Escrito e realizado por Scott Beck e Bryan Woods (os autores da ficção científica pós-apocalíptica Um Lugar Silencioso), Herege é a velha história da aranha maquiavélica e das mosquinhas ingénuas, com enchimento de debate teológico e requintes de malvadez na elaboração. No Colorado, duas jovens missionárias mórmons, a Irmã Barnes (Sophie Thatcher) e a mais ingénua Irmã Paxton (Chloe East), vão bater à porta da casa isolada do Sr. Reed (Hugh Grant), que havia mostrado interesse em discutir com elas a doutrina da sua igreja. O dia é invernoso, está a chegar ao fim e começa a chover com violência, mas as raparigas informam o dono da casa que as regras que seguem dizem só podem entrar se houver outra mulher presente.
[Veja o “trailer” de “Herege”:]
Reed diz que não há problema porque a mulher está na cozinha a fazer uma tarte, e elas entram. O hospedeiro vai buscar refrescos e informa as visitas que aquela é muito tímida e vai demorar a aparecer. Ele é cordial e interessado e começa logo a falar de religião, assunto que mostra dominar. Recorrendo até à música pop, ao Monopólio e a Star Wars, Reed vai pondo em causa as bases das três “religiões do livro”, questionando as suas origens, mostrando o que herdaram de mitologias e credos que lhes são anteriores e expondo as suas contradições e inconsistências, até chegar à própria igreja e à fé das duas cada vez mais incomodadas raparigas. Cujo desconforto se transforma em medo quando percebem que não há nenhuma esposa tímida na cozinha, que os seus telemóveis não funcionam e a porta da rua está fechada com um temporizador.
[Veja uma entrevista com os dois realizadores:]
Aqui chegados, continuar a falar sobre o enredo de Herege será revelar demasiado sobre ele. Digamos apenas que o filme transita do debate sobre teologia, história das religiões e crença e descrença, para uma situação mais demonstrativa e nada ortodoxa, ao mesmo tempo que a ação passa das soturnas sala de estar e biblioteca para uma cave tenebrosa; que Reed vai recorrer a métodos muito extremos para pôr testar a sinceridade e a força da fé de Barnes e Paxton; que a primeira vai revelar-se mais corajosa, expedita e arguta do que parecia; e que Scott Beck e Bryan Woods vão arriscar muito para que o espectador continue a acreditar no que eles estão a contar (a casa “escheriana” de Reed, por exemplo, pisa o risco da verosimilhança).
[Veja uma entrevista com Hugh Grant:]
Mesmo assim, o nosso interesse na fita mantém-se e, boa parte graças à presença de Hugh Grant no papel do cordialmente sinistro Sr. Reed. O ator continua na crista da onda de uma carreira reavivada graças a interpretações inesperadamente brilhantes de personagens complexas, como nas séries A Very British Scandal e The Undoing, ou gostosamente excêntricas, em filmes como em The Gentlemen: Senhores do Crime, de Guy Ritchie. E em Herege, Grant volta a recorrer aos maneirismos, aos tiques e aos trejeitos verbais com que construiu e impôs a sua persona de inglês atrapalhado, charmoso e posh numa sucessão de comédias românticas de qualidade variável, mas aqui aplicados a um monstro de rosto humano, modos afáveis, intelecto sólido e discurso articulado.
[Veja uma sequência do filme:]
Hugh Grant já tinha entrado num filme de terror há muito tempo, em 1988, o delirante Jardim do Mal, de Ken Russell, baseado numa obra de Bram Stoker, embora num papel superficial de aristocrata bem-parecido e heroico que já anunciava personagens e interpretações semelhantes futuras. Mas Herege é outra loiça. O seu Sr. Reed caixa-de-óculos é a imagem acabada da malignidade de aspeto inabalavelmente afável, quer quando dá um gritinho ridículo ao estilo adolescente para sublinhar que não há saída da sua cavernosa moradia, quer quando rasga uma garganta com um golpe de X-ato. Se não servir para outra coisa, Herege serve para mostrar que a terceira idade e o terror ficam muito bem a Hugh Grant.