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Billy & Hells

Billy & Hells

A escrita, as mulheres e o México de Fernanda Melchor: "Uma das coisas boas da natureza humana é que há sempre momentos maus"

Primeiro foi "Temporada de Furacões". Depois, o prémio Casino da Póvoa e agora chega "Paradaise". Em entrevista, descobrimos a intimidade literária e quotidiana de uma escritora obrigatória.

É uma história que dura uma fração de segundo. Na rapidez com que a lemos, apesar das suas 130 páginas, mas também no mundo que Fernanda Melchor consegue fazer caber no pensamento de um rapaz que não demorará mais que um rapid eye movement de um sonho que pudesse ter tido, deitado na esteira quente no chão a ferver da sala do casebre onde vive com a mãe e a prima grávida, numa pequena povoação mexicana, numa noite de verão insuportável de quente.

Paradaise (ed. Elsinore) conta parte da cronologia de episódios da vida de Polo, um rapaz adolescente, pobre, a quem a mãe tira da escola por não estudar e o põe a trabalhar a cortar relva num condomínio de luxo. O avô morreu de desolação mergulhada em álcool, o futuro não o vislumbra senão a fazer parte do mundo de criminalidade em que entrou o primo, que nunca mais viu, e por isso passa todos os tempos livres que tem a beber as garrafas de aguardente trazida por um miúdo rico, gordo e obcecado por uma vizinha que tem idade para ser mãe dele.

A linguagem com que a autora do anterior Temporada de Furacões expressa os pensamentos de Polo, aqui a personagem e o narrador de Paradaise, é tão voraz, tão demasiado escorreita que as palavras conseguem o condão de se apagarem e metamorfosearem-se em sentimentos, em imagens, em pensamentos desconexos, arbitrários, solitários – sempre tão solitários –, contando no meio disto tudo as histórias das outras personagens que fazem um retrato devastador da realidade mexicana, aqui explorada em três eixos: os ricos, os pobres, os traficantes de droga. Fernanda Melchor continua a escrever assim e será um dia Nobel.

A capa da edição portuguesa de "Paradaise", de Fernanda Melchor, publicada pela Elsinore

Tem formação em jornalismo. Como é que fez a pesquisa para este romance?
Na verdade, nunca exerci a profissão. Fui editora num jornal. Foi o meu primeiro emprego na área do jornalismo. E depois fui contratada pela universidade onde estudei, em Veracruz, para trabalhar na área de relações públicas. Nos meus tempos livres, escrevia crónicas porque sentia que precisava de me exprimir. Havia tantas coisas a acontecer nessa altura: a violência, o narcotráfico… Achava que havia muitas histórias sobre a cidade que estavam escondidas. Reuni as crónicas num livro chamado This Is Not Miami. Foi o meu primeiro livro. Depois, escrevi um romance de ficção chamado Falsa Liebre. Não foi traduzido em inglês, foi publicado só em espanhol e em sueco. A minha vida mudou completamente quando me mudei de Veracruz, que é uma cidade portuária no Golfo do México, para Puebla, onde estou agora. Puebla é uma cidade no Vale Central do México, muito perto da Cidade do México. É uma cidade colonial e muito bonita. Mudei-me para porque queria continuar a estudar, para fazer um mestrado em Arte e Estética. Além disso, precisava de uma bolsa de estudo. E decidi ficar aqui porque acho importante para um escritor ter uma distância entre o assunto e a escrita, o trabalho.

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Porquê?
Para mim, é importante ter uma distância de Veracruz. Claro que estive lá e escrevi sobre ela. Mas, ao vir para Puebla, tornou-se uma obsessão escrever sobre Veracruz. Trouxe comigo todos os meus arquivos, todos os meus ficheiros, porque costumava ler muitos jornais quando trabalhava para a universidade. Mas acabava sempre a ler as notícias sobre crimes. E havia um caso que estava a obcecar-me há muito tempo. Foi o que usei no romance Temporada de Furacões. O crime aconteceu numa aldeia muito pequena, perto de Veracruz. Encontraram o corpo de uma pessoa que consideravam a bruxa da aldeia. E essa pessoa foi assassinada, cortaram-lhe a garganta. A polícia e os jornalistas que cobriram o caso deram muito ênfase ao facto de a bruxa ter sido morta porque estava a fazer bruxaria ao assassino, que agiu como se isso fosse uma espécie de auto-defesa. Era também muito óbvio que a bruxa pertencia ao movimento LGBT. Foi muito chocante, tratou-se de um crime de ódio. Ninguém questionou o sobrenatural e ninguém questionou a ideia de crime passional. Supostamente, a bruxa estava a fazer bruxaria ao assassino porque queria que ele voltasse para ela. Foram amantes durante anos. O assassino era muito jovem, era menor quando eram amantes. Senti que esta era a essência das coisas que aconteciam em Veracruz: crime de ódio, passional, mas também a existência do sobrenatural, a descrença, a ignorância.

