[Este artigo foi originalmente publicado em abril de 2019 e atualizado em 20 de novembro de 2019, quando o Mesa de Lemos conquistou a sua primeira estrela Michelin]
Ainda faltavam quase três horas para a hora de almoço quando o Observador chegou à enorme propriedade de Celso de Lemos, o “melhor homem do mundo”, para o chef Diogo Rocha. Em Silgueiros, nos arredores de Viseu, mora esta Quinta de Lemos, propriedade vínica de renome que serve também de casa para um dos restaurantes mais bonitos de todo o país — até a estrangeira Forbes concorda — a Mesa de Lemos. Nesse dia cinzento, Rocha ia cozinhava ao lado do conceituado espanhol Josean Alija (que tem uma estrela Michelin no seu Nerua, em Bilbao), o primeiro convidado internacional do programa “Chefs a Lemos”, um conjunto de refeições a quatro mãos que trazem a este palácio brilhante (confira por si próprio na fotos em baixo) grandes nomes da gastronomia.
Josean estava de fato de treino, mas Diogo já vestia a sua jaleca azul escura e comandava os preparativos para a refeição que se seguiria. Enquanto o espanhol ia conversando sobre a comida maravilhosa que já tinha provado, Rocha sorria e trabalhava, sorria e trabalhava. É uma pessoa que sorri e trabalha. Muito. Já lá vai o tempo em que ainda estava debaixo da asa de Vítor Sobral, um dos seus grande mentores, mas isso não afasta a grande dose de portugalidade que transborda dos pratos que serve.
“Estou contente, pá”, revelou o cozinheiro. Normalmente é esse o estado de espírito de quem partilha o “palco” com alguém que admira e, mais importante ainda, de quem sabe que um aniversário está na ordem do dia. Faz este mês de abril cinco anos desde que este ambicioso projeto abriu portas pela primeira vez e que, apesar de estar inserido num lugar menos óbvio para o fine dining mantém-se forte e acrescer. É constantemente apontado como um dos favoritos a receber estrela Michelin, tem batalhado por promover mais e mais a região do Dão e continua a ser um verdadeiro farol de mudança no panorama gastronómico e empresarial desta região do Centro.
Foi a propósito deste aniversário e da impressionante resiliência deste projeto — que quis criar massa crítica de alta gastronomia numa zona onde havia poucos ou quase nenhuns indícios dessa realidade — que depois dessa refeição o Observador falou com ele para perceber melhor não só quem é a pessoa mas também de que forma é que ela vê esta mão cheia de anos que já passaram. O que mudou? O que está igual? Porque é que ainda não há mais projetos como o dele? Quanto tempo falta até os investidores prestarem mais atenção às potencialidades desta região do país? Foram respostas a estas (e outras) questões que o ainda jovem cozinheiro deu ao Observador.
Como funciona o Chefs a Lemos?
É um projeto com o qual pretendemos dar a conhecer o que é a região, proporcionar aos cozinheiros que nos visitam um maior contacto com os produtos e a gastronomia da região. Também queremos com estas refeições, feitas em parceria com chefs nacionais e internacionais, fazer com a região em si, que não tem tantos restaurantes — ou mais nenhum, arrisco — de fine dining, possa conhecer outros tipos de cozinha, diferentes filosofias e formas de trabalhar. Começámos com convidados portugueses, que era mais fácil, mas agora trouxemos o Josean Alija. Era como te dizia, aquilo de dar a conhecer a região: comemos rancho ao almoço, depois ainda fomos ao leitão, às iscas, à cabidela, ao cabrito… É isto que queremos fazer com os cozinheiros que convidamos para estas refeições. De um modo geral, o nosso objetivo principal é fomentar uma troca de informações com as pessoas que vêm ter ao restaurante, tanto os chefs como os clientes.
No caso do Josean a coisa foi diferente, por ele ser estrangeiro?
