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Gwendoline Delbos-Corfield ainda está a absorver a missão que liderou no início deste mês à Hungria. Foi “extraordinária”, diz ao Observador uns dias depois de aterrar, a partir do seu gabinete em Estrasburgo. E não se pense que aquilo que viu de fora do comum é positivo: a presidente da Comissão de Liberdades Civis, Justiça e Assuntos Internos do Parlamento Europeu (PE) descreve muito do que ouviu como “arrepiante”.
“Esta foi uma missão muito sensível”, conta a eurodeputada francesa, que faz parte do grupo dos Verdes — e que, por isso, em termos ideológicos, está a um mundo de distância do posicionamento de Viktor Orbán e do seu Fidesz. “Tivemos de criar duas entradas diferentes para as reuniões, porque as pessoas críticas do governo húngaro queriam proteção. Os jornalistas, por exemplo, não queriam cruzar-se com os entrevistados pró-governo.”
Toda a missão do Parlamento Europeu esteve envolta num clima de intimidação. A visita da Comissão liderada por Delbos-Corfield acontece devido ao processo aberto à Hungria no âmbito do Artigo 7 do Tratado da União Europeia, que prevê ações da UE quando há suspeitas de que um Estado-membro possa estar a violar princípios do Estado de Direito, e ganha nova relevância numa altura em que a Comissão Europeia decidiu atrasar a atribuição dos novos fundos europeus ao país por essas mesmas suspeitas. Ainda antes de Gwendoline e os colegas terem aterrado em Budapeste, a ministra da Justiça húngara, Judit Varga, já os tinha recebido assim no Twitter: “Finalmente podemos perguntar-lhes, cara a cara, por que razão acham que as instituições europeias podem utilizar de forma errada o seu poder”.
A delegation of @EP_Justice comes to #Budapest this Thursday. Finally, we can ask them #face2face why do they think that #EU institutions can misuse their power. Looking forward to the meeting, we have no illusions though.
— Judit Varga (@JuditVarga_EU) September 28, 2021
A missão da Comissão de Liberdades do PE, conhecida como LIBE, foi liderada por Gwendoline, mas tem um representante de cada grupo parlamentar, que incluem, para além dos Verdes, o PPE (centro-direita), os Socialistas (centro-esquerda), a Esquerda Europeia (esquerda radical), o Renew Europe (liberais), o Identidade e Democracia (nacionalistas e extrema-direita) e os Conservadores e Reformistas (direita eurocética). Apesar do relatório final da viagem só ser apresentado nos próximos meses (“Esperamos que antes do Natal”, diz a presidente da Comissão), a conferência de imprensa de exposição das primeiras impressões já deixou claro que o mais certo é haver unanimidade nas críticas a Budapeste entre os vários parlamentares do Comité — com exceção dos representantes nacionalistas e de extrema-direita.
Nada que o governo de Viktor Orbán não antecipasse: em vésperas da chegada da missão, um deputado do seu partido, o Fidesz, classificou o grupo como um conjunto de “cinco mulheres loucas e dois homens normais”. Os homens, claro está, eram Nicola Bay, do Identidade e Democracia, e Jorge Buxadé Villabla, dos Conservadores e Reformistas. O grupo fez 85 entrevistas ao todo, que foram desde ministros a juízes, passando por jornalistas, representantes de ONG, académicos, líderes da oposição e representantes culturais. “O objetivo era o de ouvir sempre pessoas pró-governo e pessoas críticas do governo”, assegura Delbos-Corfield ao Observador.
A tensão, porém, foi sempre nota dominante. Os encontros com juízes do Supremo Tribunal e do Tribunal Constitucional, por exemplo, foram marcados pela “hostilidade”, diz a eurodeputada. “Foi-nos dito que não entendíamos o conceito de independência do poder judicial. Estes juízes consideram que tirarem fotos com Orbán num jogo de futebol ou num restaurante não põe em causa a sua independência. Mas nós fazermos questões sobre isso sim. Diziam-nos ‘Está a colocar uma questão política, isso é um escândalo.’”
E, do lado dos críticos do governo, houve outra nota a deixar o ambiente pesado. “Das outras vezes que estive em Budapeste sempre ouvi os jornalistas locais a queixarem-se de não terem acesso a fontes ou a financiamento. Mas nunca falavam em medo. Agora, pela primeira vez, sim, muito devido ao caso Pegasus”, revela a presidente do LIBE, referindo-se ao escândalo de espionagem de governos sobre jornalistas com recurso a software israelita, que envolve também o executivo da Hungria. “Disse isto na conferência de imprensa e a minha colega do PPE, Isabel Wiseler-Lima, disse que retirava a mesma conclusão. Portanto não é apenas uma sensação minha.”
