Vamos a isso. O que é, afinal, assédio sexual?

“Considera-se assédio uma situação em que alguém é sujeito a um clima ou ambiente de intimidação, de constrangimento de qualquer forma, em que se está sujeito a atitudes que humilham e afetam a dignidade, que se traduzem em comportamentos de teor sexual indesejado.” O resumo do que é assédio sexual cabe, neste caso, à procuradora geral de Évora, Aurora Rodrigues, membro da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, que ao Observador esclarece que o assédio sexual, apesar de na ordem do dia, não é um crime autónomo previsto no código penal.

Expliquemo-nos. O assédio sexual está englobado no artigo 170.º do Código Penal, referente ao crime de importunação sexual, mas não existe por si só. Diz o artigo que pratica importunação sexual “quem importunar outra pessoa, praticando perante ela atos de carácter exibicionista, formulando propostas de teor sexual ou constrangendo-a a contacto de natureza sexual”. Em suma, o crime de importunação sexual prevê situações de exibicionismo, verbalizações de teor sexual e contacto físico.

Importa aqui introduzir a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul), em vigor no ordenamento jurídico português desde 1 de agosto de 2014 (foi assinada em maio de 2011, sendo que Portugal foi o primeiro Estado-membro da União Europeia a ratificar este “instrumento internacional”). Na Convenção de Istambul, o assédio sexual é definido assim: “As Partes tomarão as medidas legislativas ou outras necessárias para assegurar que qualquer conduta indesejada verbal, não-verbal ou física, de carácter sexual, tendo como objectivo violar a dignidade de uma pessoa, em particular quando esta conduta cria um ambiente intimidante, hostil, degradante, humilhante ou ofensivo, seja objecto de sanções penais ou outras sanções legais”.

A partir do momento em que a convenção é assinada, explica Aurora Rodrigues, existe a obrigação de “transposição e aplicação das diretivas previstas” no documento de âmbito internacional. A procuradora geral de Évora questiona-se: “Porque é que não se criou o crime de assédio [considerando o Código Penal] tal como está previsto na Convenção de Istambul?”. É no contexto desta aplicação que em agosto de 2015 se procedeu ao alargamento do conceito de importunação sexual, de maneira a incluir as “propostas de teor sexual”, o que, à data, se vulgarizou e até se confundiu com os piropos. “Essa foi uma confusão que não me parece inocente. Há uma ridicularização e um anedotário nacional para tornar risível aquilo que é muito sério”, sintetiza Aurora Rodrigues.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Isabel Ventura, socióloga autora do livro “Medusa no Palácio da Justiça ou uma história da violação sexual”, que chega às bancas em março (editora Tinta da China), também é da opinião de que o assédio sexual deve ser um crime autonomizado. “Não vejo porque é que em 2018 não há de haver um artigo no código penal que censure comportamentos que violam a dignidade das pessoas”, diz. A importância de ter um artigo específico, explica, passa por uma maior sensibilização do problema e pelo conhecimento da sua real dimensão. “Antes de a violência doméstica ser um crime em Portugal, já vários atos dentro desse chapéu eram crime. Uma vez tornado crime, é completamente diferente tendo em conta a forma como as pessoas olham para isso.”

Curiosamente, também no Reino Unido o crime de assédio sexual não é autonomizado na lei. O tema pode estar em voga, a fazer manchete em jornais internacionais e a derrubar figuras todo-poderosas, mas parece não ter, em alguns contextos, força jurídica independente. Um artigo da BBC, publicado em novembro do ano passado a propósito do escândalo iniciado por Harvey Weinstein, mostra “uma possível falha na legislação do Reino Unido”, uma vez que, embora o assédio sexual esteja previsto no contexto laboral através do “Equality Act”, fora do trabalho os procuradores precisam de usar diferenças “peças da legislação, dependendo da natureza da ofensa”, o que faz com que seja praticamente impossível ter uma real dimensão do problema.

