Discurso de Jair Bolsonaro
“Quero começar agradecendo aos 58 milhões de brasileiros que votaram em mim no último domingo.”
Quarenta e oito horas depois, dois minutos de discurso sem direito a perguntas. Em primeiro lugar, um agradecimento aos eleitores brasileiros que foram às urnas numa tentativa de manter o atual Presidente do Brasil — o que significa que, pelo menos, dá como válida a votação que teve; depois, o silêncio com significados subentendidos: Jair Bolsonaro não assumiu de forma clara a derrota e não disse o nome de Lula da Silva. Não há nenhuma expressão usada pelo ainda chefe de Estado brasileiro que possa soar a um envio de parabéns ao adversário que o derrotou e, ao que tudo indica, continua sem ligar ao próximo Presidente do Brasil, como é habitual. Por outro lado, nada do que disse revela que Bolsonaro tenha intenções de contestar os resultados.
“Os movimentos populares são fruto de indignação e sentimento de injustiça de como se deu o processo eleitoral. As manifestações pacíficas são sempre bem-vindas, mas os nossos métodos não podem ser os da esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedade, destruição de património e cerceamento do direito de ir e vir.”
Um dos momentos mais esperados do discurso chegou logo na segunda frase, com uma reação de Jair Bolsonaro aos protestos que têm marcado os últimos dois dias no Brasil, com várias estradas bloqueadas por alguns dos seus apoiantes. Apesar de entender e até validar os motivos — ao dizer que está em causa um “sentimento de injustiça” relativamente aos resultados —, não demorou a distanciar-se e até a contra-atacar a esquerda: os manifestantes estão a agir, aos olhos de Bolsonaro, como quem é de esquerda e “prejudica a população”. Contudo, não é claro a pedir que os manifestantes saiam das ruas e nunca faz um pedido claro para uma mudança de atitude que permita atenuar o ambiente que se vive nas ruas do Brasil.
“A direita surgiu de verdade no nosso país. A nossa robusta representação no Congresso mostra a força dos valores: Deus, pátria, família e liberdade. Formámos várias lideranças pelo Brasil. Os nossos sonham seguem mais vivos do que nunca. Somos pela ordem e pelo progresso.”
Não perdeu tempo ao realçar os valores da direita que carrega, ao sublinhar que há uma robustez dessa ideologia no Congresso (fruto das eleições que reforçaram o número de deputados dos partidos que o apoiam), e lembrou o mote daquilo que representa: “Deus, pátria, família e liberdade.” Referindo-se, provavelmente, a triunfos de bolsonaristas em alguns estados importantes, como o de São Paulo (onde foi eleito Tarcísio de Freitas contra Fernando Haddad), fez questão de notar que houve vitórias da direita conservadora no Brasil e, mais do que isso, não deixou muitas dúvidas quanto ao futuro, ao frisar que vai continuar: “Os nossos sonham seguem mais vivos do que nunca.” Por outras palavras: mantém em aberto um caminho para voltar a ser candidato em 2026 e deixa claro que não vai desaparecer do cenário político.
“Mesmo enfrentando todo o sistema superámos a pandemia e as consequências de uma guerra [da Ucrânia].”
A pandemia da Covid-19 é um dos temas mais sensíveis na governação de Jair Bolsonaro, depois de o Presidente do Brasil ter colocado em causa as vacinas, ter negado a eficácia das máscaras (aparecendo recorrentemente sem elas em público) e sugerindo que se tomasse hidroxicloroquina para curar a doença — tendo em conta que nunca se comprovou que o medicamento ajudasse a combater o novo coronavírus. Ainda que tenha negado a dimensão da pandemia em várias ocasiões, Bolsonaro agora usa-a como um argumento, desta vez para se voltar a distanciar do sistema e para elogiar o seu próprio mandato.
“Sempre fui rotulado como antidemocrático e ao contrário dos que me acusam sempre joguei dentro das quatro linhas da Constituição. Nunca falei em controlar ou censurar os media ou as redes sociais.”
Jair Bolsonaro está a ser investigado em vários processos na justiça brasileira e o facto de deixar a Presidência do país faz com que perca a imunidade e possa ser julgado. Porém, também aqui se quis distanciar de Lula da Silva, que foi condenado e viu mais tarde as sentenças anuladas, ao garantir que, apesar das acusações, sempre “jogou dentro das quatro linhas”, ou seja, sempre cumpriu a lei. No mesmo sentido, também negou uma das maiores acusações de que é alvo: o controlo da comunicação social — com quem teve uma relação difícil ao longo do mandato, acusando os jornalistas de não cumprirem o seu papel.
“Enquanto Presidente e cidadão continuarei cumprindo todos os mandamentos da nossa Constituição.”
E fez questão de o sublinhar mais uma vez, com mais uma promessa para o futuro: além de dizer que cumpriu a lei no passado, voltou a dizer que se manterá um cidadão exemplar, que não viola a Constituição.
“É uma honra ser o líder de milhões de brasileiros que defendem a liberdade económica, liberdade religiosa, liberdade de opinião, a honestidade e as cores verde e amarela da nossa bandeira.”
No final do discurso, colou-se a quem é defensor das mais diversas liberdades e foi exatamente com esse argumento que destacou o facto de ser o representante de “milhões de brasileiros” que votaram em si. Foi também assim que se defendeu para o futuro. Depois de falar para fora, falou para dentro, para os partidos que o apoiam. Numa altura em que avança o debate sobre quem deve ser o seu sucessor dentro do bolsonarismo e da direita que representa, quis deixar uma mensagem clara: o representante da direita tem um nome, não foi abandonado pelos eleitores e será ele o líder da oposição. Não há, por isso, nenhuma razão para lhe dizer adeus.