarem impiedosamente um grupo de homens refugiados na casa de um rancho em chamas.

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[Veja uma entrevista com Joaquin Phoenix]

Os irmãos são então contratados por um potentado local, o Comodoro (Rutger Hauer numa participação muda e fugidia), para encontrarem Herman Kermit (Riz Ahmed), um químico que inventou um processo fácil e prático de localizar e extrair ouro dos rios. Herman é pessoa de princípios e não quer trabalhar para um criminoso como o Comodoro, e fugiu. Este mandou à frente um homem, o melancólico John Morris (Jake Gyllenhaal), para localizar Herman, ganhar a sua confiança, capturá-lo e depois entregá-lo aos Sisters, que tratarão de lhe extrair o método de exploração de ouro e o encherão de chumbo a seguir. Parece simples, mas a imprevisibilidade da natureza humana pode meter-se no caminho do plano mais bem traçado.

[Veja uma entrevista com John C. Reilly]

“Os Irmãos Sisters” é um “western” singular. Realizado por um francês na Europa com base no livro escrito por um canadiano, com um elenco na sua maioria de atores americanos, o filme, por um lado, contempla e respeita temas, tipos de personagens e situações do género, e pelo outro contorna-os e rasteira-os. Os protagonistas ora agem como se estivessem num “western” tradicional, ora nos surpreendem a fazer coisas que nunca esperaríamos ver num filme destes, como sucede quando Eli descobre, maravilhado, a escova e a pasta de dentes. De cabo a rabo de “Os Irmãos Sisters”, Jacques Audiard alterna entre cumprir convenções do formato e mandá-las dar uma volta (e não serão poucos os que lamentarão ele ter-nos privado do esperado tiroteio final, embora mostre o mar, coisa raríssima numa fita de “cowboys”).

[Veja uma entrevista com Jake Gyllenhaal e Riz Ahmed]

O filme é atravessado pela tensão entre o velho Oeste da violência, do caos e da ausência de lei, representado por personagens como o Comodoro e o sanguinolento, alcoolizado e brutinho Charlie Sisters, e o novo Oeste que está a ser construído, de lei, ordem e civilização, corporizado por Herman, John Morris e sobretudo por Eli Sisters, cada vez menos à vontade com o seu modo de vida errante, perigoso e violento, que quer abandonar de vez, para assentar, abrir um negócio e passar a ser um cidadão normal. Joaquin Phoenix e John C. Reilly são os esteios da história, excelentes, um na truculência crónica, o outro na inquietação da vontade de mudar, a interpretar estes irmãos que, apesar de viverem pelas armas e de precisarem um do outro para sobreviver, são totalmente diferentes nos feitios, nas sensibilidades e nas aspirações. 

Jacques Audiard: “‘Os Irmãos Sisters’” é um filme sobre o amor fraternal’”

Depois de muitas peripécias, e por portas e travessas, “Os Irmãos Sisters” revela, mesmo no fim, a sua verdadeira natureza. Sob as roupagens de um “western” que navega entre a tradição e o revisionismo, está um filme sobre a força do amor fraternal, a importância dos laços familiares e o apelo da ordem e da paz. E como consegui-las, senão regressando a casa?  Se “Os Irmãos Sisters” começa com um tiroteio, mortes e um incêndio, termina no sossego e no aconchego do lar e no reencontro da mãe.