Dos jornalistas com medo ao empresário que agradece a “Deus, sorte e Orbán”
O problema não é novo. Desde que Orbán chegou ao poder em 2010 que se multiplicam as notícias que dão conta de alterações constitucionais, interferências no poder judiciário, falta de independência no setor dos media e decisões e declarações polémicas em matéria de direitos humanos que afetam grupos como sem-abrigo, refugiados e minorias como judeus e roma. Contudo, a situação ganhou novo ímpeto em dezembro do ano passado, quando os Estados-membros da UE aceitaram condicionar a atribuição dos novos fundos europeus ao cumprimento dos ideais do Estado de Direito — uma decisão que apenas foi aceite pelos governos da Hungria e da Polónia por lhes ser permitido contestarem-na nos tribunais.
Já em junho deste ano, o processo teve novo avanço, mas que desta vez se traduziu num diferendo entre as próprias instituições europeias: o Parlamento Europeu aprovou uma resolução para levar a Comissão Europeia ao Tribunal Europeu de Justiça por não ter ainda aplicado formalmente essa decisão aprovada meio ano antes. E, já em julho, foram divulgados os relatórios de avaliação da Comissão acerca do cumprimento do Estado de Direito em cada país, com o relatório relativo à Hungria a traçar um cenário negro:
- O pluralismo dos media está “em risco”
- As novas regras para nomeação de membros do Supremo Tribunal e do Tribunal Constitucional “fogem ao procedimento habitual”
- “Existe pressão” sobre associações da sociedade civil críticas do governo
- Há “risco de clientelismo, favorecimento e nepotismo” em altos níveis da administração pública e mantêm-se dúvidas sobre “as ligações entre negócios e atores políticos”
- O sistema de pesos e contrapesos, bem como a transparência do processo legislativo, “continua a ser fonte de preocupação”
Tudo isto perante um cenário de pandemia que foi usado pelo governo de Orbán como uma forma de concentrar ainda mais o seu poder. Em 2020, o parlamento húngaro — onde o Fidesz dispõe de uma maioria de dois terços — aprovou uma série de leis que na prática permitiam ao primeiro-ministro governar por decreto, no âmbito do estado de emergência. Em junho, o Parlamento recuou nesses poderes, mas várias organizações de direitos humanos falam numa “ilusão de ótica”, já que foi aberta a porta para voltar a aplicar instrumentos que permitem, por exemplo, condenar a pena de prisão qualquer pessoa que publicite informação que o governo considera ser “desinformação”.
A missão do Parlamento Europeu na Hungria aprofundou todos estes receios já listados pela Comissão, segundo Gwendoline Delbos-Corfield. No caso dos media, se antes havia críticas por suspeitas de interferência em conteúdo editorial por parte de administrações geralmente próximas do governo, o caso Pegasus veio tornar tudo ainda mais complicado. “Até aqui, já ouvíamos jornalistas muito incomodados com os problemas de financiamento [o Estado húngaro é o principal anunciante nos media do país], nas entrevistas recusadas, o serem proibidos de ir a algumas conferências… Isso eu já sabia e voltei a ouvi-los falar disso. Agora, há um efeito incrível com o caso Pegasus, que é arrepiante”.
Em causa está a divulgação, pelo site de investigação húngaro Direkt36, de que 300 números de telefone terão sido vigiados pelo governo com recurso a este software, incluindo políticos da oposição, empresários e jornalistas. O governo não confirmou nem desmentiu esta acusação até agora. Delbos-Corfield ficou particularmente impressionada com o testemunho de um jornalista: “Ele disse que sempre se sentiu incomodado com as comparações que se faziam na UE entre a Hungria e a Rússia, porque as achava uma caricatura. Mas diz que agora já vacila.” A Hungria tem estado a cair na tabela de liberdade de imprensa dos Repórteres Sem Fronteiras: atualmente está no 92.º lugar, atrás de países como a Serra Leoa, o Quirguistão e El Salvador.
