As redes sociais podem servir de barómetro para várias coisas (a questão da fiabilidade aqui não é aplicável). Se utilizarmos essa ideia no dérbi dos dérbis entre Benfica e Sporting, o resultado é evidente: algumas imagens de pessoas com camisolas ou cachecóis, famílias e amigos que aproveitam o jogo para se encontrar, mas ansiedade quase nula perante a falta de objetivos mais altos do que o terceiro lugar que os leões tentavam segurar com uma pequena vantagem em relação ao Sp. Braga, que à mesma hora recebia o FC Porto. Quando o futebol regressou em Portugal, a última jornada do Campeonato poderia ser a ronda do título, de todas as decisões, de uma “loucura” que ia parar o país sem que se percebesse onde, quem, quando e à custa do quê se fazia a festa. A linha entre o mérito dos azuis e brancos e o demérito dos encarnados escreveu outra história – afinal, era só um dérbi.

https://observador.pt/2020/07/25/benfica-sporting-o-derbi-dos-derbis-que-tem-como-unica-decisao-a-luta-pelo-terceiro-lugar-e-para-os-leoes/

Por isso, e de forma meio random, a discussão sobre a capa dos jornais desportivos ganhou um peso maior do que o normal pela imagem de primeira página d’A Bola muito elogiada, com referência ao regresso da Fórmula 1 a Portugal 24 anos depois da vitória de Jacques Villeneuve no Estoril e a fotografia da vitória do Vanwall de Stirling Moss no histórico circuito da Boavista. As diferenças no carro, o painel de publicidade fixa na reta da meta, um senhor de calça de fato e camisa branca a acenar a bandeira de xadrez, tudo aquilo que nos consegue prender a pensar como seriam as coisas nesses tempos. Como era o futebol em 1958, ano do primeiro Grande Prémio em solo nacional? O Sporting, que vinha do período glorioso dos Cinco Violinos e que tinha a alcunha do ‘Crónico’ por ter ganho sete vezes em oito anos, tinha dez Campeonatos e cinco Taças; o Benfica, que estava a começar o seu período de hegemonia com Eusébio e companhia, levava nove Campeonatos e outras tantas Taças. Eram de longe os dois clubes com mais títulos, bem à frente de FC Porto, Belenenses e Académica. Este sábado, terminavam uma temporada com poucos motivos de recordações e muito por culpa própria.

Num filme invertido em relação ao que se passou na última temporada, o Benfica deitou por terra uma liderança que chegou a ser de sete pontos. E o problema não foi propriamente as últimas quatro jornadas, em que as águias somaram três vitórias e um empate além de não sofrerem golos nos dois encontros antes do dérbi (V. Guimarães e Desp. Aves), mas sim o completo descalabro antes e depois da pandemia que se seguiu à derrota no Dragão frente ao FC Porto: nesses dez encontros, com 30 pontos em disputa, os encarnados conseguiram somente dois triunfos, perderam quatro vezes, estiveram quatro jogos consecutivos na Luz sem vencer e fizeram dez pontos.

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A equipa perdeu solidez defensiva, liderança no meio-campo, eficácia no ataque. Perdeu controlo emocional, perdeu-se sem controlo emocional. A ligação entre setores, que era feita de olhos fechados, ficou às cegas. Bruno Lage, aquele treinador que tinha alcançado 18 vitórias e um empate nos últimos 19 jogos do Campeonato passado e mais 18 vitórias e uma derrota nos primeiros 19 jogos deste Campeonato, saiu por uma porta que pareceu pequena mas que só o tempo irá explicar se era uma porta grande ou mesmo uma janela. Muitos erros próprios sem que a culpa fugisse sempre a uma morte solteira que condicionou por completo uma temporada ótima na primeira volta e péssima na segunda. Agora, o efeito Jorge Jesus e as ilusões de reforços entre um investimento sem precedentes enchem páginas de jornais e sonhos de adeptos mas sem as ilações devidas de tudo o que se passou retiradas.

No Sporting, o cenário foi ainda pior. No final esta época ficará para sempre como aquela onde ficou carimbado o maior jejum de triunfos no Campeonato (18 anos e a contar, mais do que o interregno entre 1982 e 2000) mas a última imagem até foi a de uma equipa na versão 2.0, a preparar a próxima temporada, a lançar jovens jogadores tendo em vista o futuro, sem qualquer tipo de pressão seja pela falta de público, seja pela inexistência de objetivos concretos sem ser a questão do terceiro lugar e por uma mera questão logística de entrar mais cedo ou mais tarde em 2020/21 pela qualificação para a fase de grupos da Liga Europa. Uma imagem quase em forma de consolação que mereceu mesmo o apoio das claques, tantas vezes desavindas com a equipa que sofria quase de forma indireta pelo conflito aberto com a Direção, como aconteceu agora na Academia antes da ida para a Luz.

O que falhou? Quase tudo. Das sucessivas alterações técnicas com modelos, ideias e esquemas diferentes entre Marcel Keizer, Leonel Pontes, Silas e Rúben Amorim aos desequilíbrios notórios no plantel (basta dizer que o único avançado de raiz até janeiro era Luiz Phellype), da instabilidade institucional que nem os dois títulos da última temporada conseguiu arrefecer à falta de jogadores que consigam fazer a diferença sobretudo desde a transferência de Bruno Fernandes para o Manchester United, por cada solução que o Sporting tentava encontrar surgiam sempre mais dois problemas por resolver. Mais do que isso, o “fosso” notório em relação aos rivais diretos FC Porto e Benfica não só não era reduzido como corria o risco de ser aumentado. A contratação de Amorim ao Sp. Braga, naquela que foi a terceira mais cara de sempre de um treinador, visava sobretudo amenizar essa diferença.

