Uma das mais estranhas formas de desenvolvimento daquilo a que chamamos cultura passa pelo modo como as grandes revoluções são também a confirmação mais flagrante de uma tradição. Não houve, certamente, ninguém que escrevesse como Proust antes de Proust. Aquele rendilhado gramatical, os raciocínios enodados com uma agilidade acrobática, a cadência torrencial, capaz de arrastar consigo tudo o que existe num quadro ou num momento, a obsessão do pormenor e da completude, tudo isso só existe com Proust; ao mesmo tempo, tudo no seu estilo grita por outro tempo.
Nada como o seu Em Busca do Tempo Perdido se aproxima tanto do princípio da nossa linguagem. Se há uma herança latina na tradição literária que herda do idioma do lácio a concisão e a fórmula epigramática, há outra tradição, menos óbvia, mas mais fecunda, que herda do latim a capacidade de integrar o máximo de ideias possível na mesma estrutura gramatical. A subordinação, a destreza gramatical que permite variar o centro da frase sem perder o fio à meada, a capacidade de integrar elementos, tudo isso que é prova flagrante da pujança de uma língua, da solidez de um ponto de vista capaz de se segurar entre os senãos e as adendas, encontramos tanto em Tácito como em Proust.
Aquela tradição que se vê em Mann e em Proust pode não ser clássica mas é obviamente latina. Não vem tanto do verso latino, mas sim da gramática latina e sobretudo daquilo que esta representa: uma extraordinária capacidade de integrar, no mesmo sistema, uma enorme quantidade de dados que de outra forma ficariam em aberto, mostrando que o pensamento pode não ser linear e mesmo assim ter uma linha.
Ora, se esta linha vem de Roma, a verdade é que atravessa praticamente toda a história, naquilo que dá ao estilo de Proust aquela sensação de cansaço logo à partida, de uma inocência impossível e sobreanalisada; há aquele modo de narrar que foge do centro narrativo que só encontramos nas Canções de Gesta e no ciclo Arturiano; a sensibilidade própria dos moralistas, a aspiração descritiva que se encontra em Zola, enfim: o varrimento que Proust faz não é apenas de todos os episódios e de todos os pormenores dos salões burgueses ou aristocráticos; esta descrição exaustiva tem uma força que advém de não estar apenas num plano; não se trata de uma descrição momentânea ou espacial; o estilo de Proust é tão vasto, condensa de tal maneira a história da língua, que se torna ao mesmo tempo uma descrição histórica total.
Não é só o sonho das batalhas de Carlos X que vem com o seu modo de escrever, é também o modo de escrever do tempo de Carlos X, misturado com o de Clóvis ou de Luís XIV. A capacidade de Proust abarcar tudo, e de o abarcar de um modo que parece salientar a sua fragilidade, é um dos modos mais interessantes do seu estilo.
A literatura francesa já tinha, antes de Proust, um modo peculiar de reagir a esta consciência daquilo que está para trás. O enfado de Baudelaire, a pose decadente de quem sabe que está num tempo pior do que aquele que já existiu, como se vê em Huysmans, são no fundo formas de reagir a esta tradição num jogo que ora a abraça ora a rejeita. Em Proust, porém, há mais do que isso e de uma forma mais complexa. Proust tem esta consciência de Baudelaire e de Huysmans; tem o enfado e a consciência de não estar à altura do que o rodeia, mas isso está misturado numa série de planos que tornam esta consciência mais subtil.
O enfado vem, em Proust, depois do conhecimento, no momento da desilusão. Os salões de Guermantes são o melhor exemplo disto, ao mesmo tempo que a consciência de não estar à altura vem do desejo. Não é, como em Huysmans, uma consciência posterior, é uma consciência ansiosa, ainda não vivida, que torna a trama psicológica de Em Busca do Tempo Perdido um jogo muito mais complexo de planos.
A importância do tempo
Sonho, memória, desejo, desilusão. Todas estas são formas complexas de conceber o tempo. Isto é, enquanto o passado o presente e o futuro podem ser vistos como as formas básicas de entender o tempo, todas elas se podem entretecer de modos diferentes quando introduzimos qualquer um destes elementos. A memória é a transformação do passado em presente, o desejo a transformação de um futuro possível em presente, a desilusão uma espécie de tentativa de transformar um presente ou futuro no passado, entre uma série de outras modulações possíveis. Ou seja, o que tudo isto nos diz é que a nossa compreensão natural do tempo, a compreensão que temos mesmo que não a saibamos formular, é incrivelmente complexa.
