Quase 1500 propostas de alteração. Perto de nove mil páginas de artigos, alíneas, números e mapas. Em quatro dias, os deputados da Comissão de Orçamento e Finanças passaram mais de 25 horas a votar o Orçamento do Estado para 2022 na especialidade. Hugo Carneiro, deputado do PSD, foi o maestro desta sinfonia parlamentar que culminou com a aprovação de cerca de 130 propostas. E em rasgados elogios à condução dos trabalhos.
“Relativamente a elogios sou sempre muito coletivo”, reage o deputado social-democrata ao Observador. Chamado a jogo à última hora porque o presidente da comissão, o socialista Filipe Neto Brandão, testou positivo à Covid, Hugo Carneiro acabou aclamado por todos os partidos no final das votações, que culminarão esta sexta-feira com a votação final global do documento, e aprovação mais do que certa.
Miguel Cabrita, do PS, afirmou que o presidente conduziu as sessões “o mais eficazmente possível”, reconhecendo a “dificuldade da tarefa que tem”. Também Mariana Mortágua, do Bloco, agradeceu a forma como Hugo Carneiro conduziu os trabalhos, deixando ainda uma palavra às “invisíveis senhoras da limpeza que entram às 2 da manhã quando saímos do plenário”. Foi corroborada por Bruno Dias, do PCP, que só lamentou o resultado final do OE. “Podia ser melhor”. Inês Sousa Real, do PAN, também aplaudiu a condução das sessões. “Houve uma eficiência e eficácia muito saudável”.
Na reação aos elogios, Hugo Carneiro é evasivo. “O trabalho é conjunto, dos deputados dos diferentes partidos, da mesa, dos serviços da comissão, dos jornalistas. E de todas as pessoas que não aparecem naquela arena, chamemos-lhe assim, mas que estão muitas vezes na retaguarda a fornecer informação sobre quando entraram as propostas, se foram ou não retiradas. Acho que se os trabalhos correram bem foi porque todos o proporcionaram”, destacou.
A preparação não existiu. Nem era necessária, garante. “Fui avisado de que teria de substituir o presidente e, no dia e à hora marcada, compareci para iniciar os trabalhos. Ao início uma pessoa ainda está a perceber como é que deve apresentar as propostas, dizer o nome dos partidos, mas depois entramos no ritmo e vamos até ao fim”, conta.
“Não há nervosismos nisto”, assegura. “Todos os deputados da comissão conhecem-se, trabalhamos diariamente relativamente a projetos de lei ou propostas de lei, e a partir daí é natural. Cada um desempenha o seu papel. Há os deputados que indicam os sentidos de voto, a mesa tem de conduzir os trabalhos, os serviços ajudam nessa condução, foi isso que fizemos e as coisas decorreram normalmente”.
Além da rapidez, que por várias vezes levou os deputados a pedir esclarecimentos sobre o número da proposta que estava a ser votada, a diplomacia e a constante tentativa de chegar a consensos foram dos traços mais marcantes da condução dos trabalhos de Hugo Carneiro. Num determinado momento, sugeriu, por engano, a votação em conjunto de uma proposta do PCP e do PS. Apercebeu-se de seguida que uma seria chumbada e outra passaria e corrigiu, mas logo se ouviu das bancadas: “Noutros tempos daria”.
Foi também essa tentativa de criar consensos que fez a comissão passar mais de uma hora a discutir “divergências de opinião” em relação à apresentação de propostas depois do prazo previsto. Aconteceu nos dois primeiros dias da votação, com propostas do PS e do Livre, e foram o caso mais controverso do processo de votação.
“Não lhe chamaria incidente, não foi um incidente, foi uma divergência de opinião sobre interpretações que se relacionavam com procedimentos e com o regimento. Foi preciso dirimir as diferentes posições, tanto quanto foi possível, uma das questões foi resolvida no plenário, a outra foi resolvida na comissão. Acho que foi bem resolvida”, considera.
“Deu-se a oportunidade de os deputados manifestarem várias vezes o seu entendimento sobre a proposta do Livre, inclusive ao subscritor dessa proposta, e acho que isso foi positivo. Ainda que tenha demorado cerca de uma hora e meia. Creio que a grande vantagem foi a construção da solução que foi surgindo durante o diálogo. Foi muito útil. O problema ficou resolvido, tanto que nunca mais ninguém voltou a falar dessa proposta a não ser relativamente ao seu conteúdo, que é a questão principal”.
PSD Madeira soma uma vitória e ultrapassa PSD
O tema do último dia de votações na especialidade foram os benefícios fiscais. Nesse capítulo, o PSD Madeira garantiu uma aprovação a propostas suas (subindo assim para quatro o número de medidas viabilizadas, mais uma do que o PSD), desta vez referente à Zona Franca da Madeira que acabou votada esta quinta-feira na especialidade em conjunto com uma do PS que ia no mesmo sentido. O prolongamento do regime fiscal da Zona Franca da Madeira por mais um ano, até final de dezembro de 2023. O que significa que as empresas que forem licenciadas de 1 de janeiro a 2015 a 31 de dezembro de 2023 para a Zona Franca garantem IRC à taxa de 5%.
O prolongamento do regime fiscal estava ausente da proposta do Governo para o Orçamento do Estado para 2022, mas o PS e o PSD Madeira resolveu inclui-la. Já o benefício fiscal para os direitos de autor, que terminou em dezembro de 2021, não teve qualquer inclusão na proposta de Orçamento (ou em propostas de alteração). O Governo disse ter prolongado à margem do OE, por mais um ano, esta medida à espera da conclusão do estudo do ISCTE sobre os benefícios fiscais terminados em 2021. Mendonça Mendes, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, admitiu ainda assim esta quinta-feira em Plenário que dada “a sensibilidade” que o tema tem “provavelmente ele será prorrogado pelos cinco anos normais”.