No dérbi, que teve alguma qualidade, várias oportunidades e três golos, as duas realidades atuais chocaram. Ou seja, mesmo o Sporting com mais vontade de aprender, com mais capacidade de aplicar conceitos e com mais tentativa de dar o salto para outro patamar foi insuficiente para um Benfica mais experiente, mais rodado e que mesmo a meio gás conseguiu ganhar a dois minutos do final. Essa é a maior diferente entre rivais: uns, mesmo no final de uma temporada falhada, estão na universidade e querem melhorar as notas com o regresso do catedrático Jesus com milhões à disposição para investir; outros, mesmo com um final de temporada menos falhado, estão ainda na primária e querem investir alguns tostões para chegarem pelo menos ao ensino secundário. E percebe-se que basta uma peça para desequilibrar todo o xadrez leonino, neste caso Coates: com a lesão do central uruguaio no aquecimento (entrou Neto), a equipa ficou demasiado frágil nas bolas paradas defensivas e ofensivas.

O encontro começou vivo, com Jovane Cabral a ganhar o prémio do infortúnio logo a abrir numa falta dura de Weigl onde ainda levou com uma bolada de André Almeida mas a ter depois o primeiro remate do encontro, mais descaído na esquerda, à figura de Vlachodimos. Os leões estavam mais tranquilos, com mais posse mas apenas por dez minutos, altura em que o Benfica conseguiu acertar as zonas de pressão ofensivas, condicionou por completo a habitual saída pelo lado direito e criou duas situações perigosas por Pizzi, com uma primeira tentativa travada com as pernas por Luís Maximiano e uma segunda que passou perto do poste da baliza verde e branca, havendo pelo meio outra boa iniciativa de Matheus Nunes a arriscar a meia distância que assustou Vlachodimos.

Aliás, olhando para a primeira parte, a entrada verde e branca foi mesmo fogo de vista: a equipa tinha mais posse, melhor eficácia de passe e uma quantidade superior de duelos ganhos mas sem profundidade, sem ligação à frente e a viver em demasia das iniciativas individuais a partir do último terço. Ao invés, e mesmo sem fazer um grande jogo, o Benfica era mais equipa na forma como ia gerindo os momentos, como controlava as transições, como fazia por preparar as iniciativas atacantes. E se o Sporting nunca conseguiu perceber o calcanhar de Aquiles que havia no adversário quando a bola entrava no espaço entre as costas de Weigl e os centrais, os encarnados exploraram da melhor forma as fragilidades contrárias nas bolas paradas: Seferovic inaugurou o marcador na sequência de um canto após assistência de Rúben Dias, o central acertou ainda no poste também após canto e Gabriel rematou com perigo numa segunda bola após livre lateral nos lances com maior perigo até ao intervalo.

Após o intervalo, com o jovem Tiago Tomás (um jogador com características mais de ‘9’ do que de ala) no lugar de Gonzalo Plata, o Sporting voltou a ter dois calafrios com as bolas paradas a fazerem mais uma vez a diferença (Luís Maximiano travou o remate ao segundo poste de Jardel após assistência de Pizzi) mas criou aquela que foi até então a melhor oportunidade no jogo, numa combinação de Nuno Mendes com Sporar que terminou com o remate do lateral para grande defesa de Vlachodimos. Mais uma vez, quase como se fosse uma questão de estímulo ou reflexo pavloviano, a equipa verde e branca melhorou durante alguns minutos, com outra confiança em posse e maior capacidade de dar profundidade ao seu jogo, mas tudo voltaria ao controlo do Benfica pouco depois, quando Seferovic rematou muito perto do poste e deixou uma aviso que fez tremer de novo os visitantes.

O Sporting precisava de mais um estímulo, de mais um momento de confiança, de mais um lance que permitisse estabilizar a equipa em termos emocionais para jogar o jogo pelo jogo e dar outra objetividade à maior capacidade de posse. E esse “empurrão” acabou por chegar numa oferta de Jardel, que queria tanto aliviar uma bola na área que falhou o pontapé, deixou que Tiago Tomás se isolasse e o jovem avançado acertou no poste. A melhor chance estava desperdiçada mas ficou essa crença de que era possível marcar na Luz, algo que viria a acontecer uns minutos depois com o mesmo Tiago Tomás a assistir Sporar na área para o remate cruzado que fez o 1-1 (69′) e recolocou a formação verde e branca no terceiro lugar, já depois de o Sp. Braga ter conseguido a reviravolta na Pedreira frente ao FC Porto com dois golos no arranque da segunda parte após a desvantagem ao intervalo.

Depois, e mais uma vez, a diferença entre Benfica e Sporting. Mesmo uma equipa encarnada a meio gás consegue ser melhor do que um conjunto verde e branco a todo o gás porque o futebol é mais do que experiências, talento e vontade. Tem qualidade, tem experiência, tem rodagem. E bastou haver alguma quebra física para os visitados para as águias crescerem, voltarem a tomar conta do encontro e chegarem mesmo ao golo do triunfo a dois minutos do final, com Pizzi a fazer a insistência após canto e a assistir Vinícius para o 2-1 que ainda foi anulado pelo árbitro assistente mas que seria mais tarde validado pelo VAR na revisão das imagens.