Se o leitor tivesse de nomear alguém para receber o Prémio Nobel da Matemática, defrontar-se-ia, decerto, com algumas dificuldades – por não conhecer muitos matemáticos ou por não conseguir avaliar quais os melhores. Mas, sobretudo, por não existir Prémio Nobel da Matemática.
Nobel deixou de fora a Matemática. Não se tratou de não a considerar, por não lhe dar importância: uma primeira versão do seu testamento incluía a Matemática como ciência a premiar. A verdade é que a versão definitiva a excluiu – e deliberadamente. Porquê?
Por que não? Alfred Nobel, no seu testamento, instituiu, com a sua fortuna, uma Fundação que atribui anualmente prémios às maiores realizações do espírito humano, nas áreas da Física, Química, Fisiologia e Medicina, Literatura e Paz. É o maior galardão imaginável: em particular para uma carreira científica garante prestígio e fama em vida, e a memória para lá dela.
Mas nas suas disposições de última vontade, Nobel deixou de fora a Matemática. Não se tratou de não a considerar, por não lhe dar importância: uma primeira versão do seu testamento incluía a Matemática como ciência a premiar. A verdade é que a versão definitiva a excluiu – e deliberadamente. Porquê?
Cherchez la femme…
A história que se conta tem o seu quê de picante. Um dos maiores matemáticos do tempo de Nobel, o sueco Gösta Mittag-Leffler, seria o candidato natural ao primeiro Prémio Nobel da Matemática. Ora sucede que, na altura em que Nobel andava mais absorvido pela sua Fundação e pelos seus Prémios, a sua mulher (ou companheira de facto que não de jure, pois Nobel nunca chegou a casar) terá procurado a atenção e o afecto que lhe faltavam em casa … num caso extramatrimonial, precisamente com Mittag-Leffler!
Gösta Mittag-Leffler, o matemático sueco com quem a mulher de Alfred Nobel teve um caso amoroso
Nobel retaliou: estava fora de questão deixar o rival ganhar mais troféus à sua custa. Assim, redigiu um novo testamento do qual eliminava a Matemática das áreas contempladas pelos Prémios que instituídos pela sua Fundação.
Se non è vero è ben trovatto. Embora haja actualmente dúvidas sobre a sua integral veracidade, esta história antecipa curiosamente uma outra faceta curiosa dos galardões máximos na área da Matemática: a sua difícil relação com as mulheres.
As Medalhas Fields
A inexistência de um Nobel da Matemática sempre foi um espinho cravado na garganta dos matemáticos. Diante do prestígio social que os Nobel adquiriram, era inaceitável que a sua Ciência fosse menos considerada do que a Física, a Química ou a Medicina. Nos anos 30 do século passado, o matemático canadiano John C. Fields conseguiu levar a comunidade matemática a estabelecer um prémio consistindo numa numa medalha (muito semelhante à medalha Nobel, mas com a efígie de… Arquimedes) e num prémio monetário (de valor muito inferior ao Nobel: cerca de 15 mil dólares, reflexo dos tempos da Grande Depressão que se viviam).
A medalha, oficialmente designada Medalha Internacional para Descobertas Excepcionais em Matemática, depressa ficou conhecida como Medalha Fields. Os matemáticos tinham agora o seu Nobel (em 2001 foi instituído pela Academia Norueguesa das Ciências o Prémio Abel, formal e materialmente muito mais próximo do Nobel; mas a aura especial das Medalhas Fields permanece intacta).
As Medalhas Fields seguem um conjunto de regras muito próprias. Em primeiro lugar, são atribuídas nos ICM (International Congress of Mathematicians), que existem desde o século XIX, e têm a particularidade de, como os Jogos Olímpicos, se realizarem apenas de quatro em quatro anos. O ICM em se estrearam as Medalhas Fields foi o de 1936.
Em segundo lugar, em cada ICM não existe um número fixo de Medalhas a outorgar, podendo este variar entre duas e quatro.
A inteligência matemática é algo difícil de definir, mas parece ter uma distribuição geográfica uniforme. Em quase sete décadas de Medalhas Fields, estas foram dadas independentemente da raça, do credo político ou da religião. Europeus e asiáticos, russos e americanos, israelistas e vietnamitas já foram galardoados. Nada parece sobrepor-se, neste domínio, ao amor pela Ciência.
Onde param as mulheres?
No entanto, um olhar mais cuidadoso pela lista das 52 Medalhas Fields até hoje ganhas revela um facto surpreendente, se não mesmo preocupante: nunca uma mulher recebeu uma Medalha Fields!