O nosso restaurante não é só regional, é de Portugal, e isso faz-nos querer mostrar o que é o nosso país a quem vem de fora. Às vezes dizem-nos que temos muito peixe na carta — por razões óbvias, o Hugo [Caves], o nosso enólogo, também é armador em Peniche –, hoje já há muita facilidade em ter peixe fresco todos os dias e a história de não haver nada de jeito à segunda-feira é um mito. Ora nós fazemos isso porque se Portugal é um país que tradicionalmente tem peixe de alta qualidade, não fazia sentido não usar. Ou seja, é por causa disto que temos esta esfera, também. Explorar a portugalidade e mostrá-la a quem vem de fora, como o Josean.
Assume-se então que este projeto é uma forma de dar a conhecer o país e suas tradições. Sente que isto, na sua zona do país, era algo que faltava fazer?
Sim. Faltava e ainda falta. O nosso trabalho [no restaurante Mesa de Lemos] já leva cinco anos, celebramos agora o aniversário, mas caminhamos muito sozinhos. Infelizmente ainda há investidores com medo de partirem para esse objetivo. Nós achamos sempre que quanto mais unidos formos mais longe conseguimos chegar. Ainda há uns tempos tive uma reunião na Câmara Municipal de Viseu, por causa da Capital da Gastronomia 2019, e estamos a tentar mobilizar os restaurantes locais, os produtores, tudo isso… E olha que é uma missão muito difícil. Somos muito duros, é preciso bater muito, principalmente os espaços mais clássicos, que têm 40 anos ou mais e acham que estão bem, não se apercebendo que estão a morrer lentamente. Muitas vezes, quando dão conta, já não têm hipóteses… Acredito que vamos conseguir, contudo, porque as pessoas que estão atrás destes projetos são de trato fácil mas, perante a mudança, têm sempre uma resistência natural. É engraçado porque nessa mesma reunião deu para ouvir malta mais nova, que foi abrindo alguns projetos mais recentemente, a dizer que nas suas cartas já identificam a broa como sendo de Vil de Moinhos. Fico contente ao ouvir isto porque sinto, em parte, que isto já é o resultado de algo que temos vindo a tentar implementar há uns anos…
Começa a notar que o vosso trabalho já começa a fazer a diferença na região?
Sim, que já há ali um caminho, que já existe alguma coisa. Eles podem nem perceber o porquê de terem começado a fazer isso, muitas vezes mudamos sem notar que o fizemos, mas é sempre interessante.
O que sente que ainda falta fazer?
Na região temos um problema que é precisamente a capacidade financeira das pessoas, começamos logo por aí. Nós vivemos muito da indústria têxtil, da própria agricultura, e isso faz com que a capacidade financeira das pessoas não seja muito grande — isto é uma questão para a qual temos de ter alguma sensibilidade. Estamos a falar de uma zona do país, uma cidade [Viseu] que pode ter 100 mil pessoas mas tem o per capita mais baixo do país. Logo aí estamos a começar de forma mais complicada…
Isso traduz-se numa falta de massa crítica?
Sim, exatamente! E isso é muito importante para restaurantes como a Mesa de Lemos, para este trabalho. A base começa logo por primeiro percebermos até onde podemos ir. Em cidades como Lisboa as coisas acontecem muito rápido. Aqui no interior as coisas demoram muito mais tempo a desenvolver-se. Na capital as coisas aparecem e crescem muito rápido mas também terminam e mudam num instante. Aqui, por muito que algo demore a surgir ou a cimentar-se, a sua duração é maior. Isto vê-se, por exemplo, em restaurantes com 40 ou 50 anos que temos cá e que talvez em Lisboa não existam em grande quantidade. Fazemos agora cinco anos e, se olhares para esta área de espaços mais do fine dining, esse tempo todo faz de nós quase veteranos! [risos]
Como tem sido a vossa evolução nestes últimos tempos?
