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20 anos de ANIM. Dentro da caixa-forte dos tesouros do cinema

O Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM) faz 20 anos. No mundo das pessoas que ajudam a preservar a nossa memória coletiva há quilómetros de películas, amor à arte e muita magia.

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“Livre! Livre! Livre! Livre ao fim de dois mil anos!”

Os gritos começam ainda antes de se ver alguém. Abu está assustado. Rebola na areia. Aparentemente não estava à espera que saísse um vozeirão daqueles de uma garrafa inocente. No meio do fumo aparece-lhe à frente um génio, vestido apenas com uma tanga vermelha. É um génio enorme e está irritado. Passou dois mil anos fechado numa minúscula garrafa verde em que Abu tropeçou sem querer — e quer vingar-se por isso.

“Para mim, este é o primeiro momento da minha nova liberdade. Para ti… para ti este é o último momento da tua vida.”

Abu está incrédulo. Não entende como é que o génio quer esmagar, com o pé gigante e as unhas afiadas, o pobre homem que acabou de lhe restituir a liberdade.

Mas Abu é esperto e consegue enganar o génio, convence-o a voltar para dentro da garrafa.

“Só porque eras maior do que eu achavas que me podias maltratar.”

Encurralado, o génio concede três desejos a Abu. Primeiro: salsichas. Prontamente aparece uma frigideira com apetitosas salsichas ainda a cozinhar.

Segundo desejo: Abu quer saber onde está Ahmad, o príncipe, que conheceu na prisão. O génio explica que, para isso, terão de voar até ao topo da montanha mais alta do mundo, onde está o “Olho que tudo vê”. Abu agarra-se ao enorme cabelo do génio e os dois começam a voar.

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As mil e uma noites

São estas imagens que têm povoado os dias de Paolo. A cena já lhe passou pelos olhos vezes sem conta: o gigante a levantar voo de braços esticados e punhos cerrados; Abu pendurado num rabo de cavalo que mais parece um conjunto de lianas. Para a frente, para trás, as mesmas imagens. Poucos segundos de filme, muitas horas de trabalho.

Quando Manuel Cintra Ferreira morreu, em 2010, deixou escrita a vontade de que a Cinemateca Portuguesa tivesse dois novos filmes na sua coleção. Um deles era O Ladrão de Bagdad, que Paolo está a ver há vários dias. Para cumprir o último desejo do crítico que durante anos foi um dos principais programadores da Cinemateca, a instituição pediu o filme emprestado ao British Film Institute (BFI) e tem estado a trabalhar para produzir uma cópia própria.

Esta é uma das coisas que se fazem no Arquivo Nacional das Imagens em Movimento (ANIM), um núcleo relativamente desconhecido da Cinemateca Portuguesa que cumpre o fundamental papel de preservar os filmes que fazem parte da nossa história e da nossa História.

O ANIM celebrou 20 anos de existência esta quinta-feira, 6 de outubro. Para assinalar a ocasião, a Cinemateca preparou um ciclo especial que se vai prolongar até ao fim do ano. Um dos filmes a exibir é O Ladrão de Bagdad, na cópia em que Paolo e os outros funcionários do laboratório têm estado a trabalhar.

Andreia Reisinho Costa

O filme chegou ao ANIM — instalado numa casa com ares de palacete no concelho de Loures — em cinco latas. Dentro de cada uma delas estavam cerca de 600 metros de película. São perto de três quilómetros de filme nos quais se contam as venturas e desventuras de Ahmad, legítimo rei de Bagdad afastado do trono e mandado para a prisão pelo terrível Jaffar. No cativeiro, Ahmad conhece Abu, um ladrão de renome, com quem planeia a fuga, o regresso ao poder e a conquista da princesa amada.

A história tem contornos mágicos e a forma como os seis (!) realizadores a transpuseram para o ecrã, em 1940, também. É por isso que Paolo está há tantos dias a ver as mesmas imagens, uma e outra vez. O trabalho dele é correção de cor. Numa pequena sala que está quase sempre às escuras, o italiano analisa plano a plano, fotograma a fotograma, para garantir que todo o filme vai ter cores equilibradas quando chegar o momento de fazer a cópia.

