“Quem é que agora arranja isto? Quem é que agora arranja os telhados, quem é que arranja paredes, quem é que arranja o barracão? Tudo se foi embora, até a arquita cheia de roupas que tinha. Agora não tenho nada. E tinha tanta coisa não sei porquê“, desespera Maria da Assunção. Tem 73 anos. “Ou uma coisa assim”, acrescenta, sem se prender em detalhes. Foi uma das pessoas que perdeu tudo no incêndio que consumiu a região de Pedrógão Grande. Perdeu tudo e a esperança de recuperar o que quer fosse.
A casa de Maria da Assunção — ou o que resta dela — fica em Carvalheira Grande, na freguesia da Graça, uma das mais afetadas pelas chamas. O fogo deixou a localidade completamente isolada. Houve quem se refugiasse numa capela para sobreviver. Dois dias depois, não resta quase nada. As estradas de terra batida estão pintadas por esqueletos de carros calcinados, paredes e telhados tombados e terrenos inteiros varridos pelas labaredas. Ainda se ouve o crepitar das chamas a toda a volta. Há ramos e troncos ainda a fumegar. A maioria das pessoas que aqui vivia fugiu. E cheira a carne queimada.
“Se tivesse tido tempo ainda tinha aberto a porta às ovelhas para que elas pudessem fugir. Não tive. Foi tudo muito rápido”, lamenta Jorge Cláudio, de 52 anos, filho de Maria da Assunção. Perderam oito ovelhas, um carneiro e sete borregos. “Tinha andado a comprar uma farinhita para dar aos borreguitos para ver se eles desenvolviam melhor. Era para os vender. Agora… Olhe, ficou tudo queimado. Tudo em cinza”, chora Maria da Assunção.
Ardeu tudo, apesar dos esforços para travar as chamas. Maria da Assunção, viúva há pouco mais de um ano, vive com os dois filhos. Se hoje há qualquer coisa a que esta família possa chamar de casa foi graças à persistência. Basta olhar em redor: está tudo queimado. “Era uma coisa doida. Foi uma desgraça. Este rapaz já só dizia que ‘fugíamos ou morríamos aqui queimados’. E eu só dizia: ‘Não fujo com a minha casa a arder’“.
Estiveram entregues à própria sorte durante horas. “Os bombeiros ainda passaram por aqui. Disseram que voltavam e nunca mais voltaram“, diz, enquanto esfrega os olhos. Não com revolta na voz, mas com uma mágoa profunda. Acredita que podia ter sido tudo diferente, se alguém os tivesse ajudado. Aqueles momentos de inferno são ainda muito difíceis de recordar. “Tínhamos um furo ali atrás, mas depois ficamos sem luz e ele sem eletricidade não trabalha. Só acartava bacias de água e entornava por todo o lado, até pela estrada. Para cima de mim e tudo. Foi isso que nos salvou.”
Não perdeu ninguém, mas isso serve-lhe de pouco consolo. Diz saber que está entregue a uma vida “miserável“. O pouco que tinha desfez-se em cinza. Até as batatas. Não sobrou uma única batata. Diz-se “esquecida” naquela terra fantasmagórica. “A quem é que vou pedir apoio, diga? Não veio cá ninguém. Só cá veio a cooperativa de Ansião para ver se os animais estavam feridos. Mas eles não estavam feridos. Estavam mortos.”
Maria da Assunção não consegue conter as lágrimas. Tem os olhos raiados de tanto chorar. Quando fala, a boca treme-lhe e as mãos também. Lá dentro, no interior da casa, sob o teto parcialmente derretido, a roupa está toda amontoada, assim como os alimentos que restaram.
“Agora, nem carro tenho para me servir. Depois de amanhã tenho uma consulta em Coimbra e não tenho como ir. O meu outro filho tinha uma consulta amanhã em Figueiró e também não tem como ir. Não tenho nada. Como é que me podem dizer que vai tudo correr bem? Como é que isto pode correr bem!?“. Não há respostas.
O filho, José Cláudio, observa toda a conversa, olhos colados ao chão e ombros encolhidos. Sobra a resignação. Não há mais nada para fazer ou dizer. “Só vocês é que apareceram. Mas não me podem valer de nada. Sei bem que não…“, despede-se Maria da Assunção.
Lá à frente, está Alice, de 58 anos. A mera menção do incêndio leva-lhe a mão à garganta e trava-lhe a voz. Foi uma das cerca de 1o pessoas que arrombou e se refugiou na capela. “Foi um inferno”, confirma o marido, Almerindo, de 60 anos. Rezaram a noite toda para que acabasse. E acabou. Neste lugar, pelo menos, não houve vítimas mortais. Perderam terrenos e plantações em volta e um armazém acolá. O fogo ainda ameaçou, mas não atingiu a casa. Apesar de tudo, ainda têm um telhado. “Valha-nos isso“, diz Alice.