O regulamento determina que só são elegíveis candidatos que não tenham completado 40 anos antes de 1 de Janeiro do ano em que é atribuído o prémio
Porquê? Será que as mulheres não têm vocação para a Matemática, talvez por esta ser “demasiado abstracta”? Será que as mulheres matemáticas, por mais competentes que sejam, simplesmente não atingem o nível de excelência absoluta necessário a uma Medalha Fields? Será a Matemática, afinal, uma Ciência misógina? Ou serão antes os júris das Medalhas Fields, compostos por uma grande maioria de homens, uma espécie de “Clube do Bolinha”, que discrimina as mulheres?
A resposta é muito mais prosaica e radica na terceira das referidas regras a que obedecem as Medalhas Fields. O seu criador queria que, ao contrário dos Prémios Nobel, que são prémios de consagração por descobertas excepcionais ao longo da carreira científica, as Medalhas Fields fossem prémios de juventude. Isto é, que reconhecendo contribuições científicas de mérito excepcional, fossem simultaneamente um incentivo a futuras realizações dos galardoados e um estímulo a esforços mais intensos por parte de outros matemáticos. Assim, o regulamento determina que só são elegíveis candidatos que não tenham completado 40 anos antes de 1 de Janeiro do ano em que é atribuído o prémio.
Esta regra dos 40 anos já provocou situações estranhas. Por exemplo, o britânico Andrew Wiles, que demonstrou o Teorema de Fermat em 1993, com 39 anos, não é Medalha Fields porque… havia um buraco na demonstração que levou dois anos a tapar e o ICM, quadrienal, se realizou em 1994 (no ICM seguinte, em Berlim, foi contudo criado um prémio especial para Wiles).
O que é que isto tem a ver com as mulheres?
Tudo! Pensemos um pouco. Um matemático excepcional, depois da licenciatura e do Doutoramento, estará a fazer investigação autónoma a todo o vapor a partir dos 25-30 anos. Tem portanto uma janela de 10-15 anos, até aos 40, de trabalho intensíssimo se pretende ganhar a Medalha Fields. Nada o pode distrair dos teoremas. Nada.
E é este o problema. A regra dos 40 anos é extremamente penalizadora para as mulheres. Que para poderem aspirar à Medalha Fields, têm de se dedicar de corpo e alma ao trabalho. A alma ainda vá: o problema está mesmo no corpo. O relógio biológico da mulher é muito mais implacável do que o do homem; a tal janela entre os 25 e os 40 anos corresponde também ao período fértil da mulher, durante o qual esta, querendo constituir uma família, terá os seus filhos.
Ora a concentração total em objectos matemáticos estratosféricos não é a actividade mais compatível com enjoos e ecografias, amamentação e cólicas, mudanças de fraldas e noites em branco. E, apesar dos muitos avanços civilizacionais a registar quanto a este ponto, é um facto que o homem médio não partilha totalmente todas as tarefas da vida familiar com a mulher, sendo esta em geral mais sobrecarregada.
De uma forma muito brutal, as matemáticas parecem ter duas opções. Ou desistem de formar uma família para poder lutar pelas Medalhas Fields, ou desistem simplesmente das Medalhas. Resultado: nunca, até hoje, houve uma mulher galardoada com a Medalha Fields. Não é discriminação: a Matemática funciona como um termómetro hiper-sensível da assimetria das relações entre homens e mulheres.
O quente Agosto de Seul
O próximo ICM terá lugar entre 13 e 21 de Agosto, em Seul. Um ICM é um happening mundial, com 3 a 4 mil matemáticos reunidos durante uma semana. É o maior encontro de matemáticos do Mundo. E o prato forte é, logo no primeiro dia, o anúncio das Medalhas Fields. É um evento de grande solenidade; alguns matemáticos chegam ao extremo de, ao arrepio do que fazem na sua vida profissional, usar gravata! Os premiados já sabem que o são, estando obrigados a guardar segredo. Depois da cerimónia tornam-se celebridades mundiais, não só no estrito mundo da Matemática. Um exemplo recente é o exuberante francês Cédric Villani, galardoado em 2010.
Cédric Villani, Medalha Fields de 2010
É claro, à medida que se aproxima a data crescem os rumores e a especulação na comunidade matemática. É um pouco como na cerimónia dos Óscares. Quem serão os galardoados?
E é neste ponto que 2014 pode trazer uma novidade histórica. Será muito provavelmente este o ano em que, pela primeira vez, a Medalha Fields é atribuída a uma mulher!