Felizmente temos crescido todos os anos, em termos de clientes. Nos meses de janeiro e fevereiro houve um salto mesmo grande, é incrível. Eu falava com o Óscar Geadas [do G Pousada, em Bragança, que é um dos mais recentes vencedores de estrela Michelin] e ele dizia-me que o janeiro dele nem parecia janeiro. Claro que no caso dele, por causa da estrela, isso seria óbvio e expectável,mas connosco já não! Continuamos a fazer exatamente aquilo que fazíamos antes, a sermos exatamente as mesmas pessoas, e notamos diferença. Tenho de registar também que o trabalho que tem sido feito para divulgar a região também terá ajudado. Tudo isto faz com que a tal massa crítica vá aumentando. Às vezes tenho clientes que me dizem “Oh chef, este menu é melhor que o anterior” e eu acho que quando isto aconteceu é porque fiz alguma coisa para mudar o gosto das pessoas, elas começam a ficar mais habituadas.
Serve, quanto mais não seja, para suscitar a curiosidade, não?
Sim. O paladar vai refinando e passamos a querer conhecer mais. É uma questão de educar e isso é o que se nota na região. Para nós, conquistar vitórias é chamar cada vez mais clientes da região. Nós somos um restaurante onde, felizmente, pessoas de fora não faltam — e elas são sempre as mais informadas. Nós em Viseu, historicamente falando, somos os primeiros a fazer um projeto deste género, com todas as vantagens e desvantagens que isso traz. Convém dizer que também pertencemos a um grupo fortíssimo, a Abyss & Habidecor, que tem uma pessoa absolutamente genial como líder, o senhor Celso de Lemos, um visionário que acredita neste projeto desde o dia zero. Isto também nos permitiu ter estabilidade nos últimos anos. Temos um restaurante de 25 lugares que emprega 11 colaboradores, acho que isto diz muito daquilo que se pretende fazer. O serviço de sala, por exemplo, é algo importantíssimo e que tem de ser mudado: Esta é um zona difícil para vinhos, trabalho no setor há 15 anos e sempre ouvi os produtores a dizer “este ano é que é”, no que à divulgação diz respeito. Se falarmos agora de Espanha, acho que eles sabem seduzir melhor os clientes! Só pela conversa conseguem fazer coisas impressionantes. Já não me lembro ao certo de quem me contou isto mas uma conhecida esteve lá há pouco tempo, provou um vinho e depois quis provar uma casta mais específica. O senhor do espaço onde ela estava disse-lhe que não tinha mas que o não sei quantos, da casa ao lado, era capaz de ter… Quando conseguires fazer isto em Portugal estás num nível…
Porque acha que isso ainda não acontece?
Acho que é cultural. Nós não nos sabemos vender.
Falava da sua equipa: Uma das coisas que muitos cozinheiros de todo o país se queixam é da grande dificuldade em encontrar pessoal de cozinha e de sala, mesmo até pessoas que trabalham em restaurantes no Algarve, uma das zonas com mais estrelas Michelin do país (logo, mais atrativa para quem explora a área). O Diogo também sente isso aqui?
Sim. Por acaso neste momento estamos com uma equipa muito jovem, o escanção tem 20 anos, uma empregada da sala tem 20… A maior diferença que tenho sentido ao longo deste anos é que tenho conseguido recrutar pessoas de sítios cada vez mais perto. Já tive pessoas Sesimbra, vê lá…
Isso é algo que tenta fazer? Dar prioridade à contratação de pessoas da região?
Claro. Tento sempre que sejam pessoas mais próximas porque isso garante-me mais sustentabilidade. A pior coisa que nos podia acontecer é perder um sub-chef ou um chefe de sala porque são pilares que, se desaparecerem, obrigam-te a fazeres tudo de novo. Eu costumo brincar com o facto de termos o restaurante todo em vidro dizendo que somos uma grande montra para a região. Assim sendo, qualquer um que trabalhe aqui acaba por capitalizar-se imenso no mercado. Eu acho que as pessoas pensam mesmo que o restaurante é meu e isso é natural quando tu identificas determinadas caras a determinados projetos. Eu próprio, ao dia de hoje, não me imagino a cozinhar noutro restaurante. Partilhava isto mesmo, no outro dia, com um chef que não interessa o nome. Ele dizia-me: “Eu agora vou para onde?” Tu chegas a determinada altura da tua carreira em que começas a olhar à tua volta e não consegues vislumbrar para onde podes ir parar. No meu caso só poderia ir para Lisboa, Porto ou Algarve…
Não podia ir para outra quinta de vinhos, por exemplo?