Matou a família e foi ao cinema

No princípio era o nitrato. Todos os filmes criados desde o início do cinema até meados dos anos 1950 foram produzidos e projetados em película de nitrato de celulose, um suporte altamente inflamável que esteve na origem de dezenas de incêndios em estúdios, armazéns e salas de cinema. Nem a Cinemateca escapou: em 1981 as chamas destruíram por completo uma sala que tinha acabado de ser inaugurada na Rua Barata Salgueiro, em Lisboa.

Diz quem assistiu à cena que bastaram dez minutos para tudo ficar reduzido a cinzas. “Aí foi o pânico total. A Cinemateca tinha um depósito de nitratos no Palácio Foz. E se duas ou três latas deram origem a um incêndio quase inextinguível, o que aconteceria num depósito no Palácio Foz, em plena Baixa lisboeta?” A pergunta de Joana Pimentel, atualmente responsável pela área de prospeção e aquisições, é retórica. Pelo que a experiência foi ensinando, é praticamente certo que um tal fogo seria devastador, pelo menos para a Praça dos Restauradores.

É por esse motivo que o ANIM está onde está, numa quinta afastada de Lisboa e relativamente isolada de casas e pessoas. No coração da propriedade de 21 hectares que o Estado adquiriu no fim dos anos 1980 existe um cofre construído propositadamente para conservar os filmes em nitrato. Por aqui chamam-lhe bunker, tais são as características do edifício: construção sólida e semi-enterrada, 56 pequenos compartimentos onde estão poucas latas, alçapões, portas corta-fogo, monitorização 24 horas por dia. A caixa-forte da memória.

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Quando a sala da Barata Salgueiro ardeu, a Cinemateca decidiu mudar o depósito de filmes em nitrato para um armazém em Mem Martins. Quem ficou responsável por esse espaço foi Vítor Martins, que manteve iguais funções quando o ANIM veio para aqui, Bucelas, no concelho de Loures. Com o avançar da década de 80, Mem Martins foi-se tornando um sítio cada vez menos adequado e tornou-se urgente encontrar novo local. “Andei na Amoreira, em Ranholas, a ver pavilhões, à procura de espaços.”

Atrás das 56 portas do bunker estão guardadas as peças mais importantes do Cinema português. Filmes clássicos como A Canção de Lisboa, O Leão da Estrela ou A Menina da Rádio estão aqui. Aniki-bobó está aqui. Centenas de filmes amadores estão aqui. Há peças únicas no mundo, como a curta Já se fabricam automóveis em Portugal, de Oliveira, que se julgava perdida. Ou o filme sobre a Casa José Alexandre, encontrado nos escombros do incêndio do Chiado depois desta loja histórica de louças e faianças ter ardido.

Há também latas com cinema estrangeiro, mas são mais raras. Entre elas estão preciosidades como o único excerto conhecido de The Patriot, um filme desaparecido de Ernst Lubitsch, de que sobram apenas estes oito minutos. Encontra-se igualmente aqui uma parte, única no mundo, do que terá sido um dia o filme espanhol Sor Angélica, de que se sabe muito pouco.

Mexer nas películas “é um prazer do caraças”, admite Vítor.

Vítor Martins conhece cada um destes armários ao pormenor. Antes da inauguração oficial do ANIM, em 1996, passou vários meses dentro do bunker a preparar a chegada dos nitratos. Estava completamente sozinho, isolado numa das extremidades do terreno, longe da casa principal onde, na altura, os colegas instalavam os outros núcleos. Fez de tudo um pouco. Teve de ver e catalogar todos os filmes que foram ali colocados. Teve de supervisionar o decorrer dos trabalhos no edifício. Teve mesmo de pintar portas, porque o empreiteiro deixou a obra por acabar.

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Recordações da casa amarela

Estamos no concelho de Loures, a pouquíssima distância de Lisboa, mas a paisagem é tudo menos urbana. Pequenos povos e vilas num cenário de campos lavrados, matas e recantos campestres. O próprio ANIM fica no meio de um pinhal. Da estrada, que liga a A8 a Bucelas, os edifícios só se veem a partir da curva mais próxima. Mas não totalmente. Apenas quando se sobe a íngreme ladeira da entrada e se passa por um arco amarelo meramente estético é que se avista uma casa imponente em tons rosa, amarelo e verde. Parece um palacete, mas não é. Nenhuma das construções é anterior a 1996. A arquitetura é muito semelhante à da sede da Cinemateca na Barata Salgueiro, uma opção que não agrada a todos.