Como se pode fazer uma afirmação destas? É preciso, como em tudo na vida, saber ler os sinais. Em primeiro lugar, verifica-se que, numa shortlist de duas dezenas de matemáticos, existem meia dúzia de mulheres com muito fortes possibilidades de ganhar. Em segundo lugar, um bom indicador é cruzar estes nomes com as listas de oradores plenários convidados a falar no ICM (e no anterior, quatro anos antes). E finalmente, cruzar este nomes com a lista dos premiados nos congressos ECM (European Conference of Mathematics).
Os ECM são, como o nome indica, o análogo dos ICM à escala europeia. Os matemáticos devem gostar de futebol, porque a estrutura dos congressos mundiais e europeus replica exactamente… a dos Campeonatos Mundiais e Europeus de futebol. Todos se realizam de quatro em quatro anos, alternando os europeus com os mundiais. Por exemplo, 2014 foi ano de Mundial de futebol (Brasil): pois também é ano de Mundial de Matemática (ICM, Seul). 2016 será ano de Europeu de futebol: também será de Europeu de Matemática (ECM, Berlim).
Nos ECM são distribuídos prémios da EMS (European Mathematical Society) a dez matemáticos com idade inferior a 35 anos. Tem sido frequente, desde a instituição destes prémios, um matemático ganhar uma medalha Fields após ter sido premiado pela EMS (embora isso não seja condição necessária, pois os prémios EMS são atribuídos apenas a matemáticos europeus ou que trabalhem na Europa). Isso ocorreu com matemáticos como Kontsevich, Borcherds, Perelman, Gowers, Werner, Smirnov, Okounkov, ou Villani. Assim, os prémios EMS funcionam, pelo menos em relação aos matemáticos ligados à Europa, como uma espécie de antecâmara das medalhas Fields.
Cruzando todas estas informações, é possível formar uma ideia razoável sobre as Medalhas Fields. E, como afirmámos acima, nunca as mulheres estiveram tão bem colocadas para ganharem uma medalha Fields (na verdade, alguns rumores dizem que até podem ganhar duas medalhas). Passamos a apresentar as candidatas mais fortes a entrar na história.
O podium feminino
Na pole position está a iraniana Maryam Mirzhakani, da Universidade de Stanford. Tem um trabalho científico impressionante quer em profundidade quer em abrangência científica. Por outro lado, é oradora plenária em Seul, já foi no ICM de 2010 em Hyderabad e é provavelmente um dos dois candidatos mais fortes, independentemente do sexo. Tem um curriculum recheado dos prémios mais significativos e, aos 37 anos, é a sua última hipótese de ganhar uma Fields. Curiosamente, a sua página institucional foi desactivada há dias. Podemos vê-la em acção aqui e numa entrevista interessante aqui.
Não resisto a mencionar uma curiosidade: quando se procura o seu nome no Google, a segunda sugestão de busca que nos é dada é “Maryam Mirzhakani husband” – o que indica que quem a procura parece estar interessado também na sua vida pessoal: como concilia ela uma medalha Fields com um marido e uma família?
Uma outra candidata fortíssima é a francesa Sophie Morel, actualmente em Princeton. Tem um curriculum excepcional numa área estratosférica da Matemática ligada ao que se chama programa de Langlands. Foi oradora plenária no ICM de 2010 e venceu um dos prémios da EMS em 2012 (o autor destas linhas conheceu Morel nessa ocasião). Podemos vê-la em acção neste vídeo. Talvez o único ponto menos favorável para Morel seja o facto de ainda ser muito nova: com 35 anos, ainda pode esperar por 2014.
Segue-se a também francesa Sylvia Serfaty, da Universidade de Paris 6, de quem pode ver-se uma interessante entrevista aqui. Trabalha na área de equações com derivadas parciais (teoria de Ginzburg-Landau), ganhou o prémio EMS em 2004, foi oradora plenária no ICM de 2006 e no ECM de 2012, e ganhou também em 2012 o prestigiado prémio Henri Poincaré. A favor tem o facto de, com 39 anos, ser a última possibilidade que tem de ser galardoada com uma Fields. Contra, o facto de a sua área ser muito próxima da do francês Cédric Villani, premiado em 2010, tendo os júris natural tendência para variarem as áreas científicas contempladas.
Este é, na minha opinião, o top 3 das candidatas à primeira Medalha Fields. Mirzakhani é quase uma certeza. Pode acontecer, pela excelência das candidatas, que sejam mesmo atribuídas duas medalhas a mulheres. Não será, nesse caso, de excluir uma surpresa, como a francesa Laure Saint-Raymond ou a húngara Marianna Csörnyei, em função da distribuição de áreas científicas.
Homens: quem salva a honra do convento?
