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Desde que o novo coronavírus foi identificado na cidade chinesa de Wuhan, há um ano, a instável molécula de ARN onde está depositada toda a sua informação genética já sofreu milhares de alterações. Mas bastou que dezassete delas se tivessem conjugado numa única partícula viral para dar origem a uma nova variante do SARS-CoV-2, 71% mais transmissível do que as outras e capaz de aumentar o número de reprodução (o famoso Rt) em até 0,93: esta que foi identificada agora no Reino Unido e que está a causar alarme generalizado, apesar de a Organização Mundial de Saúde tentar desdramatizar.
Não é a primeira vez que as autoridades de saúde detetam novas variantes do SARS-CoV-2. Na Dinamarca, uma mutação encontrada em martas foi também identificada em centenas de pessoas no país e levou o governo a tomar a polémica decisão de abater milhões destes animais. Tal como no Reino Unido, na África do Sul 90% das novas infeções estão a ser causadas por uma nova estirpe que já tinha sido identificada em abril noutros países, como no Brasil.
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Aliás, algumas das mutações que foram reconhecidas quer na Dinamarca quer na África do Sul também foram encontradas na nova linhagem identificada no Reino Unido.
Por exemplo, a mutação Y453S — em que um aminoácido chamado tirosina foi substituído por outro chamado serina no gene número 453 — foi observada numa transmissão do vírus ocorrida entre uma marta e um dos infetados dinamarqueses. E algumas das mutações presentes na nova estirpe sul-africana (que também é composta por 17 alterações) também foram encontradas na estirpe britânica: uma delas é a D614G — um aspartato substituído por glicina na posição 614 do código genético — que também se tornou dominante em Portugal e que pode ter conferido ao vírus uma maior capacidade de infetar as células humanas.
Só que a nova variante identificada no Reino Unido é diferente de todas estas. Porque não só contém mais mutações do que é normal, como a conjugação entre elas parece torná-lo mais transmissível (e por isso mais perigosa) do que qualquer uma das outras duas. De acordo com Celso Cunha, virologista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), a prevalência da nova estirpe aumentou de cerca de 20% para a ordem dos 60% em poucas semanas.
Três mutações da nova variante aumentam afinidade do vírus com as células
Os vírus cuja informação genética está guardada em moléculas de ARN sofrem mutações com muita facilidade porque são quimicamente instáveis. A diferença do ARN para o ADN, a molécula que assegura o património genético dos seres vivos e de alguns vírus, é tão subtil quanto um átomo de oxigénio e outro de hidrogénio. Mas é quanto basta para estes vírus serem mais suscetíveis de sofrer mutações.
Na maior parte dos vírus, a molécula de ARN é muito pequena precisamente para evitar que muitos erros se acumulem e acabem por inviabilizar por completo as partículas virais. Mas os coronavírus têm um truque: uma das peças envolvidas na replicação do material genético — um processo que permite a uma partícula viral dar origem a outras muito semelhantes —, tem um mecanismo de deteção e correção de erros.
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Acontece que, quando uma pessoa é infetada por partículas virais do SARS-CoV-2, a maquinaria celular vai cumprir as orientações impregnadas na molécula de ARN e produzir mais vírus. Alguns desses novos vírus vão ser diferentes da partícula original e, à conta disso, “acabamos por ter vários variantes do vírus original com que fomos infetados dentro do nosso corpo”, descreveu Celso Cunha.
Na esmagadora maioria das vezes, estas mutações não contribuem para alterações significativas na estrutura do vírus, na capacidade dele se transmitir ou na doença que provoca. Por vezes, podem mesmo condenar a partícula viral ao desaparecimento — o vírus perde viabilidade e, incapaz de competir com outras estirpes em circulação, simplesmente deixa de correr na comunidade.
Mas há exceções. E terá sido uma exceção que esteve na origem da nova variante detetada no Reino Unido: é possível que um vírus tenha infetado alguém com um sistema imune mais enfraquecido, incapaz de o eliminar, mas que o obrigou a evoluir para permanecer no hospedeiro durante mais tempo. Esta explicação ajuda a compreender porque é que a nova variante tem mais mutações do que o normal: foi uma batalha em busca do equilíbrio entre o vírus e o humano.
Mas o que pode justificar a rapidez com que a nova variante se espalhou pelo Reino Unido e depois para a Bélgica, Gibraltar, Dinamarca, Austrália, Países Baixos, Itália e África do Sul? O lugar em que as mutações ocorreram, explicou Isabel Gordo, líder do grupo de biologia evolutiva do Instituto Gulbenkian de Ciência. Três das dezassete mutações desta nova variante tiveram lugar na proteína S, a chave que o vírus utiliza para entrar nas nossas células.
