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D.R.

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Josean Alija. O que faz um chef que perde o paladar e o olfato?

O líder do restaurante Nerua, que mora no Museu Guggenheim de Bilbao, vem a Lisboa falar no Congresso dos Cozinheiros. O Observador foi visitá-lo a Espanha para o conhecer melhor.

Uma espécie de cave, sem janelas, que facilmente se enquadra no protótipo clássico de uma taberna dos anos 70/8o. Um balcão/bar de madeira logo à entrada, cadeiras antigas, toalhas vermelhas com quadrados brancos e uma cozinha aberta, grande, que podia ser de uma cantina escolar. “Ongietorri!”, ouviu o Observador assim que entrou neste espaço com tanto de caricato (até havia uma espécie de pequeno móvel só para guardar baralhos de cartas) como de original. A exclamação em basco significa”bem-vindos” e foi proferida pelo anfitrião deste “hamaiketako” (a versão basca de um brunch), o chef Josean Alija, responsável pelo restaurante Nerua, no Museu Guggenheim em Bilbao.

O espanhol que está prestes a aterrar em Lisboa a propósito do Congresso dos Cozinheiros, que decorre nos próximos dias 1 e 2 de outubro no Lx Factory (a sua palestra é às 11h45 do primeiro dia), convidou uma série de pessoas para lhes explicar o que é um txoko — o nome do sítio onde estávamos todos. Desde tempos imemoriais, os homens euskadis têm um ritual semi-religioso, um momento de refugio entre os amigos onde todos cozinham uns para os outros. Comem, bebem e conversam sem qualquer restrição. Têm o seu txoko.

Restrito apenas a homens (hoje isso já mudou), os txokos são “uma espaço de pura alegria”, conta Josean, onde a amizade e a paixão pela mesa e seus rituais imperam. “Têm muita sorte, só entram nos txokos pessoas muito queridas àqueles que o fundaram”, continua o cozinheiro. “É uma prova de amizade, convidar alguém para vir cá”.

O sorriso que Josean levava na cara enquanto nos servia “tachadas” de mexilhões com “salsa marinera” (este “molho à marinheiro”, em português, tem base de tomate e pimento), as famosas kokotxas — parte do corpo de um peixe que fica no “pescoço” — e, claro, muito jamon ibérico. Este detentor de uma estrela Michelin desde 2011 é o modelo perfeito de uma pessoa feliz, contudo, nem sempre foi assim. Há mais de dez anos, quando já cozinhava no Museu Guggenheim (no restaurante antecessor do atual Nerua), um grave acidente de mota deixou em coma durante 21 dias. Quando finalmente acordou e achava que o tudo já estava bem, foi-se apercebendo que a comida lhe sabia estranho, os cheiros igualmente. Uma bateria de testes confirmaram, pouco depois, o pior cenário que um cozinheiro alguma vez pode enfrentara: tinha perdido o olfato e o paladar.

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“Esta história e muito complicada para mim, muito angustiante”, revelou ao Observador numa pequena entrevista depois da comezaina. Visivelmente emocionado, explicou a como teve “de começar do zero” e renascer, batalhar. Este exemplo paradigmático de sucesso — depois de “quase dois anos de recuperação” conseguiu alcançar a sua primeira e única estrela Michelin — explicou como tudo aconteceu e apresentou-se ao público português, falando também do seu (precoce) percurso entre os tachos e a visão quase romântica que faz dele um dos  grandes talentos da cozinha espanhola.