E femicídio? A mulher é sempre o diabo.
Exatamente. Este motivo da bruxa é muito interessante do ponto de vista feminista. Também se podia ver que o local onde o crime ocorreu era muito isolado, apesar de estar na estrada de acesso à cidade, em que se vivia em condições muito, muito más, do ponto de vista económico e social, zero educação, zero condições de saúde. E pensei: isto é o México, isto é Veracruz, tenho de escrever sobre isto. No início, queria escrever um romance de não-ficção, como em A Sangue Frio, do Truman Capote. Eu era obcecada por esse livro. Foi também o livro que destruiu Truman Capote. Tem aquela coisa do livro maldito. Adoro simplesmente a forma como este escritor foi capaz de mostrar a humanidade de uma coisa horrível. Olhamos para os perpetradores e pensamos na vida horrível que eles têm. Mas, ao mesmo tempo, dizemos: mas que coisa horrível que eles fizeram. Se calhar mereciam-no. Coloca-nos na posição de compreender o quadro completo e é uma obra de arte espantosa também do ponto de vista jornalístico. Estava muito entusiasmada.

"Vais à igreja ao domingo, mas à sexta vais à curandeira e ela faz-te uma limpeza de todos os males. Quando era criança, a minha mãe levava-nos a casa de uma familiar, ela dava-me uma rodela de limão, fazia sete cruzes nela com as unhas e dizia-me para pô-la no bolso, que iria proteger-me daquelas pessoas invejosas."

Começou a investigar?
Não gosto de saber tudo quando vou para o terreno. Gosto de ir com o básico e depois descobrir coisas lá. Quando li sobre o caso foi em 2011. Em 2014, 2015, quis voltar a Veracruz mas era a pior altura possível por causa da violência. Acho que nesse ano foram mortos uns dez jornalistas em Veracruz e não só pelos narcotraficantes. Também pelo Estado. Havia pessoas do Estado a trabalhar para os narcotraficantes. No final do livro, fiz uma menção a Javier Duarte [Ochoa, ex-governador de Veracruz], que está agora na prisão. Não só desviou fundos e fez coisas corruptas, como foi responsável pelo facto de nos hospitais pediátricos não haver quimioterapia. Estavam a dar água destilada às crianças em vez de medicamentos. Estamos a falar de um nível de corrupção monstruoso. Ao mesmo tempo, andava com muito medo.

O que fez?
Fiz um curso de jornalismo sobre protocolos de segurança. A minha ideia era regressar a Veracruz, a uma cidade onde ninguém me conhece, uma mulher que viaja sozinha, sem qualquer acreditação de qualquer meio de comunicação social, porque na altura era uma dona de casa. Terminei o meu mestrado e conheci o meu companheiro da altura, que tinha uma filha. Criei a minha enteada durante seis anos, dedicava-me totalmente a ela e a escrever, como freelancer. Eu queria ir, queria ver o sítio onde encontraram o corpo, queria ir ao local, que diziam ter uma decoração estranha. Queria ir à cadeia entrevistar os assassinos. Mas os protocolos de segurança desaconselharam-me, era um risco muito grande nessa altura. Fiquei muito deprimida durante algum tempo. Até que pensei: “sou apenas uma dona de casa, tenho de tomar conta desta miúda que adoro, tenho de ficar aqui”. Lentamente, comecei a perceber que, por vezes, não é preciso estar onde a ação acontece para escrever sobre ela. Pensei muito em Kafka. Kafka tinha um emprego horrível, burocrático, deprimente. Mas, mesmo assim, conseguiu escrever livros que falam sobre totalitarismo de uma forma que nunca ninguém imaginou.