A experiência da missão do LIBE em Budapeste também não foi melhor noutras áreas. No caso da Justiça, a entrevista com os juízes do Supremo e do Tribunal Constitucional teve a tensão já relatada, mas houve mais: as associações de juízes revelaram casos de recolocações para evitar que determinados juízes julgassem casos específicos. E ainda foi abordado o caso da juíza Gabriella Szabó, que foi despromovida depois de ter contestado a lei húngara relativamente ao asilo no Tribunal Europeu. Uma vez mais, Delbos-Corfield usa a expressão “arrepiante” para se referir ao assunto.
No que diz respeito à sociedade civil e à margem de manobra de ONG, a missão falou com alguns representantes que se dizem “sob pressão”. Dois entrevistados impressionaram particularmente a deputada dos Verdes: um líder evangélico e uma representante de uma associação LGBT. “Eles foram as duas pessoas mais velhas com que nos encontrámos e ambos viveram os tempos da perseguição comunista. E eram precisamente eles os dois que estavam mais deprimidos: quando as coisas estavam finalmente a melhorar para eles, voltam a sentir que as portas se fecham”, afirma a eurodeputada.
Já os encontros com responsáveis do governo nada fizeram para aliviar os receios da chefe de missão relativamente às suspeitas de corrupção e uso indevido de fundos europeus. “Parece que já não existe Orçamento do Estado”, resume. “Todo o OE está construído de maneira a canalizar-se o dinheiro para serviços e organismos específicos, que podem estar a ser geridos pelo clã de Orbán”. Os especialistas chamam-lhe “captura do Estado” e ela demonstra-se de várias formas. Devido a uma alteração legislativa recente, as empresas e fundações públicas na Hungria não são agora obrigadas a discriminar as suas contas, por exemplo. Sendo que já antes disso não havia grande escrutínio, com o Balkan Insight a dar conta de que entre 2010 e 2017 não houve qualquer acusação por parte do Ministério Público húngaro a qualquer agente público.
József Péter Mártin, líder da delegação húngara da Transparência Internacional, explicava a situação já em 2016 a um jornal húngaro de língua inglesa: “A captura do Estado resultou num sistema que beneficia os oligarcas e atores económicos próximos do governo. Tudo isto é perigoso até de um ponto de vista estritamente económico, porque em vez de uma economia baseada no mérito e na competição, temos uma que se baseia na lealdade”, afirmou. “O governo não lhe chama corrupção. Considera que está a construir uma nova classe de capitalistas nacionais”.
Essa lealdade é evidente quando olhamos para a proximidade a Orbán de que gozam muitos dos que dominam as estruturas públicas e que vencem os concursos públicos. Um deles é o genro do próprio primeiro-ministro, István Tiborcz, vencedor de um concurso para fornecer luz pública a várias cidades — apesar de as lâmpadas que utilizou serem 56% mais caras do que o habitual. Outro é Lőrinc Mészáros, amigo de infância do primeiro-ministro, que usou milhões de fundos europeus para criar um comboio turístico e um estádio na cidade-natal de ambos — um e o outro estão quase sempre vazios, segundo relatos do Guardian e da Der Spiegel. Mészáros já é atualmente o homem mais rico da Hungria (tem mais de 300 milhões de euros de fortuna, segundo a Forbes) e em 2018 terá recebido 170 milhões só em dividendos das suas empresas. Questionado uma vez sobre como tinha conseguido ser tão bem sucedido, respondeu diretamente que havia três fatores: “Deus, sorte e Viktor Orbán”.
A reação de Budapeste às investigações europeias é a de que o governo de Orbán está a ser vítima de uma perseguição. “Bruxelas e a Esquerda Europeia estão a atacar a Hungria porque nós não permitimos propaganda LGBT”, afirmou recentemente um porta-voz do executivo. “É por isso que estão a reter os fundos a que a Hungria tem direito.” A “propaganda LGBT” a que o porta-voz se refere está relacionada com a lei recentemente aprovada pelo parlamento que limita a “promoção deste estilo de vida” para proteger crianças e jovens — e que foi vista por muitos, entre os quais a presidente da Comissão Europeia, como uma lei discriminatória. O ministro dos Negócios Estrangeiros húngaro, Péter Szijjártó, também fala em “chantagem” por parte das instituições europeias.
Gwendoline Delbos-Corfield diz ter a sua opinião pessoal sobre o tema, mas frisa que não é esse o motor desta inspeção europeia à Hungria: “Nós fomos a Budapeste no âmbito do Artigo 7 e dos pilares do Estado de Direito”, afirma. “Os media locais pintavam tudo como se a lei LGBT fosse a razão pela qual estávamos ali, mas nós nem sequer falámos sobre isso”.