“Tocou-me na zona dos genitais por cima das calças e tentou meter a mão dentro delas”

“Eram nove da noite, mas ainda havia bastante luz porque era verão. Estava a começar a subir uma rua, em Lisboa, quando me cruzei com um grupo de pessoas que nunca tinha visto por ali. Eram todos homens, mas havia dois miúdos muito novos ao pé deles (diria que tinham uns cinco anos). No momento em que nos cruzámos, um deles encostou-me à fachada de um dos prédios enquanto os outros circundaram-nos de costas viradas para nós. O rapaz começou a dizer alguns piropos e frases sexuais. Comecei a pedir ajuda, mas ninguém me acudia. Tocou-me na zona dos genitais por cima das calças e, depois, tentou meter a mão dentro delas. Comecei a gritar na rua. Perante isto, ele disse que sabia para onde eu ia e com quem morava, que sabia as minhas rotinas. Não sabia se era ou não verdade porque nunca o tinha visto, mas assustei-me. Houve um rapaz mais ou menos da minha idade que reparou e começou a gritar para eles do outro lado da rua. Quando esse rapaz começou a atravessar a estrada, o homem que me atacou parou e disse aos amigos para irem embora. Fugiram, entraram no metro. Quando olhei à volta toda a gente estava a olhar para mim, mas ninguém me tinha ajudado. Só aquele rapaz. Fui o resto do caminho a chorar. Quando cheguei a casa liguei para um polícia que conheço e perguntei-lhe se podia apresentar queixa. Ele perguntou-me se sabia alguma coisa sobre o ‘gajo’. Disse que não. Perguntou-me se sabia descrevê-lo à polícia. Disse que não. O polícia respondeu-me que não valia a pena apresentar queixa. E nunca apresentei. E nunca mais vi ninguém desse grupo.”
Joana*, 24 anos, Lisboa

E o que é assédio sexual no trabalho?

Na opinião da procuradora geral Aurora Rodrigues, há condutas no âmbito de assédio sexual que não estão asseguradas nem no artigo 170º, nem no crime de injúria, ambos referentes ao Código Penal. Nesse sentido, o artigo 29.º do Código de Trabalho é bem mais abrangente, o qual define assédio moral enquanto “o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em factor de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objectivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afectar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador”. Já o assédio sexual, em ambiente de trabalho, é tido como “o comportamento indesejado de carácter sexual, sob forma verbal, não verbal ou física, com o objetivo ou o efeito referido no número anterior”.

Importa explicar que, embora mais completo face às condutas que se possam enquadrar no chapéu de assédio sexual, o artigo 29.º do Código de Trabalho não é tido como um crime, antes uma contra-ordenação muito grave — além da pessoa que é vítima de assédio ter direito a uma indemnização, o autor do assédio pode ser obrigado a pagar uma multa, mas já lá vamos.

O que constitui assédio sexual?

Mostrar Esconder

O relatório do CIEG, a propósito do assédio moral e sexual em ambiente de trabalho, divide desta forma as diferentes ações que constituem assédio sexual.

“Insinuações sexuais

  • Piadas ou comentários sobre o seu aspecto que o tenham ofendido;
    Piadas ou comentários ofensivos sobre o seu corpo;
    Piadas ou comentários ofensivos de carácter sexual.

Atenção sexual não desejada

  • Convites para encontros indesejados;
    Propostas explícitas e indesejadas de natureza sexual;
    Propostas indesejadas de carácter sexual através de e-mail, sms ou através de sites e redes sociais;
    Telefonemas, castas, sms, e-mails ou imagens de carácter sexual ofensivos;
    Olhares insinuantes;
    Perguntas intrusivas e ofensivas acerca da vida privada.

Contacto físico e agressão sexual

  • Contactos físicos não desejados (tocar, mexer, agarrar, apalpar, beijar ou tentar beijar);
    Agressão ou tentativa de agressão sexual.

