Na frente do palco, de semblante cabisbaixo, Ana Bacalhau prepara-se para apresentar uma canção inédita. Pedro da Silva Martins dedilha uma variação de três acordes. A canção chorosa encarna o desencanto da precariedade laboral, a plateia do Coliseu do Porto subscreve de imediato os versos, ecoam clamores e palmas e Parva que Sou torna-se instantaneamente um hino geracional. No dia seguinte, um grupo de amigos ouve a gravação amadora do concerto dos Deolinda e decide fundar um movimento cívico: a Geração à Rasca. Estávamos em 2011. No dia 12 de março, a Geração à Rasca foi a maior manifestação política em Portugal desde o 25 de Abril. E tudo começou com uma cantiga.
No início de 2011, Parva que Sou foi a canção que obrigou os portugueses a irem para a rua gritar, mas vieram tantas outras de uma assentada: A Luta é Alegria, dos Homens da Luta, Com Todo o Respeito de Jorge Palma, ou claro, Eu Queria um Emprego, a inevitável contribuição maliciosa de Quim Barreiros — “Quem quiser um emprego/ Tem que dar o seu CÚrrículo”. A música popular portuguesa registou, em direto, uma banda sonora para as manifestações que mobilizaram milhares de portugueses. Hoje a crise é outra. “Temos dificuldade em ter casa, vivemos em habitações sem condições, hoje o aluguer de um quarto custa o que se pagava por uma casa há dez anos”, defende o movimento Vida Justa, que organiza este sábado, em Lisboa, uma nova manifestação. Se há dez anos a população estava armada de canções até aos dentes, qual é a banda sonora da crise de habitação?
Nas manifestações Casa Para Viver, dia 1 de abril e 30 de setembro, os cartazes foram um barómetro para o pulso musical dos manifestantes. O refrão de Liberdade de Sérgio Godinho, com o sublinhado na “habitação”, entre o pão e a saúde, foi um dos eleitos, assim como os chavões de José Afonso, desde “Em cada esquina um amigo” a “Eles comem tudo e não deixam nada”. “Há canções de protesto muito focadas em temas ou acontecimentos concretos, mas pela forma como foram apropriadas pelo público têm a capacidade de irem além do período temporal em que foram produzidas, como a Liberdade do Sérgio Godinho”, justifica o etnomusicólogo Hugo Castro, investigador do INET-md, atualmente curador do espólio de José Mário Branco. “Se havia uma preocupação com a transformação da sociedade portuguesa em temas como a habitação, saúde e educação, 50 anos depois, alguns destes problemas ainda persistem. Este reportório distante no tempo continua a inspirar os movimentos sociais e políticos e a servir de referência para que surjam novas canções, independentemente do género musical”.
A prova que o repertório de protesto está a ser renovado, independentemente do género musical, está nas ruas. Aqui e ali, entre as palavras de ordem com mais de cinquenta anos, alguns manifestantes erguem cartazes de raiva renovada, canções recentes, ainda a ferver, que compõem um novo género de intervenção: a canção pela habitação.
“Habitação é fratura exposta” é um dos principais versos da canção pela habitação. O comentário analítico é de A Garota Não, a setubalense Cátia Mazari de Oliveira, a quem a sorte deu “muito trabalho”, como declamou recentemente no discurso-poema nos Globo de Ouro, enquanto recebia o prémio de Melhor Intérprete. A tirada “Habitação é fratura exposta”, adotada inclusive por um deputado do Bloco de Esquerda, é um dos versos de Não sei o que é que fica, a canção que retrata um cenário very typical lisboeta: obras, despejos e guests — “Mais um AL, orgulho nacional/ Corrida sem lei, onde vais Portugal?”. O epílogo resume a fratura exposta:
“Problema é haver um casa p’ra cem
Salários tão baixos amarga a batuta”
A batida de hip hop retraída, para não descuidar a toada acústica da canção de intervenção, abre caminho para as barras de Chullage: “Desalojamento local/ P’ra alojamento local/ No mínimo é paradoxal/ E agora este local, igual/ A qualquer outra capital”. Nos últimos anos, o emblemático rapper da Margem Sul apresenta-se como Prétu; entre o pseudónimo e o coletivo, o álbum Prétu 1 — Xei di Kor condena as falácias de uma suposta “Nova Lisboa” de harmonia racial, acamado pela Kora de Braima Galissá. “Fazem turismo no Poço dos Negros/ E mudam os negros lá pa trás dum fosso/ Mandam os hipsters morar no meu bairro/ E mandam os brodas lá pro calabouço”, canta em Mi Ka Bu Nigga, acompanhado pelos assaltos sonoros de Scúru Fitchádu, o músico luso-cabo-verdiano que apoia publicamente os protestos pela habitação.
