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“Façam a vossa parte e espalhem isto, irmãos.” Foi este o pedido deixado pelo principal suspeito do tiroteio que matou pelo menos 22 pessoas e deixou outras 26 feridas este sábado. As palavras vinham no final do seu manifesto, onde promovia a ideia de uma guerra racial. O texto foi colocado online por volta das 10 horas da manhã, minutos antes de o homem de 21 anos abrir fogo, de Kalashnikov na mão, na loja de uma conhecida cadeia de supermercados em El Paso (Texas), uma das cidades norte-americanas com maior percentagem de população latina (83%). O local onde o autor do atentado o postou foi no 8chan. Horas depois, os Estados Unidos seriam abalados por outro tiroteio, desta vez em Dayton (Ohio). A sua motivação ainda não é conhecida.
Há muito que o 8chan — um fórum online praticamente sem moderadores, onde os utilizadores podem publicar de forma anónima — se tornou um viveiro de ideias racistas e um local frequentado por terroristas que acabam por levar a cabo tiroteios em massa. Antes do autor do tiroteio de El Paso, já outros terroristas como o responsável pelo ataque à sinagoga de Pittsburgh (27 de outubro de 2018, 11 mortos), o autor do atentado em Christchurch na Nova Zelândia (15 de março de 2019, 51 mortos) e o atacante da sinagoga de Poway (27 de abril de 2019, 1 morto) publicaram os seus manifestos na secção /pol/ do 8chan, que pretende reunir todas as discussões que possam ser classificadas de “politicamente incorretas”.
Criado inicialmente pelo norte-americano Fredrick Brennan como um espaço idealizado de total liberdade de expressão, por oposição à moderação que considerava ser cada vez mais intensa no fórum 4chan, o 8chan tem vindo a ganhar relevância como espaço de reunião de ideias extremistas desde 2014, altura em que vários utilizadores do 4chan migraram para este canal alternativo por estarem descontentes com a reação ao chamado GamerGate, uma campanha de assédio violento contra utilizadoras de videojogos do sexo feminino.
Hoje em dia, o 8chan reúne desde membros do QAnon (teoria da conspiração que defende que há uma estratégia concertada do deep state contra o Presidente Donald Trump) até a internautas que praticam swatting (ou seja, fazem telefonemas para o número de emergência médica a denunciar alegados crimes para que haja uma ação das equipas de reação rápida, vulgo SWAT). Este domingo, menos de um dia depois do atentado em El Paso, foi acrescentada uma faixa no topo da página principal do fórum. Ali não se prestavam condolências. Em vez disso, podia antes ler-se a seguinte frase: “Bem-vindos ao 8chan, os Meandros Mais Negros da Internet.”
Cloudflare: da “Fedex da Internet” à empresa que afasta o Daily Stormer e o 8chan
Cinco anos depois, o próprio fundador do 8chan está totalmente afastado do fórum que ele próprio criou. Mas em vez de invocar o afastamento para não falar sobre o assunto, Fredrick Brennan não esconde que já não se reconhece na sua criação: “Fechem o site”, pediu, numa entrevista dada ao New York Times este domingo, em reação ao tiroteio de El Paso. “Não está a fazer nenhum bem ao mundo. É completamente negativo para toda a gente a não ser para os utilizadores que ali estão. Aliás, sabem que mais? Também é negativo para eles. Eles é que ainda não o perceberam.”
Foi precisamente nessa direção que foi dado um passo esta segunda-feira, quando a Cloudflare, empresa responsável por prestar serviços como proteção de ataques cibernéticos ao 8chan, anunciou que iria cortar a sua relação com o fórum, o que pode vir a deixá-lo inoperacional, pelo menos durante algum tempo. “O 8chan provou repetidamente ser um esgoto de ódio”, explicou o CEO da empresa, Matthew Prince, num artigo publicado no blog da empresa.
Esta não era, contudo, a posição da empresa até há bem pouco tempo, com exceção de uma única ocasião: o corte de relações com o Daily Stormer, um site de extrema-direita conhecido pelos conteúdos anti-semitas e neonazis. “Somos como a Fedex da Internet, passamos as mensagens, mas não olhamos para dentro das encomendas”, declarou uma das responsáveis da empresa à revista Forbes, na sequência dos atentados de Christchurch, na Nova Zelândia, para justificar a decisão de não cancelar a sua relação comercial com o 8chan.
O próprio CEO reiterou essa posição na noite do massacre de El Paso, este sábado, num telefonema com uma jornalista do The Guardian: “Se pudesse agitar uma varinha mágica e fazer desaparecer as coisas más que há na Internet — e pessoalmente poria o Daily Stormer e o 8chan nessa categoria —, agitaria essa varinha já amanhã”, declarou Matthew Prince. “Seria a coisa mais fácil do mundo e a nós saber-nos-ia muito bem atirar fora da nossa rede o 8chan, mas creio que isso nos afastaria da nossa obrigação e da causa que faz com que esta comunidade continue a existir e seja cada vez mais sem lei ao longo dos tempos.” Ou, por outras palavras, para Prince, o direito à liberdade de expressão na Internet continuava a sobrepor-se a tudo o resto.