Aliciamento

  • Pedidos de favores sexuais associados a promessas de obtenção de emprego ou melhoria das condições de trabalho.”

Hoje em dia, as mulheres portuguesas têm maior clareza na identificação de situações de assédio sexual e têm uma maior capacidade de reação quando são alvo de assédio sexual do que há 25 anos. A análise comparativa de resultados referentes a 1989 e 2015, tendo em conta o relatório “Projeto assédio sexual e moral no local de trabalho”, orientado pelo CIEG (Centro Interdisciplinar de Estudos de Género), revela que “a proporção de mulheres que refere situações de assédio no local de trabalho diminuiu de 34% para cerca de 14%”, sendo que em 1989, na maior parte das situações, os autores e autoras do assédio eram maioritariamente colegas de trabalho (57%) e, hoje, são superiores hierárquicos/as ou chefias diretas (44,7%). E se antes 49% das mulheres fazia de conta que não tinha notado o assédio, agora 52% “revela que interpreta a situação como intolerável, ofensiva, e não admite a sua repetição”.

Ainda de acordo com este relatório (foram inquiridos um total de 1801 pessoas, 558 homens e 1243 mulheres, sendo esta uma amostra representativa da população ativa de Portugal continental — idades compreendidas entre os 18 e os 90 anos):

  • Em 2015, o assédio sexual (em contexto laboral) atingiu valores de 12,6%, enquanto a média dos países europeus situava-se nos 2% em 2010;
  • “O assédio, moral e sexual, é mais frequentemente da autoria de homens, sobre mulheres e outros homens, e afeta mais frequentemente mulheres — tratando-se de uma manifestação de domínio masculino e tornando o local de trabalho um lugar de reprodução de crenças e de práticas de discriminação de género prevalentes na sociedade portuguesa.”

“Não te coloques nessa posição que eu não me seguro”

“Uma das vezes aconteceu-me em contexto de trabalho. Uma pessoa com quem estava a desenvolver um projeto pontual viu-me inclinada, a levantar umas caixas. Agarrou-me nas ancas enquanto dizia ‘Não te coloques nessa posição que eu não me seguro’. É uma pessoa com quem tenho alguma confiança, sei que faz parte da sua personalidade e que provavelmente não é intencional. Raramente digo alguma coisa por essa razão, porque gosto e até admiro a pessoa em questão, mas acho desconfortável e desnecessário. Não sei se esta pessoa devia ou não ser penalizada por isto, mas sim que os homens em geral devem pensar mais vezes sobre este assunto. Está muito enraizado que tens de sorrir com delicadeza numa situação destas e que te deves afastar subtilmente.”
Alice*, 30 anos, Lisboa

Como é que a lei penaliza o assédio sexual?

O crime de importunação sexual, previsto no artigo 170.º do Código Penal, e no qual se inserem condutas de assédio sexual, “é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. Aurora Rodrigues esclarece que, se estiver prevista em alternativa uma pena de multa, privilegia-se a pena de multa — é determinada uma multa por dia até um máximo de 120 dias, sendo que todas as multas podem ser substituídas por trabalho a favor da comunidade. “Acaba por ser uma condenação de natureza simbólica. Não conheço nenhum caso de condenação de pena de prisão efetiva, dificilmente isso será aplicado”, explica a jurista.

Já o assédio sexual em contexto laboral não constitui crime, como já acima referimos, mas sim uma contra-ordenação muito grave, o que corresponde a uma multa que aumenta consoante a gravidade do caso, além da vítima ter direito a uma idemnização.

A 1 de outubro de 2017, depois de quatro meses de muitas audições, entrou em vigor a nova lei de combate ao assédio no trabalho, a qual também prevê o assédio sexual — a proposta de lei teve autoria conjunta do Bloco de Esquerda, PS e PAN, votada favoralmente pelo PCP, tal como noticiado pela Visão. Entre as mudanças significativas associadas à lei está contemplada a hipótese de o trabalhador ser “vítima de assédio laboral por email ou telefone”. Na lei está ainda inscrito que, caso as falhas de desempenho profissional estejam associadas ao assédio, o despedimento é considerado abusivo e que os custos relacionados com doenças profissionais, também elas decorrentes do assédio, são imputados às respetivas empresas.