O chef Josean Alija depois do “brunch basco”. ©Diogo Lopes/Observador

Entrou no mundo da cozinha muito jovem…
Sim, com 14 anos. Ninguém da minha família tinha negócios ou qualquer ligação à área da restauração. Eu, quando era miúdo, era um ótimo aluno, tirava boas notas apesar de achar que isso não significa nada — a vida é uma questão de atitude. O que aconteceu foi que depois de acabar o ensino básico, um dia, a minha avozinha senta-se comigo e pergunta-me: “O que vais querer fazer em setembro?”. Não fazia ideia, talvez fosse trabalhar para conseguir juntar algum dinheiro e viver na boa. Ela disse que percebia, mas que passado um tempo me iria perguntar a mesma coisa. E assim foi. “Que queres fazer?”, perguntou-me uns tempos depois. Eu respondi que queria ser cozinheiro. Ela perguntou-me o porquê da minha afirmação e começámos a falar sobre isso. Disse-lhe que o que ela me tinha mostrado era que em casa, a avó cozinha para todos e eu sempre achei que a nossa felicidade, lá em casa, dependia dela: como cozinhava bem, conseguia mudar os nossos dias, melhorá-los. Ela cozinhava para que nós fossemos felizes. E foi isso que eu também quis fazer, trabalhar em algo com qualidade e com capacidade para fazer os outros felizes. Lembro-me de ela dizer que achava muito interessante o meu ponto de vista mas que não podia fazer muita coisa para me ajudar — e foi comigo quando me inscrevi na escola de hotelaria. Eu acredito muito que esta profissão é como o amor, vais-te apaixonando. Vais descobrindo coisas novas, percebendo a melhor maneira de conviver com ela…

Mas concorda que não é uma profissão fácil?
É uma profissão muito complicada, como qualquer profissão, mas é mais singular porque exige imenso de ti. De ti, de ti [aponta com o dedo]. Do teu tempo, da tua vida pessoal, etc., etc….As razões que falava foram o que me quis ser cozinheiro e que me fazem acreditar, todos os dias, que este é um ofício maravilhoso. Permite-te conectar com pessoas inteligentes e com ideias sobre o mundo, conhecimento, criatividade… Ou seja, pessoas com vida, essência. Isso é o que mais gosto nisto tudo.

"Acredito mesmo que é a comida que nos define e, no fundo, aquilo que nos faz feliz. É um prazer tão puro que, se tiveres o mínimo de sensibilidade... Deixa-te tão feliz... Faz-te chorar."
Chef Josean Alija

Acha que a comida pode então ser a linguagem que permite a essas características se exprimirem?
A comida é uma oportunidade para juntares-te com outras pessoas, para desfrutar, para sonhar, para rir, conhecer. Quando falas de um prato falas de uma cultura…. Acredito mesmo que é a comida que nos define e, no fundo, aquilo que nos faz feliz. É um prazer tão puro que, se tiveres o mínimo de sensibilidade… Deixa-te tão feliz… Faz-te chorar. Não há momento em que não regresse à ideia daquilo que é “a mesa”. Todos os teus momentos felizes e de entusiasmo envolveram uma mesa, seguramente. Isso significa tanto.

Antes de entrar na escola de hotelaria já tinha o hábito de cozinhar?
[Faz uma careta] Tu deixas-te levar, mas com 14 anos… [volta a fazer e ri-se]. Com essa idade ou andas a brincar na rua ou estás a pensar em raparigas, não há mais opções. Ou dás cabo dos joelhos a jogar futebol com os teus amigos… [risos]

Como foi essa período de tempo na escola de hotelaria, então?
O curso teve três anos, trabalhei como estagiário em alguns sítios tanto aqui, no país Basco, como lá fora. Trabalhei com pessoas que foram capazes de olhar para um miúdo, perceber que ele lhes ia causar mais dificuldades que ajudas, mas mesmo assim confiaram (por muito que nessa altura aquilo que mais queres é ajudar, ajudar e aprender). É por isso que eu sou eternamente agradecido a pessoas como o Martín Berasategui, o Alber Adrià e muitos outros que me aguentaram.

Quando é que sentiu que já estava pronto para se aventurar sozinho?
Acho que esses momentos de transição surgem sempre fruto de oportunidades. Acho que podes chegar a chef de cozinha e a partir daí passas a ter de gerir pessoas, economias, stocks… Uma série de coisas muito complicadas. Quando chegas a esse ponto, tens duas opções: o fazes a comida que te ensinaram a fazer ou aquela que tu gostas. E escolhi a segunda.

E qual é a comida que o chef gosta?
A que nos faz feliz.

Falava do facto da vida na cozinha obrigar a muitos sacrifícios. Sente que já teve de sacrificar muita coisa na sua vida por causa da comida?
O mais importante é o tempo. Quando ele não é muito ou é mal gerido acaba por criar distâncias em relação às tuas pessoas mais próximas. Tirando isso, tudo o resto é um caminho de satisfações, afinal, permite que te conectes com pessoas que significam muito para ti, que te nutrem muito. Esta é uma profissão que te dá muito, muitíssimo, mas é importante que tudo isso que ela te oferece vêm com um regresso. Ela dá te tanto quanto te exige.