A tendência de muitos anos não se corrige de uma vez. Assim, naturalmente, a maioria dos candidatos às Medalhas Fields de 2014 são homens. E candidatos de elevadíssimo nível científico não faltam.
Provavelmente o candidato cientificamente mais forte é Manjul Bhargava, americano de origem indiana, de Princeton. Bhargava realizou enormes e inesperados avanços num programa de investigação de grande alcance em Teoria de Números conhecido como conjectura de Birch e Swinnerton-Dyer, um dos Problemas do Milénio de um milhão de dólares. Antes disso tinha vários outros resultados de grande impacto. Bhargava será orador plenário em Seul, já foi um forte candidato às Fields de 2010 e aos 39 anos, é a sua última possibilidade de ganhar uma Fields. Seria muito surpreendente se isso não acontecesse.
Também na primeira linha mas num patamar ligeiramente inferior estão o brasileiro Artur Ávila, o britânico Ben Green e o americano Jacob Lurie.
Ávila é o mais recente wunderkind do prestigiado IMPA, a Escola de Matemática fundada no Rio de Janeiro por Maurício Peixoto e Jacob Palis nos anos 60, e é Director de Investigação no CNRS. Especialista em Sistemas Dinâmicos, com um curriculum esmagador, já se falava nele como candidato às Medalhas Fields em 2010, ano em que deu uma plenária no ICM, com apenas 31 anos! Pode jogar a seu favor o facto de o IMPA, instituição líder mundial na sua área, ainda não ter visto reconhecido o seu papel com uma medalha Fields. Contra Ávila pode jogar a mesma variável do que contra Morel: o facto de ter apenas 35 anos e de ter ainda mais uma possibilidade para conquistar a Fields, em 2018. Podemos vê-lo em acção aqui, apresentado pelo matemático luso-brasileiro Marcelo Viana (ele próprio falado, a seu tempo, para a Fields). Por outro lado, a sua página da Wikipedia foi actualizada há dias colocando, à frente da data de nascimento, a sua idade actual – o que é no mínimo curioso.
O britânico Ben Green, de Oxford, descende de uma nobre linhagem matemática: o seu “pai” matemático, Timothy Gowers, é também medalha Fields. Ben Green já é um nome famoso entre os matemáticos pois, recém-doutorado, colaborou com o “Mozart da Matemática” Terry Tao, tendo demonstrado aquele que é hoje conhecido como Teorema de Green-Tao sobre progressões aritméticas em primos, um dos resultados pelos quais Tao recebeu a medalha Fileds em 2006. Depois disso Green alcançou outros resultados bastante significativos. Ganhou o prémio da EMS em 2008, outros prémios internacionais importantes e será orador plenário em Seul.
Jacob Lurie é um matemático americano de Harvard. A sua área de trabalho é estratosfericamente abstracta, podendo talvez ser descrita muito vagamente como relacionada com Teoria das Categorias. O matemático médio terá provavelmente dificuldade em compreender sequer o título do seu recente artigo de 140 paginas Ambidextridade em teoria de homotopia estável K(n)-local. As más-línguas por vezes apelidam este tipo de trabalho de “abstract nonsense”; no entanto, o Júri Fields não é necessariamente dessa opinião e se as outras Medalhas forem atribuídas em áreas mais concretas Lurie poderá até estar em vantagem. É também o último ano em que poderá ser candidato.
Também entre os homens não será de excluir, no caso de haver mais de duas medalhas, o aparecimento de nomes um pouco menos mainstream, sobretudo se houver necessidade de equilibrar as áreas científicas de atribuição. Nesse caso será de considerar nomes como Assaf Naor, checo/israelita da Universidade de Nova Iorque, que já ganhou o prémio EMS em 2008, o alemão Simon Brendle, de Stanford, vencedor do prémio EMS em 2012 (e com quem colabora o português André Neves, do Imperial College), ou o italiano Alessio Figalli.
Todos os matemáticos estão agora à espera do dia 13 de Agosto. Se esta descrição tiver despertado a curiosidade do leitor, saiba que poderá saber aqui os resultados em primeira mão, às 11:30h de Seul, 3:30h de Lisboa. Poderá também acompanhar toda a cerimónia, do anúncio dos resultados e entrega dos prémios à conferência de imprensa, e mais geralmente todos os trabalhos científicos do ICM 2014, por webcast neste endereço.
Les jeux sont faits!
Jorge Buescu é Doutorado em Matemáticas pela Universidade de Warwick e é professor na Universidade de Lisboa, tendo publicado quatro livros de divulgação científica — o mais recente chama-se Casamentos e Outros Desencontros.