Pensou que podia passar a escrever ficção.
Exato. Pensei: “talvez não seja mau transformar isto numa ficção, talvez seja até melhor, porque, assim, as coisas que não sei e sobre as quais não posso pesquisar, posso inventar. Posso simplesmente usar a minha imaginação”. Passei a fazer outro tipo de investigação: tratava-se não apenas do que aconteceu, quem o fez, onde, mas também o que é que eu, como escritora, poderia dar da minha alma para a história. Utilizei, por exemplo, a minha frustração enquanto jovem madrasta, todas as emoções negativas da minha vida. Foi uma altura muito difícil porque a relação com o pai da minha enteada não estava muito boa. Acabámos por nos separar, anos mais tarde.

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"Senti que esta era a essência das coisas que aconteciam em Veracruz: crime de ódio, passional, mas também a existência do sobrenatural, a descrença, a ignorância"

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Como descreveria essas emoções negativas?
As coisas que estavam a acontecer no México eram terríveis e muito deprimentes, especialmente no que diz respeito à violência contra as mulheres, contra os homossexuais, os transsexuais. Isso fez-me pensar muito, porque eu estava a criar uma menina. Costumava refletir muito na educação dela. Tive uma educação liberal, uma educação de classe média. A minha mãe e o meu pai eram liberais, mas, por outro lado, eram conservadores, como se as raparigas fossem feitas para fazer isto e os rapazes aquilo. “Como rapariga, tens de me ajudar”, dizia a minha mãe, mas o meu irmão não precisava de fazer nada. O clássico. Cresci a pensar que ser rapariga não era tão divertido e excitante como ser rapaz, porque todos os livros que lia, como As Aventuras de Huckleberry Finn, eram escritos por homens. Havia a Elena Poniatowska, a única escritora [mexicana] mulher que conhecia, mas era só ela. E ela era uma mulher mais velha. Cresci a pensar: “que chatice eu ser uma mulher”. Desejava ser um homem. Sentia que, no México e na sociedade em que cresci, era como se fosse um cidadão de segunda classe. A única forma de ter sucesso era ter um marido, ter filhos. E comecei a questionar muito isso, não queria que a minha enteada odiasse ser mulher.

Em Paradaise, colocou-se na pele de um rapaz adolescente.
Com Paradaise foi um pouco diferente. Foi estranho, porque comecei a escrever Paradaise quando Temporada de Furacões nem sequer estava publicado, apesar de estar terminado. O que aconteceu com Temporada de Furacões é que demorei uns seis meses a escrever tudo, mas depois demorou dois anos a ser publicado, o que me permitiu trabalhar nos pormenores. No México, temos bolsas para jovens escritores. Recebe-se dinheiro durante um ano para escrever um projeto. E eu recebi essa bolsa, que se chama Fonca. Escrevi outro livro, que não correu bem porque ainda estava ligado a Temporada de Furacões. O meu mentor foi muito compreensivo porque escrevi muito nesse ano e, no final, soube que aquele projeto era, na verdade, feito de dois romances. Um, que não foi escrito, e o outro, que era Paradaise. Portanto, a primeira vez que tive a ideia da história foi em 2016. Em 2018, estava a divorciar-me e a escrever uma série de televisão para a Netflix. Chama-se Somos.

Sobre o que trata?
É sobre uma história real que aconteceu no norte do México, onde um grupo de narcotraficantes destruiu completamente a cidade. E nós, guionistas, estávamos a dramatizar as histórias porque não queríamos vitimizar ninguém. Era um trabalho espetacular. Pagava-me mesmo muito bem e era divertido de fazer. Aprendi muito. Estava na Cidade do México, sozinha, a trabalhar na sala dos argumentistas. Estava a viver num hotel. Quando voltava para o hotel, sentia-me muito só, porque tinha acabado de me divorciar. Então comecei a escrever Paradaise à noite. Das 9 às 5, trabalhava, regressava ao hotel, comia uma refeição, dormia uma sesta, acordava às oito da noite e escrevia até à meia-noite. Depois, tomava um Xanax e ia dormir. Foi assim durante três meses. E acabei o primeiro rascunho de Paradaise. Agora seria impossível fazê-lo. Foi a altura certa.

"Vais à igreja ao domingo, mas à sexta vais à curandeira e ela faz-te uma limpeza de todos os males. Quando era criança, a minha mãe levava-nos a casa de uma familiar, ela dava-me uma rodela de limão, fazia sete cruzes nela com as unhas e dizia-me para pô-la no bolso, que iria proteger-me daquelas pessoas invejosas."