Menos de 48 horas depois, o CEO mudava de ideias. “Toleramos de forma relutante conteúdo que consideramos repreensível, mas traçamos a linha em plataformas que demonstraram ter inspirado diretamente eventos trágicos e que são sem-lei por defeito. O 8chan passou essa linha”, escreveu Prince, para justificar a sua decisão. Este pode ser o primeiro passo para que outras empresas com quem o 8chan colabora façam o mesmo, o que pode levar ao encerramento da página.
O radicalismo e o mimetismo dos memes e manifestos racistas do 8chan
El Paso não foi o primeiro atentado terrorista em que o seu autor decidiu utilizar o 8chan para divulgar as suas ideias. Ao todo, e desde apenas finais de 2018, este é já o quarto caso, depois de Pittsburgh, Christchurch e Poway. “O 8chan é quase como um quadro de anúncios onde os piores criminosos vão partilhar as suas ideias horríveis”, resumiu ao New York Times Jonatahan Greenblatt, diretor da norte-americana Liga Anti-Difamação. “Tornou-se numa caixa de ressonância onde as pessoas partilham ideias e onde estas ideologias são amplificadas e se expandem até que, por fim, as pessoas se radicalizam como resultado disso.”
Não faltam exemplos recolhidos por vários órgãos de comunicação social norte-americanos que ilustram isto mesmo. A New Yorker relembra que ali se chama de “mártires” a Anders Breivik, autor do atentado na Noruega que matou 77 pessoas pelas suas ideias políticas — que considerava estar a levar a Europa a um “suicídio cultural” face ao Islão —, e a Dylan Roof, que matou 9 pessoas numa igreja americana frequentada sobretudo por negros — para “começar uma guerra racial”.
O Washington Post recorda que, na sequência dos ataques a duas mesquitas em Christchurch, na Nova Zelândia, não tardaram a circular no fórum memes que retratavam o autor do atentado como um santo, com uma auréola por cima da cabeça. “Este tipo é a única pessoa que alguma vez admirei mesmo em toda a minha vida”, dizia um dos memes que incluíam essa imagem.
E não só esta linguagem e iconografia não são incidentes isolados, como elas próprias podem ter influência ao criar uma espécie de efeito de contágio ou de cópia. No caso do atentado na sinagoga de Poway (Califórnia), apontava a Rolling Stone em abril, as semelhanças do manifesto do responsável com os manifestos de Pittsburgh e de Christchurch eram muitas, desde a estrutura e as piadas utilizadas, passando pela utilização dos mesmos sites para alojar os documentos e pela promessa de fazer um vídeo em livestream do ataque. Todos estes atentados, dizia Robert Evans, jornalista do site de investigação Bellingcat, especializado em ação armada, foram “atos de terrorismo inspiracional”. O seu objetivo, explicava, era o de inspirar outros. Inspirá-los a que cometessem o mesmo tipo de crime, motivados pelas mesmas ideias e que os levassem a cabo com os mesmos métodos.
O facto de muita da conversa online que decorre no 8chan ser recheada das piadas, memes, gifs e referências que pululam na Internet, numa linguagem simbólica que parece ser acessível apenas aos mais jovens e que confere uma espécie de status online, não deve ser razão para considerar que esta é uma conversa inofensiva. “Como muita da linguagem é absurda, em parte é também por isso que as pessoas demoraram a levá-los a sério”, declarou Evans à Rolling Stone nesse mesmo artigo. “[Mas] quando eles falam sobre exterminar pessoas ou [publicam] uma foto do sapo Pepe com uma câmara de gás, isso não é uma piada”, explicou, referindo-se ao desenho de um sapo que acabou por se tornar uma referência codificada à alt-right na Internet.
“Eles querem matar pessoas. Querem inspirar outros atiradores. E é por isso que isto tem de ser levado a sério”, rematava. Menos de quatro meses depois da publicação deste artigo, há um novo atentado cujo presumível autor frequentou o 8chan, participou nesta conversa e publicou ali o seu manifesto.
O papel das autoridades norte-americanas. Encerramento é difícil, mas vigilância é possibilidade
Na sequência dos atentados de Christchurch, a Nova Zelândia e a Austrália decidiram bloquear o acesso ao 8chan e a outros fóruns. À medida que vários dos sites em causa retiraram os conteúdos problemáticos, as restrições foram sendo levantadas. O 8chan, contudo, continuou bloqueado. “Para circunstâncias extraordinárias, respostas extraordinárias”, declarou Nikos Katinakis, executivo da maior empresa de telecomunicações australiana, de acordo com o Washington Post.