Ora, se há um tema na obra de Proust, esse tema será precisamente o modo como esta compreensão do tempo nos afeta. De que modo é que uma compreensão natural do tempo que nos faz olhar para ele como mais ou menos irrelevante, mais ou menos secundário, nos lança numa compreensão errada do que é a vida? A investigação filosófica sobre o tempo ganhou um renovado ímpeto durante a idade adulta de Proust e nos anos imediatamente a seguir à sua morte. Bergson, Husserl, Heidegger, todos perceberam que a questão do tempo era uma questão essencial para a compreensão do homem e que andava no ar de uma forma difusa. Isto é, a nossa compreensão natural do tempo toma-o como irrelevante para a perceção dos objetos, do modo de condução da vida, até do próprio comportamento. No entanto, o que é que acontece quando a visão de alguém é dominada por um desejo, de tal modo que faz esquecer o presente, ou pela desilusão, de tal modo que a consciência do passado é toda ela dominada pela ideia de desperdício?
A ideia de tempo tal como ela aparece em Proust é interessante porque de algum modo prenuncia a consciência filosófica de que o tempo tem um valor ontológico muito mais importante do que aquele que lhe é dado. A consciência que Proust tem do tempo como algo que contamina as outras esferas da vida, de que o desejo ocupa aquilo que parece independente deste desejo, sejam as diatribes de uma empregada ou os passeios por Paris, dotam a sua obra de uma fineza psicológica que não é apenas de pormenor.
Ou seja, não é apenas nos pequenos episódios em que Proust é pródigo, seja na relação entre uma criada e uma patroa ou entre uma atriz e um militar, que se revela a penetração psicológica de Proust. A sua consciência da psicologia humana é substancial, não se revela apenas em pequenos elementos de coleção. Em Busca do Tempo Perdido é, também, uma procura daquilo que é fundamental na consciência humana, e nisso a sua compreensão do valor do tempo vale por qualquer literatura.
A sociedade em Proust
Em Busca do Tempo Perdido é provavelmente o romance em que o interior do homem é perscrutado com mais rigor, numa obsessiva busca que não deixa nenhum recanto de lado; no entanto, isso não o impede de ser ao mesmo tempo um tratado completíssimo sobre as relações humanas. Se tivéssemos de definir o papel sociológica da obra de Proust, poderíamos chamar-lhe um romance diplomático, isto é, um romance em que as relações de força são constantemente exercitadas de forma indireta.
Já muito se tem escrito sobre o papel do snobismo em Proust, sobre as formalidades, a cerimónia, naquilo que também dá um colorido da Bela Época ao romance; há, é verdade, tentativas de complexificação do papel deste snobismo, como em Girard, mas um dos pontos que nos parece mais importante é este: aquilo a que Proust está mais atento, na esfera das relações sociais, é aos códigos, isto é, a tudo aquilo que na verdade significa outra coisa.
A compreensão do código como sinal máximo de integração numa sociedade é interessante, há até quem tenha orgulho nisso – o famoso snobismo – mas revela sobretudo um aspeto particular do Homem. A consciência de que o homem não pode viver no confronto, de que tem uma “vontade de ilusão” e uma necessidade de viver numa comunidade oblíqua são ideias particularmente interessantes. Nenhuma sociedade vive na demonstração constante da plenitude das suas forças, na concretização das suas relações; estas são sempre incompletas, vividas a meio, através de sinais, e a revelação daquilo que eles escondem, seja em Sodoma, seja no Caso Dreyfus, é sempre imprevisível.
Isto é: é possível que uma relação não seja posta em causa enquanto se mantém no âmbito do símbolo, mas que a partir do momento em que se deixa de lado o símbolo para concretizar completamente aquilo que este significa se transfigure completamente. Da soberania ao enamoramento, isto dá ao artifício, ao cerimonial, um papel tão importante na sociedade como aquilo que verdadeiramente expressa. Neste sentido, Em Busca do Tempo Perdido não é um romance “guloso”, como dizia Evelyn Waugh do seu Brideshead, mas uma revelação da importância do falso para a solidez da nossa vida.