Harper Lee estreou-se com o romance Mataram a Cotovia em 1960 e ganhou logo um Pulitzer. Os elogios somam-se até aos dias de hoje, assim como as vendas, que ascendem aos 40 milhões de exemplares. É por isso que, desde que a norte-americana, hoje com 89 anos, anunciou a publicação de um segundo livro, nunca mais se falou de outra coisa. Vai e Põe uma Sentinela, tradução portuguesa de Go Set a Watchman, chega esta quarta-feira às livrarias portuguesas, pela Editorial Presença. Eis sete curiosidades sobre o livro e a autora.
1. Quando o cofre de Harper Lee foi aberto, ninguém viu o manuscrito
A mulher que ajudou Truman Capote na investigação que deu origem à obra A Sangue Frio pensava ter perdido há décadas o manuscrito de Go Set a Watchman. Não foi a pensar nele que o seu agente literário, Sam Pinkus, pediu à irmã de Harper Lee o acesso ao cofre da escritora, em Monroeville, no Alabama. O seu objetivo principal era analisar o manuscrito original de To Kill a Mockingbird (nome original de Mataram a Cotovia, publicado em Portugal pela Relógio D’Água) para além de inventariar tudo o que ali estaria guardado.
Uns meses depois, Sam Pinkus, acompanhado por um avaliador da leiloeira Sotheby’s e por Tonja Carter, amiga e advogada de Harper Lee, abriram o cofre. De acordo com o relato que Tonja Carter publicou no jornal The Wall Street Journal, ninguém nessa altura encontrou Go Set a Watchman, embora a advogada saliente que se lembra de ter encontrado umas páginas estranhas dentro de uma caixa, nas quais aparecia um personagem desconhecido, chamado Hank.
Tonja Carter conta que só três anos depois, no verão de 2014, num encontro com familiares e amigos de Harper Lee, ficou a saber que ela tinha escrito um segundo romance. Começou a pensar se Hank não faria parte de uma segunda história. Voltou ao cofre, procurou as páginas que tinha encontrado em 2011 e lá estava Go Set a Watchman. Leu-o com a autorização da escritora e perguntou-lhe se podia enviar a história ao novo agente literário, Andrew Nurnberg. Mais uma autorização concedida. Pouco tempo depois, o agente contactou a HarperCollins, editora que tinha publicado Mataram a Cotovia, e eis-nos agora com uma nova obra de Harper Lee nas livrarias.
2. Foi o primeiro romance que Harper Lee escreveu
Sim, Mataram a Cotovia foi o primeiro e, durante mais de 50 anos, o único romance publicado pela autora. Mas não foi o primeiro a ser escrito. Em meados da década de 1950, na altura a viver em Nova Iorque, Harper Lee começou a escrever a história de Vai e Põe uma Sentinela, sobre uma nação dividida entre brancos e negros e onde a discriminação racial estava presente em todos os níveis da sociedade. O livro passa-se cerca de 20 anos depois da história de Mataram a Cotovia e começa com Scout a deixar Nova Iorque em direção à cidade imaginária de Maycomb, no Alabama, para visitar o pai, Atticus.
Quando Harper Lee entregou o manuscrito ao seu editor da altura, Tay Hohoff, este ficou vidrado nas memórias de juventude de Scout. O resto é contado pela própria Harper Lee, em comunicado: “Convenceu-me a escrever um romance do ponto de vista da jovem Scout. Eu era uma escritora de primeira viagem, por isso fiz como me disseram para fazer”. Foi assim que nasceu o romance que lhe valeu um Pulitzer. O primeiro manuscrito acabou arrumado numa gaveta e esquecido até há bem pouco tempo.
3. O título do livro foi tirado da Bíblia
Vai e Põe uma Sentinela é, na verdade, uma frase retirada do 21.º capítulo do Livro de Isaías, do Velho Testamento, na profecia contra a Babilónia: “Porque assim me disse o Senhor: vai, põe uma sentinela; e ela que diga o que vir”.
Há vários artigos dedicados a encontrar referências religiosas ao longo das 240 páginas da história. No site Al.com, do Alabama, Wayne Flynt, historiador, batista e amigo de Harper Lee disse que a escritora cresceu numa família que lia a Bíblia e que as histórias estão na sua memória. Neste verso, que profetiza a queda da Babilónia, Harper Lee “provavelmente ligou Monroeville à Babilónia”, disse Flynt. “A Babilónia das vozes imorais, da hipocrisia. Alguém precisa de se tornar sentinela para identificar o que é preciso para sair da confusão”.
4. Houve quem não quisesse ver o livro publicado
Depois do sucesso de Mataram a Cotovia, Harper Lee retirou-se. E, ao longo da vida, sempre disse que não queria publicar mais nada. É por isso que a decisão de lançar um segundo romance não foi bem recebida por todos. Houve quem pusesse em causa a versão da advogada Tonja Carter e o facto de ela só ter vindo a público com o manuscrito pouco tempo depois da morte, em novembro de 2014, de Alice Lee, que era também advogada e guardiã do património da irmã.
A sanidade mental de Harper Lee também foi posta em causa. Surda, quase cega, perto dos 90 anos de idade e a viver num lar em Monroeville desde 2007, na sequência de um AVC, logo surgiram boatos sobre uma possível coação para o manuscrito ser publicado e consequentes apelos ao boicote do novo livro. Medo de ver manchada a reputação intocável da autora? As autoridades decidiram abrir uma investigação e concluíram que Lee queria mesmo ver o livro publicado e estava na posse das suas faculdades.
5. Harper Lee só foi batida por Harry Potter
Dificilmente o apelo a um boicote surtiria efeito. Quando as desconfianças surgiram, já os dois milhões de exemplares inicialmente encomendados pela editora HarperCollins estavam a desaparecer. A 10 de julho, quatro dias antes da publicação em inglês, o retalhista online Amazon revelou que Go Set a Watchman já era o livro impresso de maior pré-venda desde 2007, quando saiu o último volume do famoso feiticeiro de cicatriz em forma de raio. Harry Potter, pois claro.
6. Uma das primeiras pessoas a ler o livro foi Reese Witherspoon
O quê? Como assim? Explicamos: a atriz norte-americana foi convidada para narrar o audiolivro, que também está à venda. Por isso, Reese Witherspoon foi uma das poucas privilegiadas a conhecer esta história, passada maioritariamente no Alabama. O sotaque sulista — Reese é do Luisiana — terá contribuído para a escolha. Ouça o primeiro capítulo:
https://soundcloud.com/guardianbookspodcast/harper-lees-chapter-1
7. Este pode não ser o último livro de Harper Lee
E agora, o que se seguirá? No texto que Tonja Carter publicou no The Wall Street Journal, em julho deste ano, onde contava a história de como encontrou o manuscrito, a advogada sugere que pode haver um terceiro romance. Ou, quem sabe, até mais.
“E as outras páginas que ficaram durante décadas paradas na caixa Lord & Taylor, sobre Watchman? Seria um primeiro rascunho de Watchman ou de Mockingbird, ou ainda, como alguma correspondência indica que possa ser, um terceiro livro de ligação entre os dois? Não sei. Mas sei isto: nos próximos meses, especialistas sob a orientação de Nelle serão convidados a examinar e autenticar todos os documentos que estão no cofre.”
Editores e leitores cá estarão de sentinela, à espera de possíveis novidades.