“Chegou a mandar um e-mail uma vez por semana, durante um mês”

Um dia, eu e o meu colega contactámos um senhor que nos poderia ajudar num tema específico relacionado com a startup. Contactámos este senhor e ele sugeriu que nos encontrássemos ao fim da tarde, num bar. Quando lá chegámos, ele estava a jantar. Perguntou se queríamos jantar e ambos dissemos que não. Durante a refeição dele falámos um pouco de trabalho e da nossa startup, mas ele não estava muito interessado: quis saber, ao invés, sobre nós e sobre Portugal. Disse que escrevia poesia e falei-lhe de poetas portugueses. Mais tarde, mandou um e-mail só a mim a dizer que tinha estado a ler poesia e que tinha gostado muito. Disse que só estava a mandar este e-mail para mim porque era um tema da esfera pessoal e o meu colega não parecia muito interessado no assunto. Comecei a achar a situação estranha, mas como eram só alguns e-mails… fui respondendo. Tinha de preservar as boas relações profissionais, afinal, ele era o contacto de um investidor. Há uma altura em que esta pessoa diz que devíamos combinar algo para falar pessoalmente sobre poesia e sugere que eu vá a casa dele beber um copo. Que dali seguiríamos para um restaurante perto da casa dele. Recusei e sugeri que ele viesse ao escritório, durante o dia. Respondeu-me a insistir, a dizer que esperava que eu não o tivesse percebido mal e que durante o dia estava ocupado e que dava mais jeito assim. Ignorei o e-mail. Depois disso, ele chegou a mandar um e-mail uma vez por semana, durante um mês, a perguntar se estava tudo bem, se eu não tinha tempo para me encontrar com ele, etc… Este senhor é um professor reputado, de 60 e tal anos. E eu ignorei todas as mensagens.
Helena, 30 anos, Lisboa

Quando é que deixa de ser flirt e começa a ser assédio sexual?

“Essa é uma boa questão”, atira Ana Guerreiro, membro da direção da UMAR — União de Mulheres Alternativa e Resposta. Na sua opinião, deixa de ser flirt quando a pessoa não deseja o que está a acontecer. “Há uma barreira muito ténue que separa aquilo que é uma tentativa de sedução do que é assédio sexual. Não é fácil de distinguir, mas à partida será um comportamento indesejado de cariz sexual.” É por isso que a prevenção e formação nessa área é tão importante. Não é por acaso que Ana Guerreiro é investigadora do projeto europeu BYSTANDES, que envolve quatro países — Portugal, Malta, Reino Unido e Eslovénia.

O projeto-piloto que arrancou em setembro de 2016 e terminará em agosto de 2018 tem como objetivo a criação de um programa de prevenção pioneira tendo em conta o assédio sexual ao nível de jovens do ensino secundário. A ideia, explica a também criminóloga, é fornecer ferramentas para que os adolescentes atuem contra o assédio sexual, seja de forma passiva ou ativa. “Com base no trabalho que temos desenvolvido ao nível da investigação e prevenção nas escolas podemos adiantar que o assédio sexual ainda é uma problemática pouco conhecida e que esse desconhecimento leva à naturalização do assédio sexual e à não valorização de determinados comportamentos. A violência de género, na qual o assédio sexual é um problema de educação, todos somos responsáveis pela sua legitimação”.