O ANIM tem uma cadela desde outubro do ano passado. Chama-se Scarlett. Os mais velhos lembram-se da O’Hara, os mais novos suspiram pela Johansson.

Este edifício principal é labiríntico e concentra quase todos os núcleos do ANIM. Tem nove cofres para os filmes em película de acetato ou poliéster (materiais seguros que substituíram o nitrato a partir de meados do século XX), cinco deles construídos já em 2010. Tem um laboratório de restauro fílmico por onde passam os filmes a precisar de cuidados. E tem igualmente os serviços administrativos que tratam da entrada e saída de filmes. Porque, sublinha o subdiretor da Cinemateca mais do que uma vez, não vale a pena ter um arquivo se os filmes não forem vistos.

O cinema que se guarda no ANIM está em constante movimento. Os filmes saem para a Barata Salgueiro, onde são projetados na programação própria da Cinemateca, podem ser requisitados para festivais e podem também ser usados em novas produções televisivas e cinematográficas — embora, neste último caso, já não saiam em película, mas em formato digital. “Não basta pedirem-nos a cópia e nós dizermos ‘tomem lá’. Da mesma forma que as pessoas não vão ao Museu Nacional de Arte Antiga e pedem um quadro de Bosch”, brinca Sara Moreira, responsável pelo núcleo de acesso à coleção. É muito raro, diz, cederem cópias de filmes estrangeiros, porque geralmente só têm uma. Também não é fácil obter negativos ou cópias únicas de filmes portugueses. Cada película é como um valioso quadro de Bosch, uma joia rara na arca do tesouro.

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Esse é um dos motivos por que a máquina tem de estar oleada. “Isto funciona como um relógio”, explica Sara Moreira. É ela que recebe os pedidos para cedência de filmes. Depois, Vítor Martins tem de localizar e retirar as películas dos cofres climatizados. Ficam numa antecâmara durante dois dias para o choque de temperatura ser o menor possível. Por fim vão para as mãos de Filipe Lopes, que trabalha na revisão.

A missão de Filipe é garantir que, quando um filme em película sai ou entra no ANIM, ele está nas melhores condições. É um trabalho mais complicado do que parece à vista desarmada. Sentado a uma mesa com duas plataformas giratórias (chamada enroladeira), Filipe Lopes vai passando lentamente a película por uma luz branca e forte. Ao mesmo tempo, com a mão esquerda envolvida numa luva branca, vai sentindo as imperfeições do suporte. “Eu consigo sentir todos os relevos da película. Quando há algum relevo, quando sinto alguma coisa na luva, é porque tem colagens ou defeitos”, diz o técnico, que gosta de fazer “uma analogia divertida”. Sente-se como “uma espécie de enfermeiro dos filmes”, o homem responsável por os curar. “Os filmes, tal como as pessoas, partem coisas. Nós partimos braços, pernas, cabeças. Com os filmes acontece uma coisa parecida. Enquanto houver película e instrumentos, o trabalho não acaba.”

Ao dia 15 de cada mês, Filipe Lopes recebe a lista de filmes que vão ser projetados nas salas da Cinemateca no mês seguinte. Agora está a inspecionar Em Busca da Verdade, de Ingmar Bergman, uma película que não tem grandes mazelas. Nem sempre é assim. Ao entrar nos cofres, os filmes passam pelo núcleo de conservação e conhecimento, onde recebem um número de acordo com o estado em que se encontram. A escala vai de 0 a 10. A maioria dos filmes com mais de cinquenta anos, como é o caso desta longa-metragem sueca, está num estado 5 ou 6. Mas pelas mãos de Filipe já passaram películas em muito pior estado. Há uns anos, a Cinemateca decidiu fazer um ciclo de cinema indiano. A maioria dos filmes tinha três horas de duração (sensivelmente 12 latas de película), nunca tinha sido projetada e estava num estado 2 ou 3. Ou seja, no limite do improjetável.

Filipe Lopes diz que já viu A Laranja Mecânica 86 vezes. Sabe diálogos de cor e conhece a filosofia por trás de muitas cenas.