O Josean é daqui, de Bilbao?
Sim, sim. moro literalmente aqui ao lado. Antes morava do outro lado do rio mas agora mudei-me para aqui.

Falou há bocado que a comida no País Basco, nos últimos 20 anos, mudou muito. Como é que isso aconteceu?
Eu acredito que as coisas mudam em ciclos de tempo, de uns vinte anos. Nesses vinte anos, defendo eu, fizemos coisas que demorariam uns 100 a conquistar. Isto é muitíssimo. Conseguimos definir um modelo de restaurante, profissionalizar a restauração, saber criar equipas, liderar essas mesmas equipas, cozinhar melhor, de forma mais saudável, conhecer mais, ensinar e divulgar melhor, fazer com que as equipas sejam mais eficientes… Isto é notável. Aquilo que hoje parece fácil demorou muito tempo e envolve muito conhecimento, muitas ferramentas. Acho que o mais importante na nossa evolução foi o facto de termos aprendido a criar, a desenvolver um estilo próprio, algo que te torna distingue.

A cozinhar, com a ajuda do seu sub-chef, Iñaki ©Diogo Lopes/Observador

Tendo em conta as vossas fortes tradições gastronómicas, diria que foi difícil desenvolver essa “revolução”?
Sem dúvida. É sempre difícil mas é necessário no mundo de hoje. “E o que ainda nos falta fazer?”, perguntas-me tu. Acho que para aqueles que querem continuar a evoluir, há que continuar a caminhar em frente, a criar, a investigar. O conhecimento, na gastronomia, passou a ser aberto, não há divisões, quem quer aprender, aprende, quem quer aplicar, aplica, é algo muito pessoal.

Como é que veio parar ao Museu Guggenheim?
Já tinha trabalhado noutros sítios, antes de ir lá parar, mas cheguei em 98, quase desde o princípio. Só em 2011 é que abrimos o Nerua e ganhámos nesse mesmo ano a primeira estrela.

E a ideia de criar um restaurante de fine dining dentro de um museu, como surgiu? 
No início, uma das zonas do Bistro já funcionava nesse registo. Simplesmente houve a vontade de dar mais coerência a esse projeto, passando-o para o sítio onde estamos até hoje.

O Nerua há vários anos que é o eterno candidato à segunda estrela — que ainda não apareceu. Como sente que foi a evolução do restaurante até agora?
O Nerua é um diálogo entre o desenho, a arquitetura e as nossas raízes. Ao mesmo tempo encontras aqui uma cozinha familiar, um momento em que várias pessoas mostram-te algo através da cultura de Bilbao. A nossa sala é um espaço todo em branco para que invoque a ideia de um museu ou uma galeria, onde o que está em exposição é a comida. Através deste fundo branco podes desenhar o que quiseres — e aqui não é diferente.

E na sua opinião, o que há de semelhante entre a arte e a comida?
Comida é comida e arte é arte, mesmo assim, sinto que em comum têm a criatividade. Uma das grande diferenças entre as duas coisas, por exemplo, é o facto da arte não ser uma coisa estática, ou seja, quando fazes um quadro, ele fica ali, na tua parede. Agora quando fazes um prato, vais ter de o conseguir fazer mais vezes. No caso de um restaurante, então, vais ter de o conseguir fazer mais vezes e todas elas têm de ser igualmente boas. Mais difícil, não? Um quadro pode ser um golpe de sorte, um prato também, mas é um golpe de sorte que tem de se multiplicar ao longo do tempo.

Faz parte de algum txoko?
Não tenho txoko porque não tenho quase oportunidades de o visitar. Um dia decidi inscrever-me num, paguei e continuo a pagar, mas se pensar nisso… Quantas vezes é que o consigo visitar? Três? Cinco? Os meus amigos têm quase todos o seu txoko e dizem-me muitas vezes para os avisar quando quiser ir, dizem que nos deixam cozinhar. Acho que tenho muita sorte, neste assunto. Mostra que as pessoas gostam de ti como és, que te compreendem e aceitam. O Unai, por exemplo, é um dos médicos mais importantes da Euskadi. Quando combinámos tudo isto, falei com um amigo para saber se podíamos usar o txoko dele. Infelizmente ia estar fora mas contou-me que o Unai estava muito contente que eu fosse lá cozinhar. Ele tinha de trabalhar mas pôs uma folga só para poder estar aqui, connosco, a dar-vos a conhecer esta tradição. Isto é óptimo, super sincero.