Sim. Ou até abrir um restaurante meu, mas aí estava condenado logo de início porque um cozinheiro não é um gestor. Ponto final. Historicamente as coisas dizem isso, portanto ia dar vários tiros nos pés, ficaria amputado, seguramente. Mas olha que é bom para um cozinheiro não ter essa responsabilidade, permite-te criar livremente. Obviamente com restrições que possas criar para ti próprio, como nós temos cá a de só trabalhar com produtos portugueses, por exemplo, também exercitas essa criatividade.
É preciso não esquecer que essa restrição de só trabalhar com produtos portugueses quase que pode ser um luxo, algo que muitos outros restaurantes, do seu patamar, podem não conseguir ter. O seu “guarda-chuva” da Abyss & Habidecor é muito grande e permite essas apostas. Concorda que é um luxo dizer-se que só trabalha com ingredientes nacionais?
Sim porque nós estamos dispostos a pagar o preço justo e isto é muito importante, o facto de estares aberto a pagar ao produtor aquilo que ele de facto merece. Porquê? Porque muitas vezes defendemos o produto português mas depois, quando vamos a ver, por razões financeiras, pagas menos a quem te fornece. Era o que te dizia há bocado: eu posso exigir aquela batata X ou o alho Y que só há nos Açores mas tenho de ter noção de que isso custa dez vezes mais. Eu não estou preocupado com isso e isto, para mim, é a minha grande vantagem. Estou num sítio em que o que me pedem é que tenha os melhores produtos existentes no meu país. Se posso comprar um robalo fresco, pescado à linha, não compro outro… Nunca mais, não consigo!
Quem são os seus clientes, neste momento?
Os da região, normalmente, são pessoas já com alguma informação sobre a área. Quando não o são, sentimos logo e percebemos rapidamente que vamos ter um desafio ainda maior. Com aqueles que gostam de nós já é fácil, o complicado é conquistar os que não gostam ou desconhecem. Ainda esta semana, no sábado, tinha uma mesa de duas pessoas aonde foram parar os primeiros snacks, os segundos, e eu comentei com o escanção que aquela malta não estava a sorrir. “Temos de lhes arrancar isso”, contei-lhe logo. A pessoa quando vai a um restaurante é para se divertir, para se sentir bem! Num caso como este muda-se o desafio: passa a ser preciso trazer a pessoa para ti. Decidi ir a essa mesa servir o molho de um prato, meti alguma conversa, e aos poucos o João [escanção] foi dizendo que eles já estavam a começar a sorrir umas vezes. A brincar até lhe disse para lhes pôr mais vinho no copo! [risos] Nós temos um tártaro de espadarte do qual eles só comeram metade. Fica logo a dúvida. Os nossos empregados têm instruções para perguntar logo se não gostaram, ou algo do género, e foi isso que se fez: Eles responderam que não estavam habituados a comer peixe cru. Assimilas isso, mesmo já sabendo que aquelas pessoas podiam não estar muito habituadas a todo aquele contexto. Temos também um prato com couves de bruxelas, uma coisa gulosa com bivalves e caldo de marisco. Eu decidi incluir esse no menu deles — não estava previsto –, fui lá e foi engraçado testemunhar outra coisa que é a capacidade que tu vais ganhando de influenciar as pessoas, mudar-lhes completamente o chip. Servi-lhes isso, disse-lhes que não estava incluído mas que como não tinham comido o anterior, que podiam provar esse, que era um dos meus favoritos. Foi este pormenor que creio que os influenciou mais. Eles comeram aquilo, pedi à rapariga da sala, a Rafaela, para lhes perguntar o que tinham achado: quase que nem foi preciso porque consegui vê-los sorrateiramente a tirarem pão e molharem no caldo. “Já está”, pensei logo![risos]. Quando lhes levantaram o prato disseram mesmo que o chef tinha razão, que aquele era mesmo o melhor prato! [risos]. A partir daí foi tudo bom, já conversavam, já sorriam. Soube que tinha ganho dois clientes, ainda por cima da região.
Mas consegue ter pessoas que vão com regularidade?