UE com margem apenas nos fundos europeus
O processo de inquirição à atuação do governo húngaro decorre ao mesmo tempo que a situação política no país aquece. Com eleições apontadas para a primavera de 2022, a oposição está pela primeira vez em muito tempo bem colocada para derrotar o Fidesz, desde que vários partidos (que vão dos centristas do Momentum Movement aos extremistas do Jobbik) decidiram abrir um processo de primárias para apresentar candidatos únicos aos diferentes círculos eleitorais. As sondagens dão neste momento um empate virtual entre o Fidesz e a oposição.
Mas não se pense que, caso Orbán perca, o processo na UE fica encerrado. Com muitas das mudanças dos últimos anos feitas através de alterações constitucionais, bem como o aparelho de Estado e o sistema judicial repletos de pessoas próximas do governo, mesmo que a oposição se entenda e consiga chegar ao poder, dificilmente governa com latitude. A missão do Parlamento Europeu também se encontrou com políticos da oposição e Delbos-Corfield sentiu ali apenas preocupação: “A palavra mais repetida era ‘cimentado’”, afirma, dizendo que foi mesmo usada a expressão “muro de cimento”. “Há aqui um grande paradoxo: eles pensam que têm hipóteses de vencer a próxima eleição, mas não sabem como conseguirão governar depois. E isso tem aberto um debate entre eles: devem considerar a Constituição ilegal ou devem tentar desconstruir gradualmente as mudanças que foram feitas, de forma democrática?”
Também dentro da própria UE nada é linear. O LIBE vai reunir-se e aprovar o relatório desta missão — a líder pensa que será fácil fazê-lo, tendo em conta a quase unanimidade entre os eurodeputados do comité sobre o tema —, mas isso não garante que haja ações concretas por parte dos Estados-membros face à Hungria. “Isto será uma nova fase na investigação ao Estado de Direito. Acho que vamos ter uma maioria de Estados para fazer uma recomendação formal, algo que nunca foi feito”, diz, referindo-se à maioria de 21 Estados-membros necessária. O último passo em caso de condenação do governo húngaro seria a aplicação de sanções e retirada do direito de voto em matérias da UE.
Em junho, 17 Estados-membros pediram à Comissão que utilizasse “todas as ferramentas que tem ao seu dispor para que a lei europeia seja totalmente respeitada”, na sequência da aprovação da lei anti-LGBT. O governo português não quis inicialmente fazer parte do grupo, por ter na altura a presidência da UE (falou em dever de “neutralidade”), mas o ministro dos Negócios Estrangeiros abriu a porta a que Lisboa se junte ao coro de críticas. Mesmo que Portugal se junte, porém, continua a não haver uma maioria de 21 — e governos como os da Polónia, República Checa, Bulgária, Roménia, Eslovénia e Lituânia mantêm-se reticentes. Resta saber se, no caso do Artigo 7, esse entendimento pode ser outro.
Com uma aplicação mais difícil no que diz respeito a temas como a lei LGBT, o Parlamento Europeu foca-se agora na distribuição de fundos europeus como arma para tentar dobrar os governos húngaro e polaco — este último no diferendo aberto com Bruxelas depois da recente decisão de um tribunal do país. A Hungria tem a receber mais de sete mil milhões de euros da “bazuca”, o equivalente a cerca de 5% do PIB do país.
A ideia de congelar fundos europeus para obrigar governos a manter a linha no que diz respeito ao Estado de Direito não é nova. Já em 2018, dois académicos, Gerhard Schnyder e Dorottya Sallai, publicavam um artigo onde afirmavam que esse era um caminho eficaz, já que a forma como o Fidesz estava a redesenhar o tecido empresarial do país, com recurso ao que chamam de “ferramentas da máfia” que asfixiam o mercado livre, deixava a Hungria ainda mais dependente de financiamento externo.
Só agora, porém, parece estar a haver uma vaga de fundo nesse sentido. Gwendoline Delbos-Corfield considera que este é o melhor caminho que a Europa tem neste momento para impor consequências ao governo húngaro: “Não temos muita legitimidade numa série de coisas. Mas nesta temos: se os Estados-membros querem ter confiança de que podem juntar dinheiro para apoiar os vizinhos, têm de ter a certeza que o dinheiro não está a ir para os bolsos de quatro famílias. E na Hungria, neste momento, não há a certeza disso.”
O Observador viajou para Estrasburgo a convite do Parlamento Europeu