Conferiu a voragem à forma de contar a história?
Tem esse ritmo frenético, sim. Acho que é um romance noturno, como se tudo o que é importante nesse romance acontecesse à noite. E isso reflete-se, porque escrevi-o à noite. Foi a única maneira, tentei escrevê-lo antes, durante o dia, mas não estava a funcionar.

Porque é que a noite ajudou?
Não sei… Quando era adolescente, escrevi as minhas primeiras histórias à noite porque era quando os meus pais se deitavam. Ia para o escritório do meu pai e pegava na máquina de escrever elétrica dele. Na altura, não tínhamos computador. Escrevia as minhas histórias no escuro, só com uma luzinha. Mas só o fazia quando os meus pais estavam a dormir. Eles estavam muito orgulhosos por eu estar a tentar escrever, sabiam que eu tinha talento, mas mesmo assim eu sentia que precisava de criar uma outra atmosfera, como a da noite. Acho que há energias na noite que são diferentes das do dia.

Com uma educação de classe média, foi capaz de escrever sobre personagens tanto de classe muito baixa como muito alta.
Sim… acho que foi a jornalista que há em mim. De facto, cresci em ambiente de classe média. Na família da parte da minha mãe houve sempre comerciantes, pequenos empresários. Eram imigrantes alemães judeus, que estavam a fugir dos nazis. É uma história muito interessante. E uma longa história, também. Eu tinha uma tia-avó que esteve em Auschwitz, sobreviveu e escreveu um livro. Portanto, ela foi a primeira escritora da família, não eu. Do lado do meu pai, não eram pessoas muito privilegiadas. Vim do norte do México. A minha avó, por exemplo, mal sabia ler e teve dez filhos, mas dois morreram. O meu pai era o mais novo. Por isso, acho que na minha vida fui capaz de me relacionar com todo o tipo de pessoas.

Também com as ricas?
Porque andei numa escola privada com pessoas ricas, mas, em geral, não andava sempre com os miúdos ricos. Costumava ir a um parque em que fumávamos marijuana e bebíamos cerveja. Havia crianças que viviam na rua, éramos amigos. Depois, como jornalistas, conhecemos muitos tipos de pessoas e temos de estar abertos a elas, temos de pôr de lado os nossos preconceitos. Acho que é um hábito que tenho desde muito cedo, mas profissionalizei-o com o jornalismo. Com Paradaise, o que estava a acontecer era… Quando escrevi Temporada de Furacões, toda a gente estava tão concentrada nas condições sociais do romance que cheguei a pensei que tinha feito um paralelismo demasiado forte entre pobreza e violência. E senti-me estranha.

"Pensei muito sobre o tríptico Jardim das Delícias Terrenas [de Hieronymus Bosch]. Sabia que tinha de ter três partes para a história avançar. Pensei na forma como vemos um tríptico"

Porquê?
A pobreza em Temporada de Furacões também é simbólica. Não é só material, é igualmente moral, espiritual. Para mim, Temporada de Furacões também estava a escrever sobre o que é estar num lugar e querer fugir, com todo o coração.

Como em Paradaise.
E estamos a falar de relações amorosas, mas também de família, de comunidade, de um lugar. Mas também a fugir de nós próprios. Para Paradaise, pensei: e se La Matosa [onde decorre a história de Temporada de Furacões] fosse de repente gentrificada? É o que está a acontecer em Veracruz. Pega-se numa pequena aldeia de pescadores e transforma-se-la num enorme complexo de luxo.

Está a acontecer em todo o lado.
Sim, acontece no México, na América Latina. Acontece nos Estados Unidos, na Europa, na Ásia, em África, acontece em todo o lado. E eu pensei: “e se La Matosa se tornasse noutro lugar? E as pessoas de La Matosa são apenas visitantes, são apenas as pessoas que trabalham para as pessoas de lá?” Com Paradaise, queria fazer uma coisa mais simples, mas também mais violento. Como o lema dos jogos olímpicos: mais rápido, mais alto, mais forte. E descobri este estilo intenso, rítmico, coloquial, misturado com as reflexões deste narrador que sabe coisas e que pode, por vezes, mostrar a beleza do lugar. Mas depois volta à fealdade dos seus pensamentos. É também através deste narrador que se conhece o passado.