No desespero para se salvarem, a mãe, de 90 anos, acabou por partir o braço. O casal segue de carro e só param para conversar com o Observador. Vão levar a mãe de Alice ao centro de saúde. Está tudo bem, mas é preciso seguir a recuperação com atenção. Despedem-se com a mesma resignação triste de Maria da Assunção. “Quem é que reconstrói isto? Isto agora fica assim. Ninguém vem cá saber de nós“.
Estrada adentro, a paisagem não se altera. As mesmas casas destruídas, os mesmos carros carbonizados, os mesmos terrenos varridos a preto e cinza. A mesma resignação — para os que ficaram para ver os escombros, a dor ainda é muito recente. A poucos metros da capela, moram José Ferreira e a mulher Maria Simões. Ela limpa o chão do quintal à mangueirada para se libertar das cinzas que lhe sujam a casa. Ele ajuda no que pode.
Com 62 anos, este cortador e distribuidor de lenha perdeu a sua forma de subsistência. Daqui em diante, não tem como trabalhar. Pelo menos, não tão cedo. “Todos os carros arderam. Camiões ligeiros e pesados foram três. Duas retroescavadoras também. A empilhadora também. E aquele trator de puxador além também foi”, conta, enquanto vai apontando para o cemitério de automóveis que lhe rodeia a casa. Parece quase conformado.
“Isto foi a calamidade que está a ver. Foi um desastre“. Não há como recuperar o investimento, assim como não há como garantir o emprego às seis pessoas que trabalham com José. “Vou ter de começar tudo de novo. Não sei como e não sei se consigo…”.
José Ferreira e Maria Simões, de 61 anos, viveram em Carvalheira Grande, hoje reduzida a cinza, durante toda a vida. No dia em que tudo começou, estavam fora. Tinham ido passar a tarde com a filha mais nova e o genro a Santarém. “Talvez tenha sido a nossa sorte”, comenta Maria.
Quando souberam que o fogo engolia tudo no caminho, tentaram correr para a proteger a casa. Chegaram perto, mas a polícia não os deixou seguir mais. Era demasiado perigoso. Com a freguesia da Graça isolada e sem comunicações, restou-lhes esperar pelo melhor. Ardeu tudo o que tinham: além dos carros, morreram 33 cabeças de gado consumidas pelas chamas. Os fardos de palha foram o condutor perfeito. Restam as cinzas dos cadáveres das ovelhas. Fosse essa a maior preocupação.
“O meu pai era a nossa maior preocupação, mas graças a Deus está bem”, conta Maria Simões, olhos azuis carregados de lágrimas. Com 86 anos, sobreviveu sozinho às chamas. Sem água, sem luz e sem socorro. Limitou-se a esperar pela morte. Ela, desta vez, não chegou. “Foi um milagre”, jura.
Assim como “foi um milagre” a casa não ter sido despida pelas chamas. O depósito de combustível a poucos metros explodiu. Arderam as oliveiras e azinheiras à volta, a palmeira que enfeitava o jardim desapareceu e até os tapetes sintéticos que cobrem as escadas principais derreteram com o calor. A casa aguentou-se quando tudo à volta ficou pintado de negro. O futuro é uma incógnita, admitem. “Agora que devíamos estar a ajudar as nossas filhas [25 e 30 anos], ficamos sem nada”, lamenta Maria Simões, com a mão sobre o coração.
Resta-lhes a casa, intocada pelas labaredas. Mas nem isso pode ser tomado como garantido. De Carvalheira Grande é bem possível ver as três colunas de fumo negro que se erguem no horizonte. Os aviões canadair espanhóis rasgam os céus, assim como helicópteros em missão. São eles que ajudam a compor a banda sonora em que se transformou a vida de Pedrógão Grande por estes dias. Isso, e as sirenes dos bombeiros, ambulâncias e carros de polícia, numa corrida constante contra o tempo. Maria Simões assume que tem “medo”, mas agarra-se ao que ainda tem. “Estou cheia de medo, mas enquanto tiver a minha casinha vou-me aguentado…”.
A noite chegou tranquila. O fogo ainda consome duas aldeias de Pedrógão Grande, mas o perigo parece estar afastado. Desta vez, ninguém deverá perder a casa ou a vida para as chamas. Os que perderam a casa, os que perderam tudo o que tinham, vão tentando sobreviver. E só pedem que não se esqueçam deles.