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“O vírus pode ter adquirido um maior potencial evolutivo”, com uma maior afinidade entre a proteína S e o recetor ACE-2, na superfície das células, descreveu a cientista. “Quando o vírus se agarra melhor às células, a carga viral também pode ser maior, o que aumenta a transmissibilidade“, prosseguiu. Foi diferente do que aconteceu à mutação D614G: a frequência aumentou, mas num período temporal mais longo que esta conjugação de alterações.
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Segundo Miguel Castanho, bioquímico e investigador do Instituto de Medicina Molecular, “discute-se até como é que se terá chegado” a um vírus com este número anormal de mutações: “É uma acumulação de várias mutações, uma conjunção estranha e não muito habitual”, admite o cientista. Mas é a própria natureza das alterações que levanta ainda mais interrogações, uma vez que parecem conceder uma maior vantagem ao vírus.
Apesar de ténues do ponto de vista químico, as alterações podem ter efeitos pronunciados se ocorrerem em pontos críticos. O grau de alterações estruturais do vírus depende do quão díspar é o novo aminoácido, que vai substituir o que já estava incorporado no material genético. Como as mutações verificadas na nova variante são pronunciadas, isso altera a maneira a própria configuração da proteína S.
Ora, a proteína S é precisamente o alvo das vacinas que estão neste momento em distribuição pelo mundo ou em fase de aprovação pelas autoridades de saúde. Ao contrário do que tem sido assegurado por outros especialistas, Miguel Castanho acredita que as mutações identificadas neste momento podem mesmo ter um impacto na eficácia das vacinas.
“Diria que é muito difícil que não haja algum grau de impacto”, avançou o bioquímico. As vacinas de mRNA introduzem no organismo um pedaço de informação genética que coloca as células a produzir a proteína S. O objetivo é que o sistema imunitário aprenda a identificá-la como um invasor e que adquira imunidade contra ela. No entanto, a memória do sistema imune é contra partes específicas da proteína, não contra a estrutura inteira.
“Se estas mutações provocarem alterações das zonas da proteína que o sistema imunitário ataca, a eficácia pode diminuir. Se ela passar da ordem dos 90% para os 80%, o êxito da vacinação não sofre muito com elas. Se for para 60%, teremos um problema”, considerou Miguel Castanho. Mas não avança em qual destes cenários mais acredita: “Ainda não há noção de quantas pessoas vacinadas contactaram com esta estirpe. As nossas respostas vêm daí”.
Cels0 Cunha concorda: “Se esta variante tiver uma conformação substancialmente diferente, poderemos vir a ter algum problema caso os anticorpos neutralizantes contra o vírus de base deixam de funcionar”, confirma o virologista. No entanto, “isto é pura especulação, por enquanto”. É preciso manter debaixo de olho a eficácia da vacina e verificar se o nosso organismo está a produzir anticorpos neutralizantes contra esta variante.
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Mas há boas notícias no horizonte. Por um lado, e apesar da correlação aparente entre o número de casos crescente e a prevalência desta estirpe nos locais em que esse aumento foi descrito, é possível que tudo não passe de uma coincidência, alerta Celso Cunha. O comportamento das pessoas, o cumprimento das medidas de restrição e até as condições meteorológicas podem ter um papel neste efeito.
Mesmo assumindo que há uma relação de causa-efeito entre o maior número de infetados no Reino Unido (e até já noutros países europeus) e a nova estirpe, os dados recolhidos até agora sugerem que os infetados com a nova variante do vírus não desenvolvem sintomas mais severos do que os outros. Ou seja, mesmo sendo mais transmissível, a patogenicidade do vírus (capacidade de causar doença num hospedeiro suscetível) não foi alterada, salienta Celso Cunha.
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É assim porque, se houver uma mutação de um vírus que o torne mais infeccioso — isto é, capaz de desencadear uma carga viral maior no hospedeiro, o que lhe permite transmitir-se com maior facilidade para outras pessoas —, essa é a mutação que vai prevalecer sobre outras estirpes, mesmo que as outras sejam mais letais. Isto confere maior vantagem ao vírus, uma vez que pode replicar-se durante mais tempo, e em mais pessoas, sem matar o hospedeiro.
O problema com esta nova variante, e que justifica as medidas mais restritivas na mobilidade entre o Reino Unido e os outros países, é a ameaça que uma estirpe mais infecciosa simboliza para os sistemas nacionais de saúde, já sobrelotados. Mais casos de infeção pelo novo coronavírus significam um maior alastramento pela população, sobretudo os mais vulneráveis. Isso sim pode comprometer a resposta das instituições de saúde e aumentar o número de mortes diárias por Covid-19.