Das vezes que andámos todos juntos, pelas ruas de Bilbao, ficou a ideia de que o Josean é uma pessoa muito querida para os “bilbainos”. Sente isso?
Eu acho é que os assusto! [risos] Fico muito contente porque acho que gostam de mim pela aquilo que realmente sou. Muita gente me agradece pelo facto de fazer de tudo para mostrar ao mundo a minha cidade, a minha região. Isso é o que eu mais tento fazer, pensar nos outros para que o resultado final seja o bem comum. E isto é complicado… cada vez somos mais individualistas…

Depois do acidente de mota, o Josean ficou 21 dias em coma e, quando acordou, não tinha paladar nem olfato. Como foi acordar e perceber isto?
Tive um mau despertar, como eles disseram na altura. Um mau despertar acontece quando ouves o médico dizer ao teu irmão que os meus dias se iam acabar. Lembro-me perfeitamente da cara dele. Pouco a pouco fui recuperando e deu para perceber que tu és um reflexo da forma como está a tua mente. Lembro-me do primeiro dia em que regressei à cozinha, depois de sair do hospital… Era um coisa assim [estica o dedo da mão], estava ainda em convalescência mas só o facto de poder respirar dentro de uma cozinha mudou tudo, a minha energia.

Como conseguiu recuperar os sentidos que perdeu?
Eu conto-te. Eu não estava bem consciente do que tinha, até me candidatei a um concurso, que ganhei (por pena). Aos poucos fui-me apercebendo que alguma coisa não estava a funcionar, custava-me identificar o cheiro a queijo, por exemplo, custava-me a saborear uma fatia… No início dava a desculpa de ser tudo ainda muito recente, mas depois percebi que havia um problema. Fiz uma série de testes que provaram que tinha várias sequelas que emocionalmente são muito duras de digerir. Não havia forma de superar isto, era preciso nascer outra vez, aprender outra vez e começar do zero. Esta história é muito complicada para mim, muito angustiante. Foi um dos piores momentos da minha vista.

E quanto tempo demorou até conseguir recuperar? 
Quase dois anos…

"Os sabores desapareceram-me todos, o menos complicado de recuperar, creio, foi o ácido. Tudo me parecia doce, não encontrava o salgado, não detetava os amargos. A mesma coisa com os odores."
Chef Josean Alija

Mas por exemplo, havia sabores que conseguiu reconhecer mais facilmente que outros?
Os sabores desapareceram-me todos, o menos complicado de recuperar, creio, foi o ácido. Tudo me parecia doce, não encontrava o salgado, não detetava os amargos. A mesma coisa com os odores. É muito complicado, tive de voltar a memorizar tudo de novo, um enorme esforço intelectual, super desgastante.

Sente que essa fase da sua vida influencia a forma como cozinha hoje?
Creio que sim. No final, acho que tudo isto despertou um parte de mim que já tinha mas estava adormecida. Tornou-a mais sensível, mais emocional e sincera.

Mudando de tema: o que conhece de Portugal?
Conheço, já lá fui algumas vezes, mas sinto que conheço muito pouco. Portugal é um país que gosto muito porque tem uma abundância de produtos de qualidade impressionante. Se pensarmos no tamanho do país, então… Acho que a vossa comida está muito ligada à nostalgia, de certa forma. Daquelas cozinhas que não se perde, cozinha de taberna. É maravilhosa e gosto muito.

Acha que é semelhante à cozinha Basca, em certos aspetos?
É possível, mas os territórios expressam-se sempre de maneira diferente. Acho que Portugal é um sítio que te toca no coração, não só tem grandes produtos como tem pessoas muito amáveis. Gosto muito disso. Mas acho que ainda é muito desconhecido, o vosso país. Acho que a visibilidade que têm tido nos últimos tempos tem sido muito positiva, especialmente Lisboa, que tem um lado muito boémio… Faz lembrar a velha Paris. Gosto muito do cunho poético que aplicam em quase tudo.

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