Tenho, sim. Com isto dos Chefs a Lemos, por exemplo, há casais que vão sempre. Os tais clientes informados, da região, de que te falava, são malta que já faz o circuito, que vai ao Porto e a Lisboa comer, que conhecem os chefs que convidamos…
Essas pessoas representam que percentagem dos seus clientes totais, por exemplo?
Uns 20%, diria. A grande maioria são pessoas de Lisboa/Porto. Este ano gostávamos de ter mais pessoas de Aveiro, Coimbra, Guarda… Sabemos que este último é mais difícil por haver ideia de que é mais isolado. Os brasileiros andam uns 500 km par o interior e continuam a dizer que estão perto do mar. Nós estamos a uma hora e dizemos logo que é longínquo, que é o interior profundo — e na verdade não e mesmo nada disso! Eu sou do tempo em que a minha avó, quando ia ao médico a Coimbra, ficava não sei quanto tempo a preparar a viagem e eram só 70km. Isto ainda existe, atenção. Para algumas pessoas, alguém que pode ir a Londres beber um café e depois ir a Paris jantar, já não é assim, mas há pessoa de outras faixas etárias para quem ainda é tudo muito longe a menos que seja para comer lampreia, ou leitão… É preciso que mais pessoas que correm atrás desta cultura de cozinha de conforto, a nossa cozinha, também procurarem restaurantes como o meu ou o do Óscar Geadas [G Pousada, Bragança], como o do António Loureiro [A Cozinha, Guimarães]. Aqui as coisas estão todas à mão… Eu lembro me que quando voltei aqui à região, há quase 15 anos, não havia nem salsa nem coentros nos supermercados. Semanalmente ias à praça, talvez compravas um dos dois e pouco mais… As coisas vão evoluindo.
A zona do Dão é muito conhecida por essa comida de que falava, a de tacho, de forno, dita por alguns como mais pesada… Isso é um elemento essencial da nossa cultura gastronómica. Acha que isso dificulta uma maior abertura de mentes em relação a conceitos como o chamado fine dining?
É um facto. Nós comemos otimamente e, como se costuma dizer, se já estamos bem porque haveremos de mudar? Vemos isso no Instagram a toda a hora, quando há pessoal que ao ver pratos como os que eu posso fazer escreve logo “ah, que barrigada de fome que deves ter passado”, ou coisas do género. O engraçado é ver que se for uma sobremesa, por exemplo, que comparamos com uma baba de camelo igual à que comes em qualquer lado e vem servida numa taça, eu talvez até esteja a dar-te mais comida, a única diferença é que a minha vem apresentada de forma bonita e espaçada. Quando comes um menu de 12 porções ficas sem conseguir tolerar mais. Há muitos enganos visuais! Se eu te colocar 120 gramas de peixe sem espinhas, tudo limpinho, tu comes tudo, muito mais do que se te derem um com cabeça, espinhas e tudo mais. É isto que as pessoas às vezes não conseguem entender. Esse ponto de que falas é mesmo verdade… Voltamos ao exemplo que te dava há bocado: Eu acho que Espanha conseguiu alcançar um “boom” porque tinha muitos restaurantes maus. Nós, de norte a sul (e ilhas), dificilmente vamos a um restaurante onde a comida possa ser descrita como intragável. Dificilmente. A pessoa que nos atendeu pode não ser simpática, as casas de banho podiam estar a precisar de uma limpeza, o peixe pode estar um pouco passado do ponto… Enfim, podes ter estas coisas todas mas a verdade é que consegues comer aquilo. Como partimos logo desse aceitável para cima é muito mais difícil deixares de comer isso para arriscares comer algo que eu te possa fazer. Espanha entra neste exemplo porque como tinham tanta coisa má, não havia tanto risco que corresse mal. Pior que o que estava não podia ser.
Diria que a falta de mais cozinheiros, do seu estilo, também é prejudicial?