Nessas ocasiões, o stress é grande porque o trabalho é muito. As fitas com cortes e buracos nas bordas têm de ser reparadas, às vezes fotograma a fotograma. Na revisão é quase impossível salvar uma imagem a cem por cento, mas é possível minimizar os estragos. “O filme, quando sai daqui, sai o melhor possível. Mas o melhor possível não é perfeito”, diz Filipe, que está frequentemente a pegar na coladeira para fazer reparações. É um instrumento que parece uma pequena prensa e que serve para colar dois pedaços de uma película que se rasgou ou que tem falhas nas perfurações. Serve para “minimizar os riscos e os danos, o possível para que isto aguente a minha vida e a vida de outros dez como eu. Ou mais”, resume Filipe Lopes.

Cinema Paraíso

Ainda há muito trabalho pela frente até que O Ladrão de Bagdad esteja pronto a passar pelas mãos de Filipe e a seguir para a Barata Salgueiro.

No laboratório, que fica no andar de baixo do edifício principal do ANIM, cinco pessoas fazem o trabalho de nove ou dez. Para Rui Machado, subdiretor da Cinemateca e responsável pelo arquivo, este é o laboratório “mais bem apetrechado a nível europeu”, mas isso não chega. “Equipamento não falta, know-how também não, só falta gente”, diz.

O homem que manda neste espaço é Tiago Ganhão, que também não tem medo de dizer que falta pessoal para o volume de trabalho existente. Além de preservar os filmes da coleção da Cinemateca, este laboratório trabalha também para cinematecas estrangeiras e outras entidades. É o reconhecimento da excelência do que por aqui se faz. E permite à Cinemateca ter receitas extra, muito úteis para uma instituição cujo trabalho, da projeção à preservação, é extremamente caro.

Os técnicos de um laboratório fílmico têm de ter conhecimentos de química, eletricidade, mecânica, física, som, História e cinema. Trata-se de um trabalho altamente especializado para o qual é cada vez mais difícil encontrar pessoas. Até porque, hoje, a esmagadora maioria dos filmes está em suporte digital e não em película.

A primeira correção de cor a O Ladrão de Bagdad já está feita. Agora é preciso perceber se esta serve ou se são necessários mais ajustes. Da sala de Paolo sai um ficheiro em fita de papel ou disquete que contém todas as informações de cor de um filme. Com base nisso, Tiago Ganhão faz diversas proof prints, revelações com apenas três fotogramas de cada plano que servem para testar como é que as cores são impressas na película.

O caminho que um filme em película faz desde o momento em que as imagens são captadas até ao momento em que são exibidas é mais complexo e sinuoso do que se possa pensar. Tiago, formado em química, vai explicando o processo no meio das enormes máquinas que ocupam as salas do laboratório. Tal como se revelavam rolos de fotografia, o primeiro passo para ter cinema é a revelação. A fita sai da máquina de filmar e passa por uma estrutura cheia de químicos à velocidade certa para que as informações de imagem sejam impressas no momento certo. O negativo de imagem transforma-se num interpositivo, um filme em que o esquema de cores já é o que acabará por ser projetado. Depois ainda se faz nova inversão desse esquema e obtém-se um internegativo. E é desse último suporte que se fazem as cópias positivas para distribuição.

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É um processo confuso para leigos mas fundamental para o cinema. Entre as diferentes impressões, o diretor de fotografia, o editor e o realizador podem fazer a montagem final do filme e os ajustes que achem necessários. Para um arquivo é igualmente importante. “Imaginemos que, por um azar dos diabos, estraga-se o internegativo e estraga-se o interpositivo. Nós vamos ao negativo e tiramos outro interpositivo. Isto é raríssimo. E o negativo está sempre salvaguardado”, explica Tiago.

A complexidade de tudo isto é um dos motivos por que o cinema se tornou digital nos últimos anos. “Pensa, por exemplo, no primeiro Harry Potter. É um filme que foi rodado em película e teve uma distribuição mundial ao mesmo tempo, no mesmo dia, em todo o mundo”, diz Tiago Ganhão. “Imagina o número de cópias que são necessárias para, em todo o mundo, no mesmo dia, aquilo aparecer nas salas. A única forma de fazer isto é tirar dez interpositivos do negativo, de cada interpositivo tirar dez ou vinte internegativos, distribuir os internegativos por todo o mundo. Depois, localmente nos laboratórios, em vários países, tirar cópias.” Cada cópia, relembramos, são cinco ou seis latas com 600 metros de película lá dentro. “As logísticas eram estas, eram pesadas. Por isso é que, a nível de distribuição, um DCP [Digital Cinema Package] é muito mais fácil e muito menos dispendioso.”