“Quando o carro parou num sinal, pensei: ‘Vou sair porta fora e atirar-lhe com cinco euros'”

“Isto foi em 2010, tinha 22 anos. Tinha ido sair à noite com umas amigas para o Bairro Alto. Já era de madrugada, duas ou três da manhã, quando apanhei um táxi na paragem. Estava sozinha. Uma amiga apanhou o primeiro táxi e eu apanhei o que estava imediatamente antes. Nos primeiros dois minutos de viagem, o taxista não disse nada. Depois, começou a meter conversa. Já não consigo precisar o que foi que ele disse, mas é possível que tenha havido alguma conversa imprópria. A dada altura, ele começa a dizer que está de folga na segunda-feira e pergunta se eu não quero ir tomar um café com ele. Fiquei assustada… só de pensar que aquele gajo ia levar-me a casa… Tanto quanto sei, ele podia aparecer-me à porta de casa no dia da folga. Lembro-me de pensar, a meio do trajeto, quando o carro parou num sinal, ‘Vou sair porta fora e atirar-lhe com cinco euros’. Não o fiz, nem sei bem porquê. Não me lembro do aspeto dele, era um homem como outro qualquer, de 35-40 anos.  A viagem foi horrível e ele foi muito insistente em relação ao café. Durante muito tempo fiquei com receio de andar de táxi e até evitei esse meio de transporte.”
*, 29 anos, Lisboa

Qual a diferença entre assédio sexual, abuso sexual e violação? Têm peso igual na lei?

Uma vez explicado o conceito de “assédio sexual” e a representação que este tem na lei (consoante o artigo 170.º do Código Penal), importa diferenciá-lo dos termos”coação sexual”, “abuso” e “violação”.

  • A “coação sexual” (artigo.º 163) diz respeito à prática de ato sexual de relevo sem penetração e implica uma pena de prisão que pode ir até aos 8 anos.
    “1 – Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.”
    2 – Quem, por meio não compreendido no número anterior, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar ato sexual de relevo, consigo ou com outrem, é punido com pena de prisão até 5 anos.”
  • Já o “abuso” surge apenas no contexto de abuso sexual de crianças (artigo 171.º) — juridicamente falando –, ainda que exista um termo equivalente tendo em conta pessoas incapazes de resistir e pessoas internadas (sem poder de autodeterminação). A procuradora geral Aurora Rodrigues acrescenta: “Todas as relações sexuais com uma pessoa com menos de 14 anos são consideradas abuso sexual de crianças”. A pena máxima de prisão é de 10 anos.
  • O crime de violação (artigo 164.º Código Penal) implica ato sexual de relevo com penetração e do conceito fazem parte “cópula, coito anal ou oral” e ainda “introdução anal ou vaginal de objetos ou partes do corpo”. A pena máximo de prisão vai até aos 10 anos.

Todas as penas referidas estão sujeitas a agravações adicionais, previstas na lei, sendo que cada ato praticado constitui um crime, ao invés de existir crime continuado.

Quantos casos de importunação sexual existiram nos últimos anos?

Segundo confirmou fonte oficial do Ministério Público, em 2016 foram instaurados 733 inquéritos pelo crime de Importunação Sexual, um número que aumentou consideravelmente em 2017, em que foram instaurados 865 inquéritos. Destes números não é possível distinguir se o que está em causa são as exibições, as verbalizações de teor sexual ou o contacto físico, situações previstas no artigo 170º do Código Penal.

O primeiro inquérito municipal à violência doméstica e de género em Lisboa, tornado público em julho de 2017, dava conta que a maioria dos casos de violência sexual dizem respeito a atos que configuram assédio sexual. Segundo o jornal Público, em causa estão comportamentos que passam pelas “tentativas de contacto físico com conotação sexual”, “frases de duplo sentido com conotação sexual” ou “mensagens escritas e/ou telefónicas com o propósito de o/a assediarem”. Ao mesmo jornal, o coordenador do estudo, Manuel Lisboa, explicou que, apesar de tantos homens como mulheres receberem piropos com muita frequência, a leitura do situação varia de acordo com o sexo: se os homens se chegam a sentir felizes, elogiados e até acham graça (26,2%), há uma grande probabilidade de as mulheres se sentirem incomodadas (20,1%) ou ofendidas (3,1%).