Nas votações na especialidade desta quinta-feira — o último dia em que a Comissão de Orçamento e Finanças reuniu para votar artigo a artigo as propostas para o Orçamento para 2022 (na sexta só haverá votação em plenário das propostas que forem adoçadas) — o estatuto dos benefícios fiscais esteve em cima da mesa. O PSD Madeira foi o único da oposição a ver uma proposta sua aprovada neste âmbito.
De resto só passaram as apresentadas pelo PS e que, além da Zona Franca, fez mudanças cirúrgicas, nomeadamente para que a taxa de IRC mais baixa para os territórios de baixa densidade seja compatibilizada com os regimes das regiões autónomas. E compatibilizar com o estatuto de benefícios fiscais a imposição de imposto de selo nas transmissões gratuitas de valores aplicados em fundos de investimento mobiliário e imobiliário ou em sociedades de investimento mobiliário e imobiliário.
O PS fez aprovar um total de 70 propostas (inclui alíneas) durante estes quatro dias de votações, tendo uma delas, aliás, protagonizado a polémica desta discussão — já que foi votada depois de alterada de forma significativa, tendo a alteração entrado fora do prazo. O PS defende que não foi alterada de forma significativa, e a proposta foi votada e aprovada.
Esta quinta-feira, os socialistas conseguiram propostas que resultam de questões autárquicas, em particular com as entidades municipais. Assim, sob sua proposta, as entidades públicas participantes em sistemas multimunicipais de água ou saneamento e resíduos sólidos não têm de adotar procedimentos de controlo interno quando detenham participação inferior a 10% do capital social. Ou a medida que pretende permitir apoios a associações e fundações onde os municípios participem sem qualquer posição ou influência dominante, permitindo que estes possam conceder subsídios a entidades não societárias nas quais participem.
Mas é o PAN que se manteve como o partido que mais propostas conseguiu passar pelo crivo socialista e esta quinta-feira não foi exceção: subiu para 41 o número de medidas com autoria do partido de Inês de Sousa Real com luz verde. Uma das que se juntaram a esse rol foi a que promove mais transparência no cumprimento das normas do Orçamento do Estado: ou seja, obriga o Governo a criar, este ano, uma secção no “Portal mais Transparência” para que qualquer cidadão possa acompanhar a implementação do OE.
O PAN não demorou muito esta quinta-feira para começar a acumular aprovações: conseguiu uma linha de investimento adicional para os Centros de Recuperação de Animais Selvagens no valor de 1 milhão de euros, a revisão da forma de financiamento através do Fundo Ambiental e o início do fim da utilização de chumbo na pesca e na caça, encontrando materiais alternativos, mais sustentáveis. Além disso, viu aprovada uma proposta que prevê que em 2022, “o Governo determina a interdição da criação de novas áreas cinegéticas nos terrenos geridos pela Florestgal, S.A”, uma empresa pública de gestão e desenvolvimento florestal.
À Iniciativa Liberal o PS deu esta quinta-feira uma proposta semelhante à que deu PAN relacionada com a atualização do “Portal Mais Transparência”, subindo para quatro as propostas liberais que serão introduzidas no Orçamento. Esta última medida implica que o Governo inclua, por exemplo, informação sobre cada projeto financiado ou confinanciado por fundos europeus, identifique o seu grau de realização, em tempo real, assim como os objetivos a atingir com o seu nível de implementação e as entidades promotoras dos projetos, entre outros.
O Portal terá ainda de garantir ligações com outros portais eletrónicos do Estado que tenham informação sobre fundos europeus, incluindo contratação pública, registo de beneficiários efetivos e relatórios de monitorização do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), os quais poderão ser consultados. Os liberais ficam, assim, com quatro medidas inscritas no OE.
Ao contrário do PAN, e além do PCP, também Bloco e Livre ficaram sem somar vitórias esta quinta-feira: não viram nenhuma proposta aprovada. Pelo caminho, esta quinta-feira, ficaram por exemplo as três propostas do Livre, PAN e PCP para alterar o programa Porta 65, de apoio ao arrendamento jovem, as do PAN e PCP para reforçar os apoios às organizações não governamentais de mulheres (ONGM), a do Livre para inclui um relatório de alinhamento com os objetivos de desenvolvimento sustentável no OE, as medidas do Bloco, PCP e PAN que aumentariam de 22 para 25 dias o número de férias mínimo anual na função pública.
Depois do PAN, o Livre mantém-se com o partido com mais medidas aprovadas (13) — embora possa vangloriar-se por ter as mais emblemáticas: como o alargamento dos apoios no desemprego, o programa 3 C – Casa, Conforto e Clima e o estudo e programa-piloto para testar a semana de quatro dias.
Livre consegue alargamento do subsídio de desemprego e licença para formação
Apesar do PAN e do Livre terem sido os mais beneficiados na oposição, anunciaram já que vão manter a abstenção na votação final.
Apesar de várias propostas aprovadas, PAN e Livre mantêm abstenção ao Orçamento
O PCP mantém apenas uma medida aprovada (sobre o direito de preferência na venda de casas penhoradas pelo fisco), no penúltimo dia de votações na especialidade em sede de Comissão. Já no último, esta quinta-feira, ficou a ver navios: nenhuma proposta comunista teve luz verde dos socialistas. Mesmo apesar de ter várias propostas sobre os benefícios fiscais, um dos temas do dia.
Já o Bloco continua com duas: uma para que o Governo crie um programa de promoção do estatuto dos profissionais da área da cultura para a sua divulgação; e outra para a promoção de ações de informação sobre o ciclo menstrual, a utilização e a variedade de “produtos de recolha menstrual”. O Chega com nenhuma.