“Não sei o que é que fica” foi lançada há vinte meses, recentemente apropriadas pelas ruas, quem sabe recordada daqui a décadas, uma Parva que sou da geração da crise da habitação, ou então rapidamente esquecida, mero fogo-de-vista para alimentar a chama das manifestações. “Não acredito que as canções de protesto tenham prazo de validade”, defende Hugo Castro. “Por iniciativas de músicos e organizações associativas, hoje continua haver uma tentativa de reivindicar as canções que foram feitas no período ditatorial e revolucionário. Existem processos de ressignificação, músicos que dão novos significados a um repertório existente, seja por novas versões ou influências de trechos poéticos e frases musicais, como no caso da Garota Não”.
No dia 30 de setembro, Casa Para Viver improvisou um palco no Rossio com A Garota Não, Luca Argel e Luta Livre. A banda de Luís Varatojo, ex-Peste & Sida, lançou na semana passada o vídeoclip de Um T Zero no Barreiro, uma canção sem meias medidas, que dispensa metáforas obtusas, é direto como um formulário de reclamação na Junta de Freguesia:
“Fui a jogo para subir de nível
Num programa de renda acessível
Meu modesto primeiro andar
Onde eu pudesse pôr a vida no lugar
Mas o meu caso não foi acessível
Não havia casa disponível”
Na manifestação, os Luta Livre cederam o palco ao Luca Argel, um caso particular deste repertório pela habitação. No mais recente álbum, Sabina, o músico e investigador brasileiro puxou dos créditos académicos para cantar e desencantar a história de uma quitandeira carioca do século XIX, um enredo que não envolve propriamente a especulação imobiliária. A contribuição de Luca Argel ao discurso continua a ser Gentrificasamba, um samba doce com três anos, cada vez mais azedo, que retrata a gentrificação portuense:
“Fechou o livreiro, fechou a quitanda, fechou o florista
A cidade vai virar só hotel para turista
Fechou a taberna, a confeitaria e o alfarrabista
A cidade vai virar só hotel para turista”
Luca Argel não é o único brasileiro a cantar a crise da habitação. O músico e artista plástico Jhon Douglas, que esteve o domingo passado no Festival Iminente, recorreu a um rock-lambada em Orientas-me uma Renda? para demonstrar como as contas não batem certo: “Mas quanto que é o salário pra ganhar?”, pergunta; “É 600”, responde um coro; “E uma casa para alugar?”, insiste; “É 1200”. Jhon Douglas admite uma “grande confusão”, se trabalha “bem legal”, acorda “bem cedinho”, com “tanto prédio para viver”, porque não tem “uma casa pra morar”? A imagem das casas vazias, de tantos prédios para viver, retorna este ano no segundo EP de Ana Lua Caiano; a prodígio da nova música popular portuguesa compõe em Casa Abandonada um quadro desconcertante de uma cidade desabrigada e apresenta uma solução prática: “Venham quebrar para aqui, venham/ Venham partir para aqui, venham/ Se aqui ninguém vive, nem o vazio viverá”.
A mais célebre entrada do ano para a canção pela habitação, volta e meia, também em cartazes, é o Hostel da Mariquinhas de Gisela João. A canção original, “A casa da Mariquinhas”, popularizada por Alfredo Marceneiro, descrevia de forma pouco velada uma casa de alterne, estabelecimentos de janelas entaipadas – “tabuinhas” – que não eram estranhos ao fado. A história teve uma série de spin-offs, desde “Vou dar de beber à dor” a “O leilão da casa da Mariquinhas”, e agora, em 2023, Capicua adaptou o enredo, não há clientela que sustente uma casa de alterne no centro da cidade, as ruas pertencem aos tuk-tuks, às malas de rodinhas e às sardinhas gourmet, em pão integral, evidentemente.
“É bonito ver a casa restaurada
E há emprego p’ró menino e p’rá menina
Só é pena o português não ganhar para o T3
E ter que mudar para lá da cochinchina”
Gisela João não é a única cantora popular com voz ativa na matéria, o cantor e compositor EU.CLIDES, de canto e dedilhado choroso, compôs em Tê Menos 1 porventura a confirmação que a cantiga deve ser uma arma de calibre ligeiro. “Aproveite enquanto a bolha/ Está a inchar/ Compre uma tenda/ E ponha à venda/ É pegar e largar/ O inquilino vai ter que/ Se habituar/ Que agora mora onde/ Calhar”, canta-nos esta tragédia, amansada pelo embalo R&B, seguida de uma síntese sarcástica da sua geração: “Geração que acomodou-se/ Na ilusão de ter/ Tudo à mão”. Há sempre alguém que resiste, cantava Adriano Correio de Oliveira, mas nem o senhorio mais austero resiste à voz encantadora de EU.CLIDES.