A lei dos Estados Unidos, porém, torna mais difícil que este tipo de ação seja tomada em solo norte-americano. O país tem das leis de liberdade de expressão menos restritivas do mundo, limitando o discurso apenas a casos em que seja provado que há incitamento à violência — algo que não é fácil de fazer. Para além disso, como relembra a New Yorker, a lei prevê que “nenhum fornecedor ou utilizador de um serviço de computador interativo seja tratado como o divulgador ou comunicador de qualquer informação que seja fornecida por outro fornecedor de conteúdos”. Ou seja, nenhum site, fórum ou outro tipo de plataforma pode ser prejudicado por aquilo que terceiros ali publicam.
Aquilo que as autoridades podem de facto fazer é monitorizar as conversas que acontecem naquele espaço e recolher informação sobre os envolvidos, da mesma forma que o fazem com suspeitos de terrorismo em outras áreas, como o terrorismo islâmico. Até agora, tal não tem acontecido, em parte devido ao facto de ali estarem envolvidos sobretudo cidadãos norte-americanos. Isso mesmo explicou Clinton Watts, investigador do Instituto de Pesquisa em Relações Internacionais e antigo especialista em contraterrorismo do FBI: “Estes extremistas nacionais organizam-se da mesma maneira [que os extremistas islâmicos]”, declarou. A diferença, diz, é apenas uma: “Os terroristas nacionais votam. Os terroristas estrangeiros não.”
O que não quer dizer que tal não esteja já a acontecer. Oficialmente, o FBI reconhece que “os indivíduos são muitas vezes radicalizados por ver propaganda em redes sociais e nalguns casos decidem a partir daí cometer atos de violência”. No entanto, o organismo afirma que “apenas investiga quando há uma ameaça potencial à segurança nacional ou uma possível violação da lei federal”. Apesar disso, há alguns sinais de que a vigilância ao 8chan pode estar a aumentar. Em março, as autoridades norte-americanas divulgaram num relatório de transparência que a empresa responsável pelo fórum online “recebeu e respondeu” a 12 pedidos das autoridades norte-americanas nesse mês, um aumento considerável face ao período homólogo anterior. Março de 2019 foi precisamente o mês em que o autor dos atentados de Christchurch levou a cabo um ato terrorista e publicou o seu manifesto no 8chan.
O fim do 8chan não será o fim do ódio online. Mas pode ser algo
Se a vigilância é uma das hipóteses, o encerramento do 8chan — para o qual a decisão da Cloudflare pode ter sido um primeiro passo, que se arrasta aos restantes fornecedores de serviços do fórum — não é uma panaceia. Isso mesmo reconhece Matthew Prince, que hesitou durante muito tempo em tomar a decisão que tomou: “Hoje em dia, o Daily Stormer continua online e continua a ser nojento. Eles gabam-se de ter mais leitores do que nunca”, escreveu o CEO da Cloudfare na publicação onde anunciou a decisão de deixar de colaborar com o 8chan, sobre o site que protagonizou a primeira decisão do género por parte da sua empresa. “Retirar o 8chan da nossa rede faz com que tenhamos menos pressão, mas não faz nada para resolver os sites de ódio que proliferam online (…). Ao tomar esta atitude resolvemos o nosso problema, mas não resolvemos o problema da Internet.”
Se os casos anteriores servem de exemplo, é possível dizer que a tendência é que, quando se fecha uma porta ao ódio online, este tem tendência a procurar as frestas de outras paredes por onde passar. “Se o 8chan for encerrado, é isto que vai acontecer: alguém vai desencantar um novo fórum, chamado 20chan ou coisa do género. E as pessoas vão migrar para isso”, declarou ao BuzzFeed Andrew Torba, fundador da plataforma de extrema-direita Gab.ai que reúne várias pessoas expulsas pelo Twitter. “Ou então alguém vai criar um canal do 8chan no Telegram. Ou um grupo do 8chan no Gab. (…) Ou regressam ao 4chan.”
O caso do Estado Islâmico é um exemplo claro disso mesmo, de acordo com o BuzzFeed. Se a maior parte do grupo deixou de ter presença online nas redes sociais, devido à peneira fina que foi aplicada aos seus membros por empresas como o Facebook e o Twitter, estes rapidamente se reorganizaram através do Telegram, uma plataforma de mensagens encriptadas onde também estão radicais de direita expulsos das redes mainstream, como Milo Yannopoulos.
Fredrick Brennan, o fundador do 8chan que hoje se diz arrependido do papel que teve na criação do fenómeno online, reconhece que acabar com o fórum não elimina a doença, que considera ser uma série de problemas “estruturais e da sociedade”. Mas isso não o impede de considerar que é preciso fazer alguma coisa e que o encerramento do 8chan poderia ser o primeiro passo: “Seria um penso rápido relativamente eficaz. Isso, juntamente com uma proibição das armas automáticas e semi-automáticas [de estilo militar] poderia ajudar a que estes tiroteios acontecessem apenas de uns tantos em tantos anos e provavelmente com menos mortes. Certamente deixariam de acontecer duas vezes em 24 horas.”