Andreia Reisinho Costa

E agora? Lembra-me

O cinema digital é uma realidade incontornável. Em Portugal já quase não existem salas que projetem película e há anos que as produções trocaram a fita por ficheiros informáticos. Para um arquivo, é uma dor de cabeça. “A grande diferença é que isto existe. Isto está aqui. O filme está aqui”, diz Filipe Lopes ao tocar na bobine de Em Busca da Verdade no gabinete da Revisão, onde estão pendurados cartazes de filmes de Mizoguchi e Kubrick. “O digital não existe. São como fantasmas que são projetados. Isto não. Daqui a cem ou duzentos anos, está cá. Tenhamos ou não máquinas para os ver, eles estão cá.”

Jorge Lopes: “Um arquivo não é para dez anos. É para mil. Ou para dez mil.”

Além de centenas de milhares de películas, o ANIM também tem filmes em formato digital. Só que, ao contrário das fitas, não basta ir ao cofre buscá-los. Essas imagens são guardadas em discos rígidos e têm de estar constantemente a ser migradas: as drives não duram para sempre e os ficheiros tornam-se obsoletos a grande velocidade. Ainda não está definido um padrão para a conservação definitiva do cinema em formato digital e, no ANIM, olha-se com alguma apreensão para o futuro. “Tenho um mau feeling relativamente aos novos suportes”, desabafa Joana Pimentel, da Prospeção, que até vai mais longe do que Filipe no pressentimento. “Há filmes feitos digitalmente, há dez anos, que se calhar já não encontramos hoje.”

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No corredor oposto àquele onde se encontra o gabinete de Joana Pimentel existem umas escadas estreitas que conduzem ao departamento de telecinema e novos suportes. Para lá chegar é preciso passar por dezenas de ecrãs de computadores, caixas de papelão cheias de fitas magnéticas, cassetes VHS, DVD, DCP, televisões, gravadores de som, câmaras, leitores de cassetes e mesas de mistura. No fim da descida há um enorme cartaz com um boxeur, a dar ares de Belarmino.

Jorge Lopes é o entusiasmado responsável por esta área do ANIM, criada para trabalhar as imagens noutros suportes que não a película. No início, isso significou converter os filmes para betacam e VHS, por exemplo, através de um aparelho chamado telecinema. Mais tarde, as conversões passaram a ser feitas para DVD. E, neste momento, está tudo a ser convertido em ficheiros digitais. O primeiro filme que Jorge converteu, há 20 anos, foi A Canção de Lisboa. “Fiquei aqui cinco dias seguidos, noite e dia, para fazer esse trabalho”, conta, cigarrilha na mão, excitação na voz. A dedicação a esse filme só surpreende até contar a história seguinte. Quando a máquina original de telecinema se tornou finalmente obsoleta, depois de muitas reparações, Jorge decidiu passar as madrugadas de um mês inteiro a desmontar o equipamento peça a peça. “Compreendi perfeitamente o funcionamento, a filosofia que está por trás da construção de uma máquina daquelas”, diz, com o mesmo brilho no olhar que uma criança mostraria ao montar um conjunto de Legos.

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Foi por insistência de Jorge que João Bénard da Costa, à data diretor da Cinemateca, lá se convenceu a criar este departamento no ANIM. “Havia uma resistência enorme contra tudo o que parecesse digital”, explica o técnico de sotaque ligeiramente adocicado que passou 16 anos no Brasil e por lá deu aulas de fotografia, vídeo e cinema. Diz que foi o primeiro português a trabalhar em videoarte e que foi um dos pioneiros das televisões piratas no país. O esforço gasto a discutir com Bénard da Costa foi recompensado. “É importantíssimo irem aos sótãos e armários do país inteiro e trazer para aqui tudo o que pareça filme. Mandem para cá o material”, apela Jorge. Com as técnicas disponíveis hoje, mesmo as películas muito degradadas podem ser digitalizadas e isso já permitiu descobrir relíquias e coisas desconhecidas em filmes conhecidíssimos. A missão é essa. Mais do que a exposição, é isso. Preservar.”