É extremamente difícil escrever, que é de si uma forma de organização, sobre pensamentos que são desorganizados.
Por isso, há uma personagem em Paradaise. Quer dizer, há muitas personagens, mas optei por ter apenas um protagonista, Polo era para mim mais interessante do que Franco, o miúdo rico. É óbvio que ele tem problemas psiquiátricos na sua jovem idade e que vai beneficiar de ir à terapia porque se pode ver o início de um perpetrador sexual. Polo é mais normal. Mostra, supostamente, indiferença pelas mulheres. Mas no final é tão misógino, tão violento… Para mim, foi muito interessante mostrar as mentiras que contamos a nós próprios. Paradaise não trata apenas de crime e violência, mas também das mentiras que contamos a nós próprios para nos convencermos de que o somos.

"Continuamos a ter muitos crimes e violência relacionada com gangues. Ainda temos assassínios de jornalistas. Continuamos a ter os mesmos problemas que tínhamos antes. A situação da mulher não melhorou. Este governo considera-se de esquerda mas usa linguagem do século XIX."

Polo está muito zangado com toda a gente, com tudo o que o rodeia. Não encontra praticamente nada que lhe dê prazer.
Só o álcool. E, mesmo que não seja prazer, porque o faz sentir-se mal, vomita, torna-o mais violento. Tudo no romance é grotesco por causa dele. Estamos na cabeça dele. O romance começa com esta justificação: “ok, vou dizer à polícia que é tudo culpa do Franco, do gordo. É tudo é culpa dele.” E, depois, entra-se numa viagem e é tudo da cabeça dele. Inspirei-me num conto de David Foster Wallace, Good Old Neon. Há um momento em que uma personagem diz qualquer coisa como: “Conheces aquela frase que as pessoas dizem quando temos uma experiência de quase-morte, em que vemos toda a nossa vida à frente dos olhos? Podes escrever mil romances a partir desse momento.” Eu escrevi um. É tudo uma viagem mental ao que acabou de acontecer na noite anterior.

Muito intensa.
Gira à volta de Polo e da sua infância, tudo. Mas, no final, é só um segundo, tem que ser muito intenso. Foi uma decisão dolorosa não mostrar, por exemplo, a personalidade complexa da senhora Maroño [por quem Franco é obcecado]. Mas, ao mesmo tempo, acho que há momentos em que ela brilha. É a única pessoa que trata Polo como um ser humano. E é uma boa mãe. Todos os outros são horríveis com Polo. A mãe é muito rígida com Polo, obsessiva e controladora, apesar de se preocupar com ele. Não quer que ele se torne num gangster. Depois há a prima, que não é, de todo, o que Polo pensa que ela é. Ela apenas engravidou. Não é uma puta como ele pensa. Tento seguir linhas ténues, em que o mundo pode não ser exatamente como ele diz que é. Quando se escreve, não se está a julgar ninguém. Por isso, nenhuma das personagens é julgada.

Como é que estruturou os capítulos?
A forma é muito, muito importante para mim. Em Temporada de Furacões, sabia que tinha de ser em capítulos, cada capítulo dedicado a uma personagem diferente e, em conjunto, formariam o quadro completo, sem contar que só teríamos um lado da história. Com Paradaise, sabia desde o início que tinha de ser uma história curta. Tem falhas nas realidades de todas as personagens. Eu só queria entrar ali, contar a história e ir embora. Pensei muito sobre o tríptico Jardim das Delícias Terrenas [do pintor holandês Hieronymus Bosch]. Eu sabia que tinha de ter três partes para a história avançar. Pensei na forma como vemos um tríptico, na forma como os nossos olhos percorrem os quadros. É como se eu focasse os meus olhos nisto, e depois os meus olhos vagueassem para aquilo, pelos animais, pelos planos, e depois voltassem para o outro lado. Se calhar não faz sentido. Há três partes e tudo tinha de fluir de volta.

"A pressão enche-nos a cabeça, sim. Acho que sou publicada em 27 línguas, várias outras edições… é uma loucura. Por isso, preciso de muito silêncio"

Billy & Hells

O México mudou muito desde Temporada de Furacões?
É muito complexo. Temos agora um governo de esquerda. Mas, para ser sincera, não vai mudar nada. O que se passa no México é que vivemos realmente num Estado falhado. No México temos estados como nos Estados Unidos, o verdadeiro nome do México é Estados Unidos do México. Cada estado tem o seu próprio governo e depois há o governo federal. Há o exército e há a polícia – que pode ser municipal, estatal ou federal, também. E em cada um desses níveis há corrupção. E vem do início do século XX. Veio este governo e hoje as pessoas são, de facto, menos pobres. Mas, ao mesmo tempo, continuamos a ter muitos crimes e violência relacionada com gangues. Ainda temos assassínios de jornalistas. Continuamos a ter os mesmos problemas que tínhamos antes. A situação da mulher não melhorou. Este governo considera-se de esquerda mas usa linguagem do século XIX. Já ninguém fala em liberais e conservadores. Foi ele quem desmantelou por completo o sistema de cuidados infantis gratuitos para as mães trabalhadoras. Veio antes dizer que iam passar o dinheiro diretamente às avós. É um esquerda conservadora. temos isso. Mas também temos programas sociais para diminuir a diferença entre homens e mulheres.

