O “remake” de “O Pátio das Cantigas”, de Leonel Vieira (primeiro de uma trilogia de títulos maiores da comédia portuguesa que incluirão ainda “O Leão da Estrela” e “A Canção de Lisboa”), é assim como que uma versão pimba do clássico de 1942 realizado por Francisco Ribeiro (Ribeirinho) e escrito por este, pelo seu irmão António Lopes Ribeiro e por Vasco Santana, um dos melhores, mais bem-amados e mais perenes filmes da história do cinema português, que pede meças a qualquer outra comédia feita na altura onde quer que seja e passa de geração em geração com o seu potencial de riso intacto.
Comparado com este, o novo “Pátio das Cantigas” faz figura de contrafacção grosseira, de moeda má face à moeda boa. Se se tratasse de televisão, seria como comparar “Os Batanetes” com o “Monty Python Flying Circus”.
“Trailer” de O Pátio das Cantigas (2015)
Além de ser a expressão cinematográfica genuína da vida tal como se vivia nos bairros populares da Lisboa da altura, ela mesma então ainda uma enorme aldeia, e de uma identidade e um modo de ser simultaneamente alfacinha e nacional, “O Pátio das Cantigas” de 1942 é joalharia de comédia, ou não tivesse sido criado por três talentos superiores, qualquer que fosse o meio em que trabalhassem, do teatro ao cinema, da rádio à televisão, e que se moviam sem esforço entre a cultura popular e a cultura erudita, entre a rua e os salões artísticos.
O filme cintila de diálogos, trocadilhos e segundos sentidos espirituosos e hilariantes, de achados cómicos, de partes gagas irresistíveis e de momentos visuais inspirados, está povoado por primeiras figuras de génio (António Silva, Vasco Santana, Ribeirinho, etc.), por actores secundários e por “característicos” inesquecíveis, personificando figuras que existiam mesmo ali ao virar da esquina, e exibe uma homogeneidade narrativa intocável, de fazer inveja a muito filme português de hoje.
Cena de “O Pátio das Cantigas” (1942)
Já “O Pátio das Cantigas” versão 2015 é um calhau de comédia, pesado de graçolas chineleiras, de bocas “tás-a-ver-ó-meu?”, de humor de tasca, de situações apalhaçadas, de palha de riso, de glosas menores do filme original, sem uma ideia cómica, um rasgo visual, um “gag” que fique de recordação, uma piada que perdure nos ouvidos e seja citável para a posteridade. Interpretado por uma mistura de bons e respeitáveis actores metidos em bonecos toscos (Miguel Guilherme a fazer uma imitação de uma caricatura de António Silva, Anabela Moreira na irmã pãozinho-sem-sal da estridente Amália, Manuel Cavaco sem nada para fazer), de carinhas larocas das telenovelas, de engraçados televisivos e de contadores de anedotas profissionais, o filme tem ar de televisão maquilhada para se assemelhar a cinema. E ainda acaba por se desfazer num final mal atamancado, em que tudo é resolvido a trouxe-mouxe, e rematado com um número de musical de Bollywood, não se percebendo se é por ser moda, se é para fazer profissão de fé multicultural, ou se foi mesmo “dessincronização”.
Em termos de reflectir os nossos tempos e a Lisboa de hoje, temos que neste “Pátio das Cantigas” o Evaristo é dono de uma mercearia “gourmet” e a filha dele uma “teen” estouvada, o Narciso guia um “tuk-tuk” e papa turistas em série, a Rosa é uma trintona boazona que vende sapatos e cozinha num “hostel”, a Amália quer ir cantar à televisão e ser “famosa”, há uns indianos e uma Loja do Ouro no bairro, umas cenas de cama tontas, a Maria da Graça que regressa do Brasil agora joga no clube da Ivete Sangalo, e por aqui ficamos no que à relevância contemporânea diz respeito.
Façamos figas para que não haja aí alguém que se lembre de actualizar o “Aniki Bóbó” de Manuel de Oliveira, transformando as crianças em filhos de “junkies” e de traficantes de um bairro chunga do Porto que vivem do Rendimento de Inserção Social, e assaltam velhinhos, roubam carros e snifam cola. É que já estivemos mais longe.