Nisto das cozinhas e dos cozinheiros é preciso uma união muito maior e nós sentimos isso cá. Sentimo-nos muito sozinhos na região porque faltam colegas a querer fazer, a querer ajudar — e isto não é ir para lá lavar a minha loiça, são coisas simples como passar contactos, descobrir novos produtos e produtores… Não sei se alguma vez pudeste testemunhar uma conversa entre dois cozinheiros onde um diz que tem uma carne muito boa, o outro pergunta qual é o fornecedor e, de repente, parece que quem falou no assunto primeiro não ouviu nada. Isto acontece mesmo. Se escreveres as pessoas podem achar que é mentira, mas não é. Isto é a realidade, parece que temos sempre o direito de propriedade. O nosso crescimento surgirá quanto mais cedo largarmos isso de vez.
Isso acontece por medo da concorrência?
Eu digo isto todos os dias aos meus clientes: “Eu gostava de ter mais uns dois ou três restaurantes a fazer um trabalho semelhante ao meu”. O problema disto, muitas vezes, é seres “campeão” todos os anos quando jogas na distrital. Percebes? É fixe ser-se campeão, eu cheguei a ser de basquetebol e andebol quando era miúdo, acontece é que quando fomos às regionais levámos uma malha que quase não nos conseguíamos endireitar. É isto que sentimos aqui: sabemos que há um reconhecimento geral e isso é ótimo, mas também queremos competição, faz parte. Só assim é que se evolui. O Vincent [Farge] ensinou-me uma coisa muito importante: olhares sempre para os teus pratos e pensar no que podias melhorar. Eu percebo cozinheiros que têm cartas iguais durante um ano inteiro porque têm tempo para ir afinando pratos durante o tempo. Sempre que mudas é como se começasses do zero novamente. Isto pode parecer chato, mas é o que te ajuda a crescer, desafia-te.
Dizia há bocado que o cozinheiro não era gestor. Ele também não pode ser agricultor ou produtor?
Podemos dar umas ideias… Posso chegar ao tipo dos enchidos e fazer umas sugestões, pedir-lhe para fazer assim e não assado, mas achas que eu tenho capacidade de fazer um bom chouriço? Queijo? Eu peço ajuda, trabalho perto das pessoas cujo trabalho admiro e por muito que um ou outro possa levantar alguma dúvida eu garanto sempre que lhe pago a produção toda desse pedido e já está. Eu não tenho capacidade para fazer muita coisa e tenho de reconhecer isso, perceber que não sei tudo sobre queijo, enchidos ou o que seja. Eu tenho de ter noções gerais de cozinheiro, que nos obriga a saber muito mais que o público comum. Eu próprio, muitas vezes, chego a pensar que podia tentar fazer alguma coisa mas depois desisto.
A propósito de produtores: há uma estufa com a qual o chef teve um trabalho de proximidade especial, certo?
Sim, em Lobão da Beira. Quando houve os incêndios eles ficaram com tudo absolutamente destruído mas nós fomos sempre comprando tudo o que eles tinham, tínhamos quase que uma pareceria e não os podíamos deixar cair. Não demos dinheiro mas fomos sempre comprando o pouco produto que iam conseguindo produzir. Felizmente conseguiram recuperar e hoje já estão muito melhor. Este é um exemplo das boas relações com fornecedores, daquelas que são justas e equilibradas. Tipos que passaram um mau bocado mas que te ouvem quando dizes que gostavas de ter uma couve portuguesa sem ser de estufa e que te respondem que são capazes de conseguir ajudar. Se não tiver, no ano seguinte já terá. Tudo isto é muito bonito mas é importantíssimo que os cozinheiros percebam que quando pedem coisas especiais aos seus produtores, vão ter de as pagar. Se não o fizerem podem matar um negócio.
Voltando ao tema da falta de investimento na região. O que acha que impede ou desmotiva empresários de investirem na sua zona que ainda por cima é tão conhecida pelos ótimos vinhos, produtos e gastronomia regional?