As canções pela habitação de músicos populares como Gisela João e EU.CLIDES, em rotação nas rádios generalistas, cumprem a principal finalidade da canção de protesto: a consciencialização. “O efeito da canção de protesto é alertar para problemas da sociedade portuguesa e obter um impacto consciencializador, pretende-se que as pessoas se deparem com uma informação que não conheciam”, reflete Hugo Castro, o etnomusicólogo especializado no período revolucionário português. “As canções também transmitem determinado discurso político, por vezes com uma eficácia maior que o próprio discurso, como vimos frequentemente no período revolucionário.”
A contribuição mais recente da canção pela habitação é das Pega Monstro, um regresso inesperado depois de seis anos de silêncio. A urgência não é de somenos, na capa do single Willkommen, Júlia e Maria Reis erguem um cartaz para a estrangeirada — “Willkommen/ Quartos/ Rooms/ Zimmer/ Chambres/ Habitaciones”. Como devem imaginar, a receção das duas irmãs não é calorosa: “Venha ao chambre do caos/ A justiça ficou à porta/ Sente-se fique à vontade/ Olhe que belo terraço/ Quer a vista pró mar?”. O rock grosseiro, de quem acordou mal disposto, convida a contestar a célebre frase de Cavaco Silva em 2011 e vivermos acima das possibilidades:
“Quero um golpe de estado
E quero que vivas acima das tuas possibilidades”
A objeção aguerrida dos músicos independentes como as Pega Monstro é compreensível, sobretudo em Lisboa, onde a pressão imobiliária leva ao fecho de salas de ensaio, estúdios e palcos. Na última manifestação pela habitação, uma camioneta fúnebre listava os espaços fechados ou com o fim iminente: Anjos 70, O das Joanas, Crew Hassan, A Casa Independente. Este cenário não começou em 2023 — em 2018, a Rock in Riot, uma espécie de manifestação musical, com Vaiapraia ou Celeste Mariposa, desceu a Avenida Almirante Reis em protesto. E foi por esta altura que Luís Severo, outro lisboeta, escreveu o epitáfio: “Lisboa, chora agora/ Não há filho teu que não te venda”.
A habitação como problema cantado em Portugal não é exclusivo a 2023. “A primeira canção que o José Mário Branco compõe em Portugal, no pós-25 de Abril, é A Luta Dos Bairros Camarários, depois de ir a uma manifestação organizada pelas comissões de moradores de bairros camarários do Porto”, recorda Hugo Castro, mencionando outras canções do período revolucionário que referem diretamente a questão da habitação, Os índios da Meia-Praia de José Afonso ou “Casas sim! Barracas não!” dos GAC. É somente após o 25 de Abril, por motivos óbvios, que as canções passam a circular livremente em manifestações de rua. “O repertório era constituído sobretudo por hinos, marchas, de apelo direto à luta, revestido por um conteúdo politizado pelas letras, inspirado nas experiências que os músicos estavam a ter em localidades no interior de Portugal, e pelo ambiente sonoro musical de expressões tradicionais de diferentes regiões do país”.
Neste ano, há uma comunidade musical revestida de hinos e marchas que acompanha as recentes manifestações Casa Para Viver e Vida Justa, blocos de carnaval, batuqueiros ou soundsystems, com cantigas de efeito imediato, para alimentar as ruas. O movimento Vida Justa em particular é próximo de alguns músicos: o manifesto foi assinado por Dino d’Santiago, King Bigs, Ricardo Toscano ou Tiago Santos, sendo que, na origem do movimento, na Cova da Moura, está a liderança do rapper e ativista LBC (Flávio Almada). Os protestos do Vida Justa pretendem deslocar os manifestantes das periferias para o centro, lógica que tem convencido músicos como Valete, Loreta Kba, Juana na RAP, Tristany ou Nex Supremo.
“Uma canção de protesto surge porque, desde logo, há um músico de determinado contexto e momento que partilha um conjunto de valores e considera que a sua prática artística deve conter uma função que vai para além da mera usufruição musical”, explica-nos o etnomusicólogo. “No caso português, a música serviu também uma função política, os músicos utilizaram a música para terem um papel político e interventivo da ação social e cultural.”
Um dos cartazes mais fotografados na última manifestação é a imagem de uma tenda com uma legenda que remete de imediato para o imaginário da canção nacional: “É uma casa portuguesa”. A casa é uma obsessão recorrente na música portuguesa, desde o “modesto primeiro andar” de Milu e Xutos & Pontapés, à CASA dos D.A.M.A, uma das canções mais ouvidas neste ano. Agora, um novo repertório reitera que as casas não pertencem somente ao imaginário, também aos portugueses.