Segundo o relatório “Crimes Sexuais Maiores de 18 anos”, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) registou um total de 2.307 crimes sexuais praticados entre 2013 e 2016.

O relatório “Violência contra as mulheres”, da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), datado de 2014, mostra que o assédio sexual é uma experiência frequente na União Europeia e que aflige, sobretudo, o sexo feminino. No documento lê-se que, desde os 15 anos de idade, “uma em cada cinco mulheres foram tocadas, abraçadas ou beijadas contra a sua vontade” e que 6% das mulheres “sofreram este tipo de assédio pelo menos seis vezes”. Os resultados do inquérito, tendo em conta que foram inquiridas mais 40 mil mulheres espalhadas pela União Europeia, também revelam que o assédio sexual envolve o uso das novas tecnologias: não é por acaso que “uma em cada 10 mulheres (11%) foi alvo de provocações abusivas nas redes sociais ou recebeu mensagens de correio eletrónico ou de telemóvel sexualmente explícitas”.

“De um modo geral, as mulheres com idades compreendidas entre os 18 e os 29 anos, e entre os 30 e os 39 anos, têm um risco de exposição ao assédio sexual superior à média”, lê-se ainda do relatório da FRA.

“De todas as mulheres que descreveram o incidente mais grave de assédio sexual que sofreram, 35% mantiveram segredo a seu respeito e não o contaram a ninguém, 28% contaram-no a um amigo, 24% contaram-no a um membro da família ou parente e 14% informaram o parceiro do sucedido. Apenas 4% denunciaram o incidente à polícia, 4% falaram com um empregador ou chefe no local de trabalho, e menos de 1% consultaram um advogado, uma organização de apoio à vítima ou um representante do sindicato.”

“Temos que começar a ter reuniões em minha casa. Vão ser bem mais produtivas”

“Foi em 2011, estava a escrever a minha tese de mestrado. O professor que eu queria que me orientasse estava demasiado ocupado e recomendou-me outra pessoa, que prontamente disse que me orientava. Foram meses de terror. Cada reunião com ele deixava-me a tremer de nervosismo. Ouvia frases como: “Imagine que estávamos os dois nus nesta sala” ou “Com a sua cara, só escreve uma palavra da dissertação se quiser” ou “Temos que começar a ter reuniões em minha casa. Vão ser bem mais produtivas”.
Certo dia, chego para mais uma reunião de orientação e, além dele, estavam mais três tipos sentados. Os quatro formavam um quadrado e havia uma cadeira vazia no centro deles. O tal orientador pediu que me sentasse nela. Achei aquilo no mínimo inusitado, mas sentei-me. Assim que me sento o tipo começa: “Convidei estes amigos para lhe fazerem perguntas sobre o seu tema e decidirmos se aquilo que tem de estético, tem também de intelectual. Junção rara nos dias que correm.” Todos se riram. Eu não. No final, o tipo disse: “Amanhã nós os quatro gostaríamos de jantar consigo em minha casa. Penso que estamos de acordo sobre ter superado as expectativas. Mando-lhe um e-mail com as horas e a morada, pode sair.” Horas depois recebi o tal e-mail, que muito gentilmente declinei.
Depois de ter faltado ao tal jantar recebi um novo e-mail para uma nova reunião. Quando chego ao gabinete do sujeito, estava uma carta com o meu nome em letras cadastrais pousada em cima da secretária. Como o orientador nunca mais chegava, abri a carta. O conteúdo congelou-me: a carta dizia que o tipo se destituía do papel de orientador porque eu tinha feito plágio. Estava endereçada à direcção do curso. Assim que a terminei de ler, este tal professor entra no gabinete e diz: “Percebeu tudo o que estava aí escrito? Vou certificar-me que nesta faculdade mais ninguém o orienta”. O que se passou a seguir foram meses de procura por um novo orientador. Só entreguei a tese um semestre depois e talvez tenha sido melhor assim… aliás, foi melhor assim!”
*Gonçalo, 29 anos, Lisboa

Decotes muito fundos e vestidos muito justos e curtos. Este tipo de justificações já foram usadas nos tribunais portugueses?