Sabes, acho que começa logo porque o próprio empresário local é o tal cliente que ainda temos de conquistar. É a esse empresário que temos de mostrar que existem outros caminhos. É muito difícil um investidor de Lisboa ir para a Viseu por isso temos de seduzir quem é de cá. Só o conseguirás fazer, no entanto, quando ele entender esta cozinha, o serviço, quando for capaz de fazer a diferenciação entre um restaurante aonde eles vão diariamente comer uma pratada e outro aonde levam os seus clientes estrangeiros quando eles os visitam. É preciso seduzir constantemente as pessoas de cá. Tenho um empresário e amigo que no último dia dos namorados marcou uma mesa para sete pessoas ao jantar e que vinha com uns clientes de fora que pediram expressamente para ir ao nosso restaurante! Convém assinalar que do ano passado para este o número de dormidas na região aumentou de 100 mil para 250 mil… Há qualquer coisa a mudar e isto tem de provocar novos investimentos a curto/médio prazo, de certeza. Mesmo assim, gostava muito que alguns grupos hoteleiros da zona tivessem mais dinâmica, que fossem mais agressivos do ponto de vista da comercialização.
Mas no geral nota diferenças entre o cenário de há cinco anos e o atual?
Muita, muita mesmo. Tive empresas, no início, que recusaram que fosse cozinhar num evento delas e que ainda no ano passado já me estavam a convidar para o fazer. Os mesmos que há uns tempos achavam que não fazia sentido fazer comida para eles. Esta mudança está a acontecer, mas de forma lenta. Devagarinho estamos a ir lá.
Acha que no dia em que ganhar uma estrela Michelin tudo poderá mudar?
Espero bem que sim! [risos] Aliás, espero bem que sim as duas coisas: que ganhe a estrela e que ela faça mexer as coisas.
As estrelas também são um tema interessante porque a Mesa de Lemos, praticamente desde que abriu que…
… Somos eternos candidatos! [risos] Podemos ser como a Glenn Close, que já foi nomeada não sei quantas vezes para os Óscares mas nunca ganhou nenhum [risos].
Isso é uma frustração?
Sabes porque é que é uma frustração? É pelo mesmo motivo que chegas a determinada altura do ano e vês chefs a dizerem que querem largar a estrela por causa da pressão. Não é a pressão dos clientes porque isso é normal, é a nossa profissão, é a dos pares, dos jornalistas, dos teus amigos… Pessoas que gostam de ti, que querem muito que ganhes, que te dizem isso e depois não acontece nada e ficas ali… Isso é que é frustrante. São estes últimos dois meses antes da altura da gala que tornam tudo mais difícil. Por um lado ficas contente porque percebes que há carinho e reconhecimento, mas depois não chegas a entender. Afinal o que é que falta?
Costuma-se dizer que o facto de só terem vinhos vossos na carta prejudica as vossas possibilidades de candidatura…
Mas olha que não, já tivemos oportunidade de falar uma vez com eles sobre esse assunto e eles esclareceram que não, que isso não é problema. Nós temos mais de 50 referências, mesmo sendo só nossas, e algumas outras de outros produtores da região que vêm completar a oferta já que não tínhamos espumantes ou vinhos de sobremesa no nosso portefólio, por exemplo. Isso a nós foi-nos dito que não era problema e eu acho mesmo que não seja. Acho sim que tem a ver com o que já falámos, o facto de estarmos numa região onde a cultura a este nível ainda está a ser construída. Acredito que da parte deles também exista uma espécie de querer esperar para ver o que acontece. Acho que eles nos têm em boa consideração, quanto mais não seja porque continuam a inspecionar-nos todos os anos, algo que no projeto anterior onde estive praticamente nunca aconteceu. Eles este ano já lá estiveram, identificaram-se no final de uma refeição para falarmos de alguns pormenores mais técnicos (mais que uma vez, até, se calhar), e sinto que a posição deles perante o meu trabalho é uma de incentivo a continuar a lutar. Pelo menos é isso que eu entendo. E sabes, as pessoas às vezes desvalorizam o guia Michelin mas eu não, acho que não o devemos fazer. Acho que não nos podemos deslumbrar mas não devemos desvalorizar. É tudo importante, significa que mexeste com o sentimento de alguém. Digo-te também que se a estrela nunca chegar não me parece que isso me afetará muito. Nós trabalhamos para o nosso cliente e isto não é só conversa.