Os respigadores e a respigadora

Há 20 anos, a Cinemateca ainda comprava filmes para a coleção e Joana Pimentel era uma das pessoas que tratava disso. Um dia, antes de o ANIM ser construído, pediram-lhe que ficasse responsável pela área de prospeção no novo departamento. Prospeção propriamente dita, não fez muita. A coleção da Cinemateca já era grande e não estava devidamente catalogada. Antes de se pôr à procura de novos filmes, Joana Pimentel decidiu que era tempo de saber o que havia na casa. “Encontrei uma pasta do Luís de Pina de 1980. Ele tinha feito um levantamento, mas não foi por diante” um sistema de catalogação, explica. “Li aquelas pastas todas” e, depois, deu os primeiros passos numa base de dados que ainda não está completa.

Em Portugal, o depósito de filmes não é obrigatório. Ou seja, as produtoras e distribuidoras não têm de entregar cópias à Cinemateca, ao contrário do que acontece com os livros, obrigatoriamente depositados na Biblioteca Nacional. “Há um entendimento desde há dez anos, se tanto”, afirma Joana. Os agentes do cinema e a Cinemateca chegaram a um acordo e, agora, o ANIM recebe uma cópia de cada filme estreado nas salas portuguesas, seja nacional ou estrangeiro. Mas o depósito continua a ser voluntário e nem todas as produtoras o fazem. “Há filmes que eu vi nos anos 1970 e 1980 que não vamos ver”, resume a funcionária, cujo gabinete, decorado com um enorme cartaz de Lírios Quebrados, fica imediatamente ao lado do de Sara Moreira, responsável pelo acesso aos filmes. De um lado a porta de entrada, do outro a porta de saída.

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Ao longo dos anos que passou a trabalhar a coleção e a negociar com entidades públicas e privadas o depósito de películas no arquivo, Joana Pimentel chegou à conclusão de que é uma sorte o cinema português ser de pequena produção. Torna-se mais fácil chegar até ele e preservá-lo, salvo raras exceções. Por outro lado, o cinema amador nunca teve grande expressão no país — por isso há coisas que quase não existem. Um exemplo disso é a Guerra Colonial. “É preciso irmos ao estrangeiro para vermos imagens de uma coluna militar, de guerra.” Os filmes do Exército e do Governo raramente mostravam essa realidade, embora mostrassem muito as tropas no Ultramar. Apesar disso, ainda pode haver surpresas escondidas nos sótãos lá de casa. “A minha missão é dizer: não deitem fora.”

Tudo bons rapazes

No andar superior da casa principal do ANIM ficam os gabinetes administrativos. Ao lado do escritório de Rui Machado, subdiretor da Cinemateca e responsável pelo departamento de arquivo, há uma pequena divisão com fotocopiadoras que também serve de sala de convívio improvisada. Por aqui se vê o ecletismo de um trabalho deste género. Numa estante estão os 40 volumes da Grande Enciclopédia Portuguesa Brasileira, os três tomos do Dicionário Houaiss, um volume “Films” da Larrousse, uma História de Portugal de José Mattoso, um Dicionário do Cinema Português, três volumes do Portugal Monumental, dois tomos da enciclopédia Lello Universal, o Guia de Cinema de Leonard Maltin de 1994 e vários outros livros de arte e cinema. Por cima da máquina de café, a mesma mensagem em três línguas: “Verificare la presenza di acqua prima di fare il caffé. Grazie.”

À semelhança de quase todas as pessoas que trabalham no ANIM, Rui Machado está na Cinemateca há anos e subiu todos os degraus da hierarquia. Há 20 anos andou a pintar as portas do bunker ao lado de Vítor Martins. Hoje, na espaçosa sala que ocupa e onde imperam dois enormes cartazes de Ran e Rocco e os seus irmãos, passa os dias a tentar garantir o futuro do arquivo.

A Cinemateca é uma entidade pública dependente do Ministério da Cultura, o eterno parente pobre dos orçamentos estatais. Tudo aqui, até a compra de uma estante, precisa de autorização do Governo. O ANIM “não tem sido negligenciado”, afiança Rui Machado. Mas que o espaço está bastante despovoado e que o volume de trabalho justificaria mais pessoal, é inegável. “Quando as leis são feitas para a função pública, elas são feitas de uma forma genérica para todos os institutos e todos os ministérios”, lamenta o responsável, que está a negociar com o Executivo uma solução que assegure a sustentabilidade financeira do ANIM.

