Na sua noite de núpcias em 1848, o pintor, escritor e crítico de arte britânico John Ruskin apanhou o susto da sua vida, ou assim diz a mitologia: a mulher, Effie Gray, não tinha nada a ver com as estátuas imaculadas que passava a vida a ver, mas estava cravada de pelos — como qualquer mulher no século XIX, diga-se em defesa de Gray. Tempos depois, nos anos 60 do mesmo século, o pintor Gustave Courbet esclareceu tudo quando pintou a “Origem do Mundo”, um manual do corpo feminino para quem só conhecia a anatomia pela arte.

Foi preciso pouco mais de um século para que o mundo ocidental alinhasse com Ruskin e começassem a ver-se pernas, axilas e virilhas femininas depiladas. Mas há uma nova tendência que casa com movimentos feministas dos anos ’60 e ’70: a internet e as redes sociais enchem-se de mulheres que fazem questão de dizer e mostrar que não se depilam. O mais recente nome é Yasmin Gasimov, a estudante de filosofia na Universidade de Liverpool de origem turca que, aos 19 anos, publicou um texto no site regional The Tab onde partilha as razões por que não se depila desde os 11 anos.

“Deixei de me preocupar aos 11 anos. Tinha naturalmente pelos grossos e de crescimento rápido e isso significava que tinha de desperdiçar uma hora a tirar esses picos das minhas perdas, e na semana seguinte estariam de volta. Era horrível para mim porque nunca estava confortável, tinha toneladas de pelos encravados e as minhas pernas lisas nunca combinariam com o resto do meu corpo peludo. Porque me preocupar?”

Yasmim admite que se depila, embora muito raramente: se vai à praia ou a aulas de natação, ou mesmo quando está à procura de uma one night stand. “Sinto que não o estou a fazer por mim, mas para evitar o suicídio social. (…) Infelizmente ainda prefiro o inconveniente de fazer a depilação aos inevitáveis olhares de nojo e rejeição”, continua, acrescentando que as pessoas mais próximas aceitam esta opção, mas que também elas começaram por ter reações negativas: a mãe achava-a descuidada, os amigos achavam que não era higiénico e um ex-namorado pediu-lhe que depilasse a barriga.

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“Esconder-me seria apenas perpetuar as expectativas desajustadas que a sociedade tem da mulher, e a única coisa que pode ajudar é a exposição pública da realidade do pelo feminino. A maioria de vocês ficará chocado, claro. Muitos continuarão a achar que sou nojenta, mas espero que outros tantos questionem por que pensam dessa forma, especialmente se acham que isto seria aceitável se eu tivesse um cromossoma Y”.

O pelo no corpo da mulher, no caso de existir, tornou-se uma questão mais política do que estética no último século: nos anos 60 era comum entre as mulheres que se consideravam feministas e em 1978 Patti Smith pousou na capa do seu álbum Easter mostrando as axilas por depilar. Yasmin diz que muitas vezes se associa a opção de manter o pelo no corpo à “feminista-lésbica-que-adora-gatos”, já que os pelos no corpo são, nos homens, sinónimo de virilidade.

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Como Yasmin, pela internet crescem movimentos de mulheres que se orgulham de exibir as suas pernas e axilas por depilar e vinculam sempre a ideia de que um corpo sem pelos é uma invenção da sociedade e uma forma de exercer pressão sobre a mulher, construindo ideais de beleza dolorosos e anti-naturais.

Ao mesmo tempo, tenta mostrar-se a beleza daquilo que é o oposto ao ideal ocidental de mulher. A conta de Instagram Pitangels recolhe imagens de mulheres a mostrarem os seus pelos nas axilas, ao natural ou com coloração, e acrescenta-lhes hashtags como #princess, #gourgeous ou #beautiful, e se se fizer uma pesquisa pela hashtag #pithair aparecem cerca de 2.300 resultados, e com a hashtag #pithairdontcare há outros 1.400.

O Tumblr Hairy Legs Club junta desde 2010 fotografias e testemunhos de mulheres que escolhem não se depilar.

“As pessoas sempre elogiaram as minhas pernas altas, sem saberem o que está por trás dos meus jeans justos. Anos de depilação de diferentes tipos levaram a pelos encravados e pele vermelha cheia de cicatrizes. Agora é tempo de a curar. Espero ter a coragem neste verão de apanhar sol nestas zonas do corpo que andam escondidas e que estão ansiosas pela oportunidade de respirar e ter alguma vitamina D!”, diz um dos comentários.

Outra das visitantes da página lembra como na sua terra natal, no continente asiático, ninguém se preocupa com os pelos nos corpo: “Se tem pelos ou não, não interessa, a não ser que se seja uma celebridade e tenha que se conformar com ideiais de beleza ocidentais que ditam que se deve ser branca e depilada. Para as pessoas comuns, não é uma questão, e alguns homens até admiram mulheres peludas porque isso significa força e masculinidade em vez de fraqueza.” E no entanto, apesar da confiança da maioria dos testemunhos, a gestão da página tem de avisar que “este é um espaço positivo” e que qualquer mensagem insultuosa será apagada ou bloqueada, mostrando que não é só na rua que quem assume esta opção é olhado de lado.