É como se o México estivesse suspenso no tempo? Isso nota-se no livro.
É verdade. Exatamente. Parece que estamos suspensos, é como se o nacionalismo estivesse a fazer as coisas parecerem assim.

Há também superstição nesta história. Pós de realismo mágico?
Ponho sempre uma casa abandonada nos meus romances. Não sei porquê. E há também sempre mulheres grávidas. Não sei porquê, mas acho que os motivos são interessantes para mim e, claro, cada livro é também uma das minhas preocupações enquanto mulher – a pessoa que eu sou que, por acaso, é mulher, é mexicana. Para mim, Paradaise é um pesadelo. É por isso que é noturno, quando penso qual seria a pior coisa que me poderia acontecer como dona de casa e como madrasta. Este livro nasceu por causa das minhas ansiedades como mulher. O meu ex-companheiro costumava viajar muito, por isso eu ficava muito tempo sozinha com a criança. Por vezes era muito angustiante. E vivíamos num sítio muito seguro. Mas lê-se estas coisas nos jornais. Não respondi à sua pergunta há bocado: não me inspirei num caso, mas em muitas coisas que vejo acontecer.

"Tento ser como uma freira na minha própria casa e tenho um problema de saúde que não me permite viajar mais. Estou a trabalhar intensivamente assim e isso tem-me ajudado muito. Nem sequer sei se quero escrever um livro tão intenso como os que já escrevi."

Paradaise é como uma colagem de todas essas coisas.
Para mim, é importante escrever sobre as coisas que me preocupam, tentar compreendê-las escrevendo-as. O sobrenatural é apenas uma parte disso. Cresci em Veracruz. A cidade é muito interessante porque tem esta mistura… foi o primeiro porto da América. Foi o primeiro município criado por Cortez, o conquistador do México. É uma mistura muito interessante porque temos a influência europeia, depois temos a presença africana de todas as pessoas que foram escravizadas e trazidas para a América através do México. E temos ainda as perspetivas e as religiões indígenas. Vais à igreja ao domingo, mas à sexta vais à curandeira e ela faz-te uma limpeza, como lhe chamam. Limpa-te de todos os males. Lembro-me de, quando era criança, a minha mãe costumar levar-nos a casa de uma familiar, mas eles não se davam muito bem. Então, ela dava-me uma rodela de limão, fazia sete cruzes nela com as unhas e dizia-me para pô-la no bolso, que iria proteger-me daquelas pessoas invejosas. É muito comum.

Consegue escrever a ser feliz?
Uma das coisas boas da natureza humana é que há sempre momentos maus.

Só se vê a escrever em momentos maus?
Já pensei nisso. Há um ano, ainda estava em Berlim. Visitei muitos países, não visitei Portugal porque Paradaise ainda não tinha sido publicado, mas fui à Suécia, à Noruega, à Finlândia, à Lituânia, à Grécia, a Itália, a França, à Dinamarca, fui a Espanha várias vezes. Falei muito sobre os meus livros e isso não é um trabalho. Acho que é um trabalho que faço bem, mas não é um trabalho.

Sente-se pressionada?
A pressão enche-nos a cabeça, sim. Acho que sou publicada em 27 línguas, várias outras edições… é uma loucura. Por isso, preciso de muito silêncio. Foi por isso que tentei não dar o meu e-mail. Tento ser como uma freira na minha própria casa e tenho um problema de saúde que não me permite viajar mais. Estou a trabalhar intensivamente assim e isso tem-me ajudado muito. Nem sequer sei se quero escrever um livro tão intenso como os que já escrevi. Quero fazer outras coisas, por isso estou a explorar essas coisas. Um dos meus livros preferidos de sempre acontece em Lisboa. Não é escrito por um português.

Afirma, Pereira, de Antonio Tabucchi?
Esse romance… adoro-o. Uso-o sempre que dou aulas.

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