O laboratório, por exemplo, é uma das áreas que tem valor próprio e pode ser autonomizada. “Não deixando de fazer parte da Cinemateca, pode ser tratada de uma outra maneira dentro do Estado”, adianta Rui Machado, que ainda não sabe os moldes específicos em que isso poderá ser feito. “Talvez com uma gestão privada, mas controlada pela Cinemateca…”

Outros amarão as coisas que eu amei

Uma das coisas que os cerca de vinte funcionários do ANIM sublinham com frequência é que a Cinemateca também é um Museu do Cinema. Os objetos mais visíveis desse museu são os próprios filmes, exibidos diariamente nas salas da Barata Salgueiro. Mas há uma extensa coleção de equipamentos que aguardam há anos a criação de um verdadeiro espaço museológico. Milhares deles estão no ANIM, numa zona onde quem manda é Teresa Parreira. “Nós neste momento temos inventariadas cerca de oito mil e tal peças.” Mas ainda há muito mais para catalogar.

Mal se entra nos domínios de Teresa sente-se um cheiro característico que não existe em nenhum outro lugar do edifício. Veem-se imediatamente centenas de coisas empilhadas em estantes, mas a confusão é apenas aparente, porque está tudo numerado. “Nós recebemos, imagine, não sei quantos editores e visionadores e coladeiras e é tudo igual. Não queremos de repente que determinado senhor, que teve a bondade de doar à Cinemateca, não perceba qual é o material dele.”

As salas contíguas têm mais ordem. É lá que se percebe a paixão de Teresa por tudo isto: câmaras, projetores, fonógrafos, coladeiras, gira-discos, lanternas mágicas, sombras, máscaras, objetos decorativos vários, um mar de objetos peculiares, cada um com milhentas histórias para contar. “É uma pena que tudo isto não esteja visível”, lamenta. “Tudo isto nós gostaríamos que estivesse exposto num museu. Gostaríamos que toda a gente pudesse ver aquilo com que eu e poucas pessoas privilegiadas podem trabalhar.”

Foi só em 2004 que, por intermédio dela, a Cinemateca se começou a interessar a sério por estes equipamentos que há décadas estavam encaixotados a um canto sem que ninguém lhes ligasse muito. Nesse ano, propôs a João Bénard da Costa o tratamento adequado dos objetos e a criação da Cinemateca Júnior, que serviria para mostrar um pouco da coleção aos mais novos. “Foi todo um processo de aprendizagem. Não se vai à escola aprender isto.” Foi aposta ganha. “Os miúdos gostam. É muito engraçado explicar-lhes que foi preciso haver algum desenvolvimento na parte da ótica, que foi preciso termos a fotografia, que foi preciso desenvolver objetos relacionados com o movimento, que foi preciso estudar o nosso olho, que foi importante um dia alguém projetar uma imagem. Tudo isto é importantíssimo para eles conseguirem perceber que não houve um dia em que acordámos e acendemos um interruptor. É fascinante.”

O tal interruptor demorou séculos a acender. E sempre foi objetivo da Cinemateca que nunca se apague. Há várias figuras nessa luta, mas uma delas tornou-se incontornável pelo impulso que deu à instituição, ao ANIM, ao gosto pelo cinema. João Bénard da Costa. Nas palavras de Teresa: “Uma pessoa super interessante, cativante, de uma cultura extraordinária e com uma maneira de ser, de incentivar as pessoas a gostarem de cinema. Fascinante sob todos os aspetos. Uma pessoa que adorava contar histórias. As histórias que contava eram tão interessantes que as pessoas ficavam com vontade de saber mais.”

As mil e uma noites

“Génio! Génio! Tenho medo!”

O génio ri-se, mas não deixa Abu cair. Explica ao pequeno ladrão de Bagdad que estão quase a chegar ao topo da montanha mais alta do mundo. Lá poderá descobrir onde está Ahmad, através do “Olho que tudo vê”.

Chegam ao topo da montanha. O génio deixa Abu.

“Agora podes ser um herói e um ladrão ao mesmo tempo…”

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