A jurista Aurora Rodrigues diz, por um lado, que este tipo de defesa é usado sistematicamente — no sentido em que a vítima provocou a situação de alguma forma — e que, por outro, tem sérias dúvidas quanto ao facto “de o preconceito estar escrito”. “Acho que esse prejuízo existe frequentemente. Não está transcrito na decisão, mas o julgamento está lá”, explica ao Observador.

A socióloga e escritora Isabel Ventura partilha a mesma opinião quando explica que provar casos de assédio sexual é sempre difícil: “Mesmo quando há vestígios de violência física ou provas documentais, isso não significa que as pessoas não estejam sujeitas a interpretações. Nos crimes sexuais a prova rainha é o testemunho da vítima e aqui entra a questão da avaliação. A magistratura não está fora da sociedade, partilha preconceitos. Se a vítima se afastar do estereotipo de vítima e se acusar pessoas que se afastam do estereotipo de culpado, a acusação pode ser descredibilizada“. Quanto maior for o capital social de uma pessoa, continua, mais difícil ela será condenada. Ventura explica anda que os tribunais com uma leitura mais conservadora podem interpretar o comportamento da vítima como catalizador do crime e que a “desculpabilização” do agressor pode traduzir-se numa atenuação da culpa.

Aurora Rodrigues lembra o polémico acórdão de 1989, que revelou compreensão pelos dois homens que violaram duas jovens turistas, argumentando que estas pediram “boleia a quem passava, em plena coutada do chamado ‘macho ibérico'”. No acórdão lia-se, então: “Se é certo que se trata de dois crimes repugnantes que não têm qualquer justificação, a verdade é que, no caso concreto, as duas ofendidas muito contribuíram para a sua realização. Na verdade, não podemos esquecer que as duas ofendidas, raparigas novas, mas mulheres feitas, não hesitaram em vir para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado ‘macho ibérico’. É impossível que não tenham previsto o risco que corriam; pois aqui, tal como no seu país natal, a atração pelo sexo oposto é um dado indesmentível e, por vezes, não é fácil dominá-la”.

Curiosamente, o último relatório anual dos direitos humanos da Amnistia Internacional, tornado público recentemente, destaca a decisão do Tribunal da Relação do Porto, que confirmou a pena suspensa de dois homens condenados em 2015 por “agressão violenta de uma mulher”. “O ex-amante sequestrou-a e o ex-marido espancou-a com um bastão com pregos. Os juízes justificaram a sua decisão aludindo a crenças religiosas e estereótipos de género, afirmando que ‘o adultério da mulher foi um ataque muito sério à honra e dignidade do homem'”, lê-se no relatório.

Leia aqui o acórdão do juiz que desvalorizou agressão por causa de adultério

Nenhuma das situações se fica, porém, pelo assédio sexual, sendo que os crimes em causa são considerados bastante mais graves.

Qual o impacto psicológico numa vítima de assédio sexual?

Um artigo da Time, de novembro de 2017, cita um novo estudo que mostra que qualquer forma de assédio sexual, verbal ou física, é capaz de causar danos psicológicos. O estudo, que foi publicado no International Journal of Public Health, refere que o assédio sexual não físico — como atenção sexual não desejada ou imagens explícitas não solicitadas — pode exacerbar sintomas de ansiedade, depressão e baixa autoestima.

Ao Observador, Rute Agulhas, psicóloga clínica e forense, esclarece que o assédio sexual pode ter um impacto psicológico a vários níveis e que são muitas as variáveis em jogo que podem ou não influenciar o impacto — da idade da vítima e do tipo de relação com o agressor à duração e frequência do assédio, à natureza dos comportamentos e, sobretudo, a “reação face à revelação e pedido de ajuda”. Agulhas garante que o facto de a vítima se sentir acreditada e não culpabilizada “é fundamental para minimizar o impacto negativo”.

Se num primeiro momento pós-assédio sexual a vítima pode enfrentar uma “fase de reação mais aguda, depressiva e/ou ansiosa”, a evolução seguinte pode ou não gerar uma perturbação mais grave. “O agravamento depende também se a vítima beneficia de algum processo de ajuda, não apenas psicoterapêutica, mas também, por vezes, medicamentosa (para controlo de sintomatologia). No limite, pode vir a preencher critérios para perturbação pós-stress traumático.”

Além do impacto associado ao ato em si, é importante notar que as vítimas de assédio sexual enfrentam vários obstáculos a partir do momento em que tornam a queixa pública, seja porque correm o risco de ser ostracizadas pelos colegas, seja porque podem perder o trabalho (se o assédio acontecer em contexto laboral). Como nestas situações se dá o caso de ser a palavra de um contra a palavra de outro, pode também acontecer que a veracidade das afirmações de quem acusa seja posta em causa. “O silêncio da vítima é muitas vezes devido ao medo de consequências negativas, à vergonha e também à culpa”, diz Rute Agulhas. “Também o medo de não ser acreditada, de ser culpabilizada e alvo de juízos de valor. O silêncio implica que não beneficia de ajuda e o comportamento de assédio pode perpetuar-se no tempo.”

https://www.youtube.com/watch?v=-QeRw_hB7eQ

“Havia gajos a masturbarem-se em todo o lado, em metros cheios de pessoas”

“Estava na faculdade. Deve ter sido entre 1994 ou 1995. Digo-te: aconteciam tantas coisas nessa altura, era horrível, não sei se ainda é assim. Mas antes havia gajos a masturbarem-se em todo o lado, em metros cheios de pessoas; apalpavam-te a toda a hora, diziam coisas nojentas. Uma vez, uma amiga minha enxovalhou um tipo no metro. Ele começou a dizer coisas como “Lambia-te aqui e ali” e ela desata aos gritos na carruagem, a chamar-lhe todos os nomes. O gajo era um tipo todo engravatado. Outra vez, estava eu dentro de um autocarro, sozinha, à espera que ele deixasse o terminal, e vi um motorista do lado de fora que começou a masturbar-se a olhar para mim. Fiquei assustada porque não sabia se ele ia conduzir o autocarro onde eu estava.”
Joana* 41 anos, Lisboa

Que tipo de apoio têm as vítimas de assédio sexual?

Entidades como APAV e a UMAR prestam apoio a vítimas no âmbito da violência sexual, assédio incluído.

A APAV também apoia “de forma gratuita e confidencial” todo o tipo de vítimas e disponibiliza os contactos na sua página online, onde também é possível encontrar conselhos sobre como atuar. A propósito do assédio sexual no trabalho, a Associação de Apoio à Vítima disponibiliza uma folha informativa específica, onde se lê os diferentes passos a tomar: desde manifestar claramente o desagrado ao abusador e recusar qualquer avanço a partilhar o problema com amigos e familiares, sendo que as vítimas também são aconselhadas a reunir todo o tipo de provas possíveis, a procurar testemunhas (caso haja), a levar a situação ao conhecimento da entidade patronal e a apresentar queixa à CITE (Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego) e dirigir-se ao Serviço de Informação Jurídica da comissão.

Ilda Afonso, diretora técnica do Centro de Atendimento e Acompanhamento a Mulheres Vítimas de Violência, esclarece que a UMAR não tem uma resposta financiada para vítimas de assédio sexual, uma vez que não existe uma resposta oficial (do Estado) nesse sentido. Não obstante, a UMAR presta apoio com recurso às equipas de voluntariado técnico — parte do apoio recebido envolve encaminhamento para as entidades competentes e informação jurídica que possa ser necessária (a UMAR também faz referenciação caso a vítima precise de acompanhamento psicológico).

*Estas pessoas não quiseram ser identificadas