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A ilustradora brasileira Carol Rossetti criou várias imagens em que apela a que as mulheres escolham como usar o seu corpo. Esta mostra a depilação como uma opção.

Na China, a ativista pelos direitos das mulheres Xiao Meili lançou uma competição na rede social deste país, Weibo, e pede às mulheres que mostrem os seus pelos nas axilas. O seu objetivo é tornar as mulheres confortáveis com o seu corpo, sendo que, diz na sua página do Weibo, as mulheres chinesas “preferem cair nos autocarros a levantarem o braço para se segurarem e assim exporem os pelos”.

O que todos estes movimentos se estão a perguntar é por que é que as mulheres se depilam. Dizem que não querem convencer ninguém a deixar de fazer a depilação, mas insistem: as mulheres depilam-se porque querem ou porque são pressionadas para isso?

Depilações mais profundas, a pedido dos homens

Marta Moreira é esteticista na loja Não + Pêlo da Estefânia, em Lisboa, e reconhece que muitas raparigas fazem depilações mais profundas a pedido dos homens, para evitar reações parecidas à de John Ruskin. “Antes [há cerca de 10 anos] a depilação nas virilhas acontecia mais no verão e fazia-se só nas áreas visíveis, agora é mais equilibrado ao longo do ano e é cada vez mais profunda. Há cada vez mais uma pressão social nesse sentido: não é bonito e os namorados não gostam”, conta.

Se a partir dos 40 anos é raro aparecerem mulheres para fazer depilação integral, é frequente que raparigas de 14 ou 15 anos o façam, “muitas vezes não na primeira vez, mas acabam por fazer, por uma questão de moda — são idades que mais facilmente seguem as tendências — e por pressão dos namorados que também fazem depilação. Começou quase a ser considerado sujo ter pelos”, diz Marta, que lembra ainda como a pornografia vinculou a imagem da mulher completamente depilada.

Apesar disso, o método mais escolhido pelas suas clientes para a zona íntima é a depilação cavada, um meio-termo entre a depilação apenas da zona da virilha visível e a depilação completa.

No seu salão de estética, Marta Moreira faz apenas depilação através de luz pulsada intensa, um método mais duradouro que a cera e que, se feito com alguma frequência — oito sessões com um mês e meio de intervalo — pode chegar a precisar apenas de manutenção de seis em seis meses. O seu público são essencialmente mulheres a partir dos 25 anos e as partes do corpo que mais depilam são as pernas e a cara.

A esteticista nota que há clientes que o fazem apenas pelo aspeto social, já que lhes é muito doloroso, mas não identifica esta tendência de deixar crescer os pelos que se pesquisa facilmente no Google. Pelo contrário, a quantidade de pessoas a fazer depilação tem aumentado, e não só quando falamos de mulheres. “É quase um vício, começa por uma ou duas zonas e vai-se estendendo pelo corpo. E os rapazes ganharam uma aversão aos pelos repentina e brusca. Há rapazes com 16 anos a fazer depilação no corpo todo.”

A imagem do corpo liso e sedoso não esmorece, mas aparecem exemplos de um look au naturale associados a uma certa irreverência. Este ano, Miley Cirus publicou fotografias onde mostra os pelos das axilas pintados de cor-de-rosa e Jemima Kirke, a Jessa de Girls, apareceu na passadeira vermelha de uns prémios de moda com pelinhos debaixo dos braços; no ano passado o jornal britânico Guardian chegou mesmo a dizer que 2014 era “the year of the bush”, tempo para redescobrir os pelos femininos, quando a atriz Cameron Diaz disse que os pelos públicos estão lá por alguma razão e que tirá-los era como dizer “eu não preciso do meu nariz”.

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Enquanto isto, cresce o número de mulheres a aderir à depilação brasileira — a Cosmopolitan dá o exemplo americano dos Bliss Spas que fizeram em 2013 mais de 70 mil depilações brasileiras, o dobro dos números de 2011, com tendência para continuar a aumentar. “A depilação brasileira é a nova norma”, disse na altura Susan Grey, da direção destes spas.

Estudos da Indiana University concordam com as impressões das esteticistas: em 2011, 60 por cento das americanas entre os 18 e os 24 depilavam-se completamente na zona púbica e os mesmos estudos associam esta prática a mulheres sexualmente ativas, que têm sexo oral frequentemente e que não têm relações monogâmicas.

Além disto, há o peso da história recente: antes da Primeira Guerra ninguém se depilava, mas o guarda-roupa feminino foi-se tornando cada vez mais revelador. Christine Hope, no ensaio Caucasian Female Body Hair and American Culture, identifica o ano de 1915 como o ponto de viragem, quando um anúncio a um creme depilatório aparece pela primeira vez na revista americana Harper’s Bazaar. Com a introdução das mangas cavas no vestuário, este anúncio faz com que a mulher se torne consciente do seu pelo como algo inestético e constrangedor: “A mulher exigente de hoje tem de ter axilas imaculadas se quer estar livre de embaraços”.

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Anúncio na Harper’s Bazaar de 1922. DR

Uma história da depilação

Com a entrada nos anos 20 e a subida das bainhas, também os pelos das pernas ficaram em cheque. Mas como os tirar? Com a Gilette, a depilação torna-se acessível quando a marca começa, ainda durante a Primeira Guerra Mundial, a produzir lâminas de barbear em massa que transforma, pouco tempo depois, num produto também feminino. Até aqui, a moda de acabar com os pelos podia ter-se tornado não mais que isso: uma moda passageira, como outras, sobretudo se repararmos que a publicidade a lâminas e cremes depilatórios era sazonal nos Estados Unidos — entre abril e setembro. Mas de moda passou a norma e nos anos 50 a depilação das zonas visíveis do corpo estava instalada, sendo associada à mulher cuidada e sensual. Ainda hoje não será difícil encontrar anúncios que associem uma mulher sem pelos a uma mulher mais sexualmente desejável — alguns deles polémicos, como o da Veet que foi retirado do mercado depois de alguma revolta nas redes sociais.

https://www.youtube.com/watch?v=UxCHLXQffsg

Para a depilação púbica não houve publicidade, foram mais importantes aspetos culturais como o uso do biquíni, por volta dos anos 40, e a roupa interior cada vez mais reduzida. Dos anos 70 fica-nos a expressão 70s bush, que lembra como a época da libertação sexual da mulher usou este traço feminino como símbolo. Nos anos 80, com as linhas mais reveladoras do biquíni vai-se perdendo pelo, mas a fotografia de moda até aos anos 2000, por exemplo, mostra frequentemente nus com pelos púbicos.

Marta Moreira nota que a depilação mais profunda na zona íntima se tornou uma tendência com a imigração brasileira, nos últimos 10 anos. “Muitas brasileiras começaram a abrir salões e a trabalhar como esteticistas. Hoje é banalíssimo.” Foi assim que tudo começou também nos Estados Unidos, o grande trend-setter se tivermos em conta que a moda se vincula também no cinema e na televisão. Em 1987, sete irmãs brasileiras abriram o salão de estética J. Sisters em Manhattan, onde começaram a fazer depilações genitais que deixavam muito pouco pelo — uma prática que permaneceu bizarra até aos anos 2000. No episódio 14 da terceira temporada de Sexo e a Cidade, Carrie Bradshaw faz depilação brasileira por engano e descreve a sensação como “I feel I’m nothing but walking sex”.

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Carrie Bradshaw na hora da verdade. © Sex and the City

Foi aqui que começou o grande boom da depilação profunda nos Estados Unidos que resultou num agradecimento da comunidade médica à personagem de Sarah Jessica Parker pela quase extinção dos piolhos púbicos — embora a depilação total não seja medicamente aconselhável, já que “o pelo protege da entrada de micro-organismos”, lembra Marta Moreira.

À proliferação de esteticistas que oferecem esta técnica nos Estados Unidos, nos anos seguintes juntaram-se as declarações de alguns ícones: em 2003, Victoria Beckman afirmou que a depilação brasileira devia ser obrigatória a partir dos 15 anos, e Eva Longoria, em 2006, disse que “toda a mulher devia experimentar a depilação brasileira uma vez. O sexo que tem depois disso vai fazer com que volte a fazê-lo”.

Mas numa época em que o estilo brasileiro está disseminado, o que é ousado é abraçar a natureza. E da mesma maneira que Sexo e Cidade criou um statement sobre o assunto, alguns críticos declararam a decadência da linha do biquíni quando na série Girls, da HBO, Gary Hoffmann mostra a sua zona púbica não depilada.

No entanto, Caroline, a personagem de Hoffman, não é a mulher moderna e sexualmente sofisticada que é Bradshaw. Pelo contrário, é caracterizada como excêntrica, ligada à natureza e à espiritualidade de uma forma quase bizarra — na cena em que quase dá à luz numa banheira cheia de água mostra-se agressiva e admite no final que esta sua atitude quase colocou a vida da filha em risco. A pontuar esta excentricidade no que toca a depilação está o comentário de Hannah, personagem de Lena Duhnam, na primeira vez que vê Caroline nua: “I don’t think I could grow a bush like this if I wanted to”.

Também o que aconteceu a Yasmin depois de publicar o seu texto de tom confessional casa com esta imagem de quase aberração. A estudante foi convidada pelo canal britânico ITV para o programa da manhã, que pouco tempo depois cancelou a entrevista. “Aparentemente a minha posição (…) não era extrema o suficiente. Talvez quisessem alguém controverso para continuar a explorar o freak show”, escreveu nas redes sociais.

Yasmin continua a publicar fotografias na internet das suas pernas com legendas como “feeling sexy and free”. Afirma que “nada nos pelos naturais do corpo deve fazer uma mulher sentir-se menos mulher” e faz por quebrar a ligação a que estamos habituados entre a depilação impecável e o sexo: “Se estão a tentar seduzir, há homens que gostam de mulheres